Este país não é para doentes?
Que dizer da ausência de resposta da governante à disponibilidade de 5.700 médicos voluntários extra-SNS, desde maio de 2020 (9 meses depois…), para colaborar no combate à pandemia, de acordo com as necessidades e as suas competências? E perante a insistência recente de 140 médicos, estes serem remetidos para a Saúde 24 como telefonistas e não ser aproveitada a experiência clínica (muitos são reformados) para exercer presencialmente?
Hesitei muito antes de escrever novamente sobre COVID e, agora, sobre a vacinação anti-COVID. Mais um escriba? Habitualmente, não tenho dificuldades ou problemas em escrever sobre o que sei, deixando para quem sabe (ou julga que sabe), o que eu não sei.
Já existem opinion-makers qb (cuja declaração de conflito de interesses raramente é publicada), dizendo mal por razões político-partidárias ou por interesses económico-financeiros, ou dizendo bem pelos mesmos motivos, acrescidos da bajulação ou dependência.
E há pessoas que não se escusam a dar pontapés na ortografia e na gramática, da mesma forma que agridem pessoas descarregando as suas frustrações, tal como há pessoas para quem os ídolos não têm pés de barro e até pode ser que que venham a “precisar” deles…
Na crise do século, temos um primeiro ministro que tem mostrado ser um estratega político sagaz, com um esforço sobre-humano, ao mesmo tempo que demonstra sensibilidade para causas de defesa da vida, serenidade perante os desafios colocados pela tragédia, equilíbrio na intervenção social premente e sem abusos generalizados, e capacidade na minimização da debacle económica que está a corroer famílias e empresas.
O que não significa que não cometa erros de apreciação (reduzidos face à dimensão do problema, por ora, mas aproveitáveis pela oposição interna), por má informação prévia de ministros não ministeriáveis, por ter colaboradores no Governo que não estão ao seu nível de isenção e competência, por acusar a ciência que é evidência e não contradição, e por ter laivos de indisposição agreste que, sendo humanos, não são muito adequados atingindo quem vem por bem.
E tem pouca margem de manobra para apoiar uma governante em saúde que se autoconsidera vítima de bullying, que chama criminosos a quem a acusa (com ou sem legitimidade moral) de falta de planeamento em saúde, que tem relação tensa e pretensamente superior com os médicos e os enfermeiros, os quais não apreciará, e que corre atrás da epidemia (vide utilização das máscaras, para não ser extenso…).
E que dizer da ausência de resposta da governante à disponibilidade de 5.700 médicos voluntários extra-SNS, desde maio de 2020 (9 meses depois…), para colaborar no combate à pandemia, de acordo com as necessidades e as suas competências? E perante a insistência recente de 140 médicos, estes serem remetidos para a Saúde 24 como telefonistas e não ser aproveitada a experiência clínica (muitos são reformados) para exercer presencialmente?
O sucesso do programa de vacinação anti-COVID é essencial para a sobrevivência e a qualidade de vida em Portugal, como para todo o mundo.
A vacinação é a forma de prevenção da doença mais antiga na época contemporânea, de maior experiência no tempo e metodologia (e por isso deveria ser objetiva e corrente), sendo seguida pela deteção e intervenção nos grupos vulneráveis e de risco, o exame periódico de saúde, as determinantes familiares, ambientais e comunitárias, os rastreios, a educação sanitária e a medicina prospetiva e estimativa de risco para as populações e grupos alvo.
Para a descoberta da vacina anti-COVID contribuíram os cientistas (médicos e micro especialistas), para o seu desenvolvimento e expansão surgem as empresas e trabalhadores altamente qualificados (com interesses legítimos), para a sua aplicação entram os técnicos (médicos em coordenação e enfermeiros em execução) e a função do Estado organizado, para a sua aceitação temos a pedagogia e os cidadãos utilizadores.
