Espaços teatrais na cidade do Porto (III): o Cine-Teatro Águia d´Ouro à Batalha

 Espaços teatrais na cidade do Porto (III): o Cine-Teatro Águia d´Ouro à Batalha

“Porto em Directo”, da Seiva Trupe (dgartes.gov.pt)

Confesso que nunca vi teatro neste local, mas fui um assíduo espectador de cinema, nas matinés (sessões diurnas) e, principalmente, nas sessões da meia-noite, que eram sempre muito concorridas e comentadas pelos espectadores. Sobre isto, há muitas anedotas, alguma verídicas e outras não.

O Cine-Teatro “Águia d’Ouro”, inaugurado em 17 de Junho de 1899, num edifício localizado na Praça da Batalha, na cidade do Porto, a partir de 25 de Março de 1904, foi instalado no edifício que vemos na fotografia da esquerda (datada de 1905). (Direitos reservados)

Lembro-me de que, no “hall” da entrada, havia uma pequena escultura feminina numa coluna e que, a propósito, alguém me comentou – já não me lembro quem – que a modelo era a mesma da famosa escultura que está na Avenida dos Aliados: a Menina Nua (o seu verdadeiro nome é Fonte da Juventude), escultura de 1929, da autoria de Henrique Moreira.

A Fonte da Juventude ou Menina Nua é da autoria de Henrique Moreira e data de 1929. A jovem, que posou para o escultor chamava-se Aurélia Magalhães Monteiro e era conhecida por Lela. (Créditos fotográficos: Reinerio Hevia)

Este escultor, Henrique Moreira (1890-1979), é também autor do Monumento aos Mortos da I Guerra Mundial, na Praça de Carlos Alberto (1928), e contribuiu para a conclusão do Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, na rotunda da Boavista (1952).

Monumento aos Mortos da Grande Guerra, na cidade do Porto.
(Créditos fotográficos: Miguel Madeira – publico.pt)

Duarte Ivo Cruz recorda-nos, no seu artigo “Cinema-Teatro Águia D’Ouro e as origens do Cinema Português”, falando também da reconversão do edifício:

«[…] Exemplo flagrante dessa “reconversão” é o antigo Teatro-Cinema Águia d’Ouro, hoje transformado em hotel, mas com o mérito de o restauro manter em excelentes condições a impressionante fachada arte nova. É pois um hotel: mas antes de ser teatro e cinema, foi, a partir de 1839, um café, o que permite pensar que se retomou a tradição de prestação de serviços de hospedagem e/ou alimentação…

Em 1908, Sousa Bastos, no clássico e na época atualizadíssimo “Diccionário do Theatro Português” escreveu sobre o Teatro Águia de Ouro: “Tem 60 camarotes em duas ordens e duas frisas; 600 lugares de plateia e 350 de galeria”.

Teatro foi, durante décadas, mas também um dos primeiros cinemas do Porto, pelo menos desde 1907, e assim se manteve com alternativas de espetáculo teatral e cinematográfico, até aos anos 80/90 do século passado. A partir de 2006 inicia-se a reconversão em hotel, com o mérito de se ter restaurado a impressionante fachada. O que resta do teatro e do cinema? Antes de mais, como se disse, a esplendorosa fachada. Mas mais alguma coisa – e sobretudo, a memória urbana, desde logo, na parede, placas recuperadas assinalando espetáculos “memoráveis” para a época…

Mas também um arquivo fotográfico que recorda a harmonia da sala à italiana, com as frisas e camarotes antes das primeiras obras e fotografias da fachada, marcante na beleza estilística e decorativa, mas num estado de conservação duvidoso: felizmente, nas obras de restauro e adaptação a hotel, houve o bom senso e bom gosto de recuperar o esplendor e rigor estilístico do edifício, hoje notável no ponto de vista arquitetónico. […]» (sic)

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O Cine-Teatro Vale Formoso

O Cine-Teatro Vale Formoso foi inaugurado no final da década de 1940. Ainda funcionava como cinema até Janeiro de 1970. Em Setembro de 2003, passou a ser usado como templo da IURD. (Créditos fotográficos: Mário Novais – blogue Monumentos Desaparecidos)

Da mesma forma como relatei a minha assiduidade ao Águia d´Ouro, neste local (Cineteatro Vale Formoso, na Rua de São Dinis), apenas fui espectador de cinema, tendo seguido atentamente as notícias, em 2021, de uma possível requalificação como espaço artístico.

