Espaços teatrais na cidade do Porto (III): o Cine-Teatro Águia d´Ouro à Batalha
Confesso que nunca vi teatro neste local, mas fui um assíduo espectador de cinema, nas matinés (sessões diurnas) e, principalmente, nas sessões da meia-noite, que eram sempre muito concorridas e comentadas pelos espectadores. Sobre isto, há muitas anedotas, alguma verídicas e outras não.
Lembro-me de que, no “hall” da entrada, havia uma pequena escultura feminina numa coluna e que, a propósito, alguém me comentou – já não me lembro quem – que a modelo era a mesma da famosa escultura que está na Avenida dos Aliados: a Menina Nua (o seu verdadeiro nome é Fonte da Juventude), escultura de 1929, da autoria de Henrique Moreira.
Este escultor, Henrique Moreira (1890-1979), é também autor do Monumento aos Mortos da I Guerra Mundial, na Praça de Carlos Alberto (1928), e contribuiu para a conclusão do Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, na rotunda da Boavista (1952).
Duarte Ivo Cruz recorda-nos, no seu artigo “Cinema-Teatro Águia D’Ouro e as origens do Cinema Português”, falando também da reconversão do edifício:
«[…] Exemplo flagrante dessa “reconversão” é o antigo Teatro-Cinema Águia d’Ouro, hoje transformado em hotel, mas com o mérito de o restauro manter em excelentes condições a impressionante fachada arte nova. É pois um hotel: mas antes de ser teatro e cinema, foi, a partir de 1839, um café, o que permite pensar que se retomou a tradição de prestação de serviços de hospedagem e/ou alimentação…
Em 1908, Sousa Bastos, no clássico e na época atualizadíssimo “Diccionário do Theatro Português” escreveu sobre o Teatro Águia de Ouro: “Tem 60 camarotes em duas ordens e duas frisas; 600 lugares de plateia e 350 de galeria”.
Teatro foi, durante décadas, mas também um dos primeiros cinemas do Porto, pelo menos desde 1907, e assim se manteve com alternativas de espetáculo teatral e cinematográfico, até aos anos 80/90 do século passado. A partir de 2006 inicia-se a reconversão em hotel, com o mérito de se ter restaurado a impressionante fachada. O que resta do teatro e do cinema? Antes de mais, como se disse, a esplendorosa fachada. Mas mais alguma coisa – e sobretudo, a memória urbana, desde logo, na parede, placas recuperadas assinalando espetáculos “memoráveis” para a época…
Mas também um arquivo fotográfico que recorda a harmonia da sala à italiana, com as frisas e camarotes antes das primeiras obras e fotografias da fachada, marcante na beleza estilística e decorativa, mas num estado de conservação duvidoso: felizmente, nas obras de restauro e adaptação a hotel, houve o bom senso e bom gosto de recuperar o esplendor e rigor estilístico do edifício, hoje notável no ponto de vista arquitetónico. […]» (sic)
.
O Cine-Teatro Vale Formoso
Da mesma forma como relatei a minha assiduidade ao Águia d´Ouro, neste local (Cineteatro Vale Formoso, na Rua de São Dinis), apenas fui espectador de cinema, tendo seguido atentamente as notícias, em 2021, de uma possível requalificação como espaço artístico.
O cineteatro Vale Formoso foi construído em 1944, sob projecto do arquitecto Francisco Granja, tendo funcionado como sala de cinema até à década de 1980, quando foi adquirido pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que o adaptou a templo. Tendo, em 2010, a IURD construído um edifício de raiz no cruzamento das ruas Egas Moniz e Serpa Pinto, no Porto, desconhece-se que destino será dado ao velho Vale Formoso, entretanto encerrado.
Entre as décadas de 1950 e 1970, este cinema (a par de outros, como o Júlio Dinis, o Cinema do Terço, Passos Manuel, etc.) foi considerado como uma das salas de referência da cidade do Porto, tendo sido explorado pela Lusomundo.
.
O Cinema Nun’Alvares
No cinema Nun´Alvares, que foi, em tempos, sede da Orquestra Sinfónica do Porto, ensaiamos com o mestre Gunther Arglebe, a minha encenação da ópera de Mozart La Finta Sempllice, a estreia seria, mais tarde, no Teatro Carlos Alberto, com cenários e figurinos de José Manuel Pereira. O maestro e amigo, em 1947, quando se fundou a Orquestra Sinfónica do Porto, passou a integrar a instituição como terceiro flautista, ascendendo rapidamente a líder da secção das flautas. Em 1969, aceitou o convite para dirigir a Orquestra Sinfónica do Porto.
Em Abril de 2019, o antigo Cinema Nun’Álvares, no Porto, reabriu como clube de jazz, tendo estado encerrado desde 2006.
.