Chegada a fase de aplicação e obtida a adesão dos cidadãos, surgem os erros e problemas que não deveriam surgir, as convenientes confusões resultantes do desconhecimento em saúde e doença, os escândalos que ultrapassam a silly season e desamores, a fuga à regra estabelecida promovendo a exceção a uma regra pessoal (e familiar), o corporativismo de múltiplos sectores profissionais e laborais. E ainda o oportunismo do chico-esperto espertalhão e do vigarista enganador (tipo só eu sei como aldrabar o sistema), as falsas virgens de mérito questionável que têm argumentos para tudo (a verdade e o seu contrário) ou não sabiam e não quiseram saber o que era preciso saber, e “a cunha” (em português), de significado literal escasso, mas generalização abundante.
Especificamente, há quem valorize a “cunha”, considerando ser a função principal dos amigos, ser um recurso em vigor assumido pelo próprio, ou por acreditarem na “cunha” como “instituição” e recomendação especial que intercede de forma decisiva.
Há quem a desvalorize, por ser considerado um ato desprezível, ser indigno da competência e da relação saudável, eventualmente com contrapartidas que não se desejam nem se dispõem a facilitar. Em estudo científico que realizei, quanto à importância e influência dos amigos na sua vida, apenas 1,4% dos inquiridos valorizaram muito a “cunha” para resolver os seus problemas…
Todas estas distorções, que representam o “salve-se quem puder!”, não sendo eliminadas na totalidade, seriam minimizadas com (boa) organização ministeriável, competência (e qualificação) em gestão (sem preconceitos), colaboradores da boa liderança política do País com aptidão, maestria, sumidade e humildade no seu lugar.
Tenho muito apreço pelos militares (lembram-me Abril…) e pelos gestores (com formação e carreira e não por emprego). Mas, sem corporativismos, custa-me a compreender que os médicos sejam ignorados para a coordenação da task force da vacinação.
A função médica hoje, restringe-se ao exercício de competência superior e condições inferiores, a ser mão de obra barata e à seriação dos grupos prioritários (com interferências…), de duvidosa autonomia em adulação e servilismo. Aliás, veja-se a prédica dos diretores dos serviços de Infeciologia de 7 hospitais, que apelaram ao respeito e ao protagonismo pela ciência, e à melhoria da comunicação do Governo, feita por quem sabe.
É difícil considerar que o programa de vacinação está a correr bem, quando as vacinas são escassas (pelo menos nas fases iniciais), quando as seringas necessárias parecem estar em risco, quando as normas de priorização são alteradas com frequência, não por crescente evidência científica, mas copiando outros Países a posteriori e mediante reivindicações de prioridade de corporações (bombeiros, várias polícias, agentes funerários, etc.).
Então, pessoas saudáveis são vacinadas antes das pessoas doentes? A linha da frente engloba pessoas com saúde (que não são profissionais de saúde) e pessoas que estão à secretária ou fazem vigilância, atuação e transporte com equipamento de proteção individual completo. Toda a gente, todas as profissões, estão (ou julgam que estão) na linha da frente. Mas muitas pessoas doentes com doenças graves e limitação física (além de pessoas com mais de 80 anos) que já deram o seu contributo à sociedade e comprovadamente estão mais sujeitas à gravidade da COVID-19, ao sofrimento e à morte, são ultrapassadas na prioridade de vacinação por pessoas saudáveis. Então, assim sendo, este País não é para doentes.
Como justificar serem vacinadas pessoas prioritariamente por função e não por doença e sua gravidade, num País que já foi o pior do mundo em taxas de mortalidade e morbilidade, e quando existem as diatribes já referidas, em que os autores se pavoneiam pelas redes sociais e se desdobram em entrevistas justificando o injustificável, como se lidassem com boçais iletrados, conformados com a sua pequenez?
Como entender que se misturem grupos de prioridades na mesma fase de vacinação e se desrespeitem as indicações da OMS e da Comissão Europeia, segundo as quais, apenas se deve avançar para a vacinação de um segundo grupo prioritário, quando está concluída a vacinação do primeiro grupo prioritário, e assim sucessivamente?
A vacinação não está a correr bem, quando é necessária a mudança na liderança da coordenação da task force, quando só se promovem testes, mais testes e mais testes (neste caso bem), mas após alerta repetido de conceituado epidemiologista (entretanto demissionário de orador), quando se hesita na estratégia de confinamento, ora leve ora rígida, quando Portugal é o País da Europa com menor número de doses de vacina administradas por cada 100 pessoas.
E que dizer do agravamento e perda de vidas por doenças não-COVID, relegadas para segundo ou terceiro plano, por não haver recursos humanos suficientes, limitados por (escassas) contratações desmotivadoras da sua capacitação e competência, e por exigência de tarefismo burocrático em substituição de consultas médicas presenciais (o caso dos médicos de família, por exemplo)?
E ainda pela anulação de cirurgias e consultas hospitalares e encerramento de serviços de várias especialidades médicas, por paragem de realização de rastreios e diagnósticos precoces e pela diminuição da vigilância de grupos vulneráveis e grupos de risco, ou pelo medo dos utentes em se dirigirem ou terem dificuldade no acesso aos serviços de saúde, principalmente ao seu médico de família?
Os profissionais de saúde, num dia recebem palmas e elogios, no outro desvalorização e ofensas, o que não se entende. E também não se compreende que, exercendo função de decisor, haja quem os despreze ou deles tenha invídia. Tal como não se compreende que as carreiras médicas sejam desvalorizadas e os seus profissionais ignorados e humilhados e a carreira dos administradores seja premiada com promoções retroativas.
António Arnaut, por demais conhecido, respeitado e reconhecido, dizia: “O maior tesouro do SNS são os seus profissionais! Sem eles, o SNS não existe…”. Que a sua figura emérita não seja uso de conveniência e as suas palavras sejam honradas por quem tem responsabilidades na saúde, na política e na sociedade.
Os médicos e enfermeiros alemães (e outros, como os franceses e os luxemburgueses) são bem-vindos, sem perda de respeito pela idoneidade, competência e dedicação dos profissionais de saúde portugueses, que além do desempenho qualificado em Portugal, têm experiência em medicina de catástrofe e créditos internacionais (médicos, enfermeiros e logísticos) nas grandes tragédias da Humanidade (as múltiplas guerras incluindo Timor, África de desigualdade e carência de Desenvolvimento e direitos humanos, o tsunami no sudeste asiático, o terramoto no Haiti, as calamidades em Moçambique e Filipinas, etc.).
Bem sei que a adulteração às regras de ordenação da vacinação é limitada, percentualmente, mas centenas ou milhares de pessoas saudáveis ou não prioritárias que são vacinadas fora da sua vez e em fase prioritária, aumentam o risco de centenas ou milhares de mortes de doentes graves e de pessoas debilitadas na quarta idade, que seriam prioritárias.
Eu manifesto o meu conflito de interesses. Sou médico e sou doente, espero ser vacinado. Por isso, estou limitado para exercer com amplitude que desejaria a minha missão, porque ser médico é ser humano e é uma missão. Lamento a perda de vidas e da qualidade de vida das pessoas que esta catástrofe dizimou e ainda continua a destruir, mas não me deixam ajudar a ajudar.
Ainda confio que os erros serão corrigidos, que a humildade imperará nos decisores, que o civismo se sobreporá ao individualismo, que haverá sucesso na vacinação anti-COVID, que a estratégia de testar, testar, testar se sobreporá a confinar, confinar, confinar, e que se deixará de correr atrás do prejuízo, iniciado com a recusa da utilização das máscaras e múltiplos exemplos sucessivos durante os meses mais longos da vida e da morte.
Quando o ex-Presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica defendia os pobres e desfavorecidos e promovia a igualdade, chamavam-lhe populismo, dizia, aqueles que “queriam justificar a própria ambição pessoal”. E concluía, “Eu chamo-lhe ser socialista. De facto”.