O cineteatro Vale Formoso foi construído em 1944, sob projecto do arquitecto Francisco Granja, tendo funcionado como sala de cinema até à década de 1980, quando foi adquirido pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que o adaptou a templo. Tendo, em 2010, a IURD construído um edifício de raiz no cruzamento das ruas Egas Moniz e Serpa Pinto, no Porto, desconhece-se que destino será dado ao velho Vale Formoso, entretanto encerrado.

(Créditos fotográficos: Filipa Brito – porto.pt)

Entre as décadas de 1950 e 1970, este cinema (a par de outros, como o Júlio Dinis, o Cinema do Terço, Passos Manuel, etc.) foi considerado como uma das salas de referência da cidade do Porto, tendo sido explorado pela Lusomundo.

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O Cinema Nun’Alvares

No cinema Nun´Alvares, que foi, em tempos, sede da Orquestra Sinfónica do Porto, ensaiamos com o mestre Gunther Arglebe, a minha encenação da ópera de Mozart La Finta Sempllice, a estreia seria, mais tarde, no Teatro Carlos Alberto, com cenários e figurinos de José Manuel Pereira. O maestro e amigo, em 1947, quando se fundou a Orquestra Sinfónica do Porto, passou a integrar a instituição como terceiro flautista, ascendendo rapidamente a líder da secção das flautas. Em 1969, aceitou o convite para dirigir a Orquestra Sinfónica do Porto.

O Cinema Nun’Álvares abriu, em 1959, com 192 lugares. (Créditos fotográficos: Manuel Roberto – publico.pt)

Em Abril de 2019, o antigo Cinema Nun’Álvares, no Porto, reabriu como clube de jazz, tendo estado encerrado desde 2006.

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O Cinema Júlio Dinis

Antigo Cinema Júlio Dinis. (Créditos fotográficos: Manuel de Sousa –pt.m.wikipedia.org)

Lembro-me de ter visto, neste cinema, entre muitos outros filmes, o filme Dial M for Murder (Chamada para a Morte), de 1954, dos géneros crime e mistério, realizado por Alfred Hitchcock, baseado na peça teatral de Frederick Knott, com interpretação de Ray Milland, Grace Kelly, Robert Cummings, Anthony Dawson e John Williams.  Magnífica adaptação para o cinema de uma peça de teatro. Foi este o terceiro filme a cores do Hitchcock e o primeiro filme com Grace Kelly.

Interpretação de Cummings, de Kelly e de Milland. (en.wikipedia.org)

Sobre o passado e o futuro deste local, recordo um belo artigo aparecido no Público, na edição de 15 de Agosto de 2005: “Combater a solidão num antigo cinema. Lemos que os actores das telas inundaram o palco, saltaram do ecrã para fora e tomaram conta da plateia, como num filme de Woody Allen ou numa peça de Luigi Pirandello:

Na Rua de Costa Cabral, outro espaço anima as terças e quintas-feiras à tarde da invicta, a Danceteria Júlio Dinis, onde, outrora, existiu um cinema. As paredes de madeira foram preservadas. A tela de projecção de filme deu lugar a um palco, onde o grupo musical convidado actua. A pista de dança tomou conta do espaço anteriormente ocupado pelas cadeiras de visionamento de filmes. Mais de cem pessoas animam o salão. […]”

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O Teatro do Campo Alegre

Teatro Municipal – Campo Alegre (visitporto.travel/pt-PT)