O Cinema Júlio Dinis
Lembro-me de ter visto, neste cinema, entre muitos outros filmes, o filme Dial M for Murder (Chamada para a Morte), de 1954, dos géneros crime e mistério, realizado por Alfred Hitchcock, baseado na peça teatral de Frederick Knott, com interpretação de Ray Milland, Grace Kelly, Robert Cummings, Anthony Dawson e John Williams. Magnífica adaptação para o cinema de uma peça de teatro. Foi este o terceiro filme a cores do Hitchcock e o primeiro filme com Grace Kelly.
Sobre o passado e o futuro deste local, recordo um belo artigo aparecido no Público, na edição de 15 de Agosto de 2005: “Combater a solidão num antigo cinema”. Lemos que os actores das telas inundaram o palco, saltaram do ecrã para fora e tomaram conta da plateia, como num filme de Woody Allen ou numa peça de Luigi Pirandello:
“Na Rua de Costa Cabral, outro espaço anima as terças e quintas-feiras à tarde da invicta, a Danceteria Júlio Dinis, onde, outrora, existiu um cinema. As paredes de madeira foram preservadas. A tela de projecção de filme deu lugar a um palco, onde o grupo musical convidado actua. A pista de dança tomou conta do espaço anteriormente ocupado pelas cadeiras de visionamento de filmes. Mais de cem pessoas animam o salão. […]”
.
O Teatro do Campo Alegre
Antes de existir o Teatro Campo Alegre (hoje municipal), obra que se deve à tenacidade da Seiva Trupe – Teatro Vivo C.R.L., esta companhia profissional de teatro tinha já o seu local nas proximidades – talvez onde hoje se encontra o centro de cópias “O Grilo” e a Federação Académica do Porto. É um teatro-galpão, no melhor sentido da palavra, no qual representaram, durante anos, a sua mais popular experiência teatral “Um Cálice do Porto” (comédia desbragada que caracterizou a peça de 1982, muito próximo do “teatro de revista”), de Benjamim Veludo, Manuel Dias e Norberto Barroca. Foi a peça que mais sucesso fez na Seiva Trupe. Estreou em 1982 e manteve-se dois anos em cena.
O encenador Norberto Barroca (1937- 2020) lembra a sua experiência, na companhia teatral para a qual criou um “Um Cálice do Porto”, em 1982. Foi uma intuição sua, diria mais tarde: “Eu queria fazer um espetáculo sobre o Porto; tinha de ser ligado ao vinho do Porto, com várias etapas da história da cidade. E tinha que ter música, e ter números entre o sério e a crítica do tipo do teatro de revista, com referências à atualidade (…). Fizemos aquilo sem dinheiro nenhum.” (sic)
Prosseguindo a leitura do artigo evocativo de Norberto Barroca, na página electrónica do Centro Nacional de Cultura, é-nos confirmado que os dois anos em que o espectáculo se manteve em cartaz, feito inédito, se tornaram lendários: “Houve pessoas que viram dezenas de vezes. Houve um senhor que comprou o espetáculo para festejar o aniversário de casamento (…). Houve um espectador que recebeu o prémio de espectador mais assíduo (…). Acho que, de algum modo, se inaugurou uma nova época e um outro modo de fazer teatro.” (sic)
.
O auditório da Cooperativa do Povo Portuense
Também foi local de representações teatrais, companhias como a Seiva Trupe, o Teatro Experimental do Porto e o Teatro Art´Imagem, entre outras. Aqui, apresentámos, com o Teatro Art´Imagem, o nosso espectáculo “Histórias de Pássaros”.
Histórias de tradição indígena sul-americana, da Índia e da tradição europeia evocam estas “Histórias de Pássaros”, nas quais o tema central é, repetidamente, o sacrifício das aves pelos seres humanos. Sacrifício que se revela inútil perante a indiferença, a presunção, a mesquinhez ou a soberba das personagens centrais. É nesta vertente que o tema do sacrifício se repete no conto de Anabela Mimoso, aliando o seu relato “O Menino Pássaro” às histórias antigas, único conto original escrito especialmente para este espectáculo. Estes textos foram levados à cena, em 2003, pelo Art’Imagem, com encenação da minha responsabilidade.
A sala de espectáculos da Cooperativa do Povo Portuense constitui, no edifício sede, um lugar importante e tem um papel icónico.
Uma breve nota informativa, na página electrónica da CCP, ressalta: “Gerações de Cooperativistas, Associativistas e Habitantes da Cidade recordam a sala como primeiro refúgio da liberdade, durante décadas o espaço foi para as artes e cultura um lugar especial.”
.
Corolário:
“El Teatro es la tierra del fuego… durante siglos los teatros no pudieron sustraerse a su cita com las llamas…”, sublinha Eugénio Barba, no seu discurso de agradecimento pelo título de “Doutor Honoris Causa” conferido pelo Instituto Nacional del Arte de Buenos Aires, em 5 de Dezembro de 2008.
Importa ainda referir que os teatros que se salvaram do “incêndio” foram o Teatro Nacional São João, o Coliseu do Porto, o Batalha, o Passos Manuel e o abandonado Olímpia.
.
23/02/2023