Estátuas
As melhores, de areia, baixos-relevos desenhados com a palma dos pés na beira mar. Voam, ultra-efémeras, como a representação que, num teatro, a cada noite se refaz para não desaparecer nos corredores sem fundo da memória — não se plasmam em forma fixa.
Falando das formas fixas — nunca o são, sequer o é o som do mar — as que resistem à usura do tempo, erosão, vento, humidade, merda dos pombos e à mão humana, são as que mais dizemos estátuas, ligamo-las a um acto de “petrificação” da memória, do feito, do acontecimento, do símbolo, batalhas, pessoas, combates, memoriais, etc.
Essa petrificação foi tendo ao longo dos tempos finalidades diferentes, a mais comum é a da glorificação de um sujeito ou grupo de sujeitos, de uma batallha, de uma conquista histórica, de uma descoberta, de um acto de resistência e muitas vezes do exacto contrário, é o filho-da-puta o glorificado, como vem no Alberto Pimenta. Acontece também aquele caso em que é o próprio que se ergue a estátua. E temos o caso do Ronaldo, a sofisticação máxima da contrafacção ingénua em forma de estátua, no mesmo estilo da da sra espanhola que melhorou o rosto do Cristo que mal se via — naif ma non troppo.
A quantidade de estátuas de heróis da primeira guerra é entretanto notável, talvez a que, representando um colectivo de soldados, mais proliferado tenha, coisas da República — o que eles amavam as estátuas.
Como não participámos do mesmo modo na segunda não existem e como vivemos tristemente quase cinco décadas em fascismo, é evidente que há inúmeras presenças desse tempo — o padrão das descobertas, por exemplo — que desejamos não esquecer para que não volte esse tempo e que por isso mereceriam ser reenquadradas, explicadas, deslocalizadas, ganhar um estatuto evidente com a sua significação precisa em termos ideológicos como pertença de um tempo que pode perigosamente regressar — não o mesmo, mas o mesmo tipo de misérias e hierarquias, injustiça, desigualdades estruturantes, liberdades destruídas e vida miserável.
Voltando à pedra: a estátua da Rainha Dona Leonor, por exemplo, nas Caldas, já merecia ser outra, partindo do princípio que ela merece uma estátua. A meu ver quem deveria ter muitas estátuas espalhadas pelas cidades em que se ficcionou ter nascido era Gil Vicente. E poderia ser de um material diverso da pedra e construída não na perspectiva, sempre pesada na forma, de um sempre que vem para ficar, mas na perspectiva da sua interacção com cada tempo. Neste actual serviria, pelo menos, para que as pessoas percebessem que esse nome não é apenas um clube de futebol, como Goldoni não é uma marca de tractores.
E uma estátua pode falar, ser um dispositivo sonoro, por exemplo, Vicente podiam ser os autos ao ar livre em acústicas propícias.
A Rainha, nas Caldas, merecia menos fumo de escape nas narinas, nos olhos. Fumada e escurecida é puro peso, uma porção de ruído visivo com forma canónica, mimética de uma imagem que se lhe colou. E foi de facto figura relevante, com a criação de uma medicina já entendida como serviço público e pela atenção aos pobres e um apoio, mesmo que nas datas religiosas e a propósito, ao poeta. Uma cristã a sério.
Não falo de uma modernice qualquer a propósito de uma estátua que venha, da Rainha e de Vicente, tipo uma que há em Évora de elogio ao espírito bombeiro e que é tão para a frente que é mais o elogio do pirómano que do sujeito que de mangueira em punho apaga o fogo. Já o Cutileiro na Praça do Giraldo, aquele dorso de mármore, faz sonhar com Olimpos, assim como outras peças na cidade, como a que está diante do Templo de Diana, no jardim, com o seu buraco-olho mirante sobre a planície a norte, na direcção das Portas de Avis e Alagoa. Lembro-me também do Camões pescador, estátua de bolso, com o seu gorro, frio para caraças. E até do Sebastião em Lagos, que me impressionou pelo peso do elmo — coitado do adolescente.
Continuando nas estátuas sempre ouvi dizer que no Rossio, quem lá está não é o que diz o letreiro, que houve troca de sujeito em pedra, mas como é lá muito em cima e não se lhe reconhece o rosto tanto faz, basta o cavalo. Essa está em segurança, só um alpinista muito militante a derrubaria ou picharia, neste caso para nada.
Numa outra ocasião — é verdade o que conto — ao chegar à RDA, na Praça do Berliner Ensemble, dou com um tipo a pintar o Brecht que está diante do teatro, todo de vermelho e vi-o a ser preso. Não percebi se era uma performance com a polícia socialista-real a colaborar, como uma espécie de coro grego de cassetetes, se era um reality show avant la lettre, que isto passou-se no socialismo científico, o das laranjas da anedota. Imagino que o pintor tenha sido psiquiatrizado e não faço ideia se, com a queda do muro, foi ou não às compras nos supermercados do ocidente com aquela fúria de consumo que foram acumulando durante os anos de miséria muito bem partilhada.
Em boa verdade o problema das estátuas é muito mais vasto que as estátuas e diz respeito às cidades como um todo, cada vez mais décor ao serviço de uma indústria hiperpoluente, sem ETAR à vista, que é o turismo. Essa conversão da memória em memória de pedra do que seja identitário — típico —, em postal e consumo rápido, fast fruição, captura para resgisto dos próprios a sua própria presença de “turista” na paisagem escolhida do seu turismo. Aliás, em registo sempre self made-bio, obviamente como suposto outro coleccionador de imagens do seu próprio reality show biográfico. O turista colecciona, porque logo esquece e isso é o negócio: passar a outra paisagem, fruir o que não chega a viver — é outra coisa — e só pode “flirtar” segundos, a fila dos consumidores do seu tipo a fazer as mesmas coisas é interminável ou tende para isso.
Do que nós precisávamos mesmo era de reinventar a vida.
E nessa perspectiva reinventar as cidades, reformulando a paisagem urbana e os transportes, os tempos e os modos de habitar a cidade, combatendo a sua conversão em musealização para lazer consumista, em comemoração da morte, ao mesmo tempo que num gigantesco parque-cenário para figurantes convencidos que são protagonistas de uma qualquer coisa que é narcisa e vazio, acumulação de “exterioridades” coleccionáveis.
Para terminar, uma vez cheguei à praia de Varela, no Norte da Guiné-Bissau, já perto da fronteira com Casamance e dei com um Diogo Cão gigantesco de patas para o ar. Em 1989 ainda vivíamos abril, os seus efeitos na inércia diversa dos ritmos dos países, de andar para a frente mesmo que para trás e aquela estátua daquele modo, ali na praia deitada, tinha ao mesmo tempo que um significado histórico, um lado cómico. E pensei que assim ali continuaria deitada até que o tempo, ou o mar, a engolisse e que isso não era mau destino, talvez reaprendesse a navegar, boiar. Mais grave e num monumento que mereceria outros cuidados, foi dar com ossadas de militares portugueses mortos em combate, no cemitério militar de Bissau, a saír das campas. Isso sim, chocou-me de forma muito violenta, mas também me ensinou o seguinte: a carne para canhão condição de muitos, é dupla, serve-se em vida, mas também depois da morte.