Antes de existir o Teatro Campo Alegre (hoje municipal), obra que se deve à tenacidade da Seiva Trupe – Teatro Vivo C.R.L., esta companhia profissional de teatro tinha já o seu local nas proximidades – talvez onde hoje se encontra o centro de cópias “O Grilo” e a Federação Académica do Porto. É um teatro-galpão, no melhor sentido da palavra, no qual representaram, durante anos, a sua mais popular experiência teatral “Um Cálice do Porto” (comédia desbragada que caracterizou a peça de 1982, muito próximo do “teatro de revista”), de Benjamim Veludo, Manuel Dias e Norberto Barroca. Foi a peça que mais sucesso fez na Seiva Trupe. Estreou em 1982 e manteve-se dois anos em cena.

O encenador Norberto Barroca. (cnc.pt)

O encenador Norberto Barroca (1937- 2020) lembra a sua experiência, na companhia teatral para a qual criou um “Um Cálice do Porto”, em 1982. Foi uma intuição sua, diria mais tarde: “Eu queria fazer um espetáculo sobre o Porto; tinha de ser ligado ao vinho do Porto, com várias etapas da história da cidade. E tinha que ter música, e ter números entre o sério e a crítica do tipo do teatro de revista, com referências à atualidade (…). Fizemos aquilo sem dinheiro nenhum.” (sic)

(Direitos reservados)

Prosseguindo a leitura do artigo evocativo de Norberto Barroca, na página electrónica do Centro Nacional de Cultura, é-nos confirmado que os dois anos em que o espectáculo se manteve em cartaz, feito inédito, se tornaram lendários: “Houve pessoas que viram dezenas de vezes. Houve um senhor que comprou o espetáculo para festejar o aniversário de casamento (…). Houve um espectador que recebeu o prémio de espectador mais assíduo (…). Acho que, de algum modo, se inaugurou uma nova época e um outro modo de fazer teatro.” (sic)

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O auditório da Cooperativa do Povo Portuense

Também foi local de representações teatrais, companhias como a Seiva Trupe, o Teatro Experimental do Porto e o Teatro Art´Imagem, entre outras. Aqui, apresentámos, com o Teatro Art´Imagem, o nosso espectáculo “Histórias de Pássaros”.

(Direitos reservados)

Histórias de tradição indígena sul-americana, da Índia e da tradição europeia evocam estas “Histórias de Pássaros”, nas quais o tema central é, repetidamente, o sacrifício das aves pelos seres humanos. Sacrifício que se revela inútil perante a indiferença, a presunção, a mesquinhez ou a soberba das personagens centrais. É nesta vertente que o tema do sacrifício se repete no conto de Anabela Mimoso, aliando o seu relato “O Menino Pássaro” às histórias antigas, único conto original escrito especialmente para este espectáculo. Estes textos foram levados à cena, em 2003, pelo Art’Imagem, com encenação da minha responsabilidade.

A sala de espectáculos da Cooperativa do Povo Portuense constitui, no edifício sede, um lugar importante e tem um papel icónico.

A sala de espetáculos da Cooperativa do Povo Portuense (CCP). (cooppovoportuense.pt)

Uma breve nota informativa, na página electrónica da CCP, ressalta: “Gerações de Cooperativistas, Associativistas e Habitantes da Cidade recordam a sala como primeiro refúgio da liberdade, durante décadas o espaço foi para as artes e cultura um lugar especial.”

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Corolário:

“El Teatro es la tierra del fuego… durante siglos los teatros no pudieron sustraerse a su cita com las llamas…”, sublinha Eugénio Barba, no seu discurso de agradecimento pelo título de “Doutor Honoris Causa” conferido pelo Instituto Nacional del Arte de Buenos Aires, em 5 de Dezembro de 2008.

Importa ainda referir que os teatros que se salvaram do “incêndio” foram o Teatro Nacional São João, o Coliseu do Porto, o Batalha, o Passos Manuel e o abandonado Olímpia.

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23/02/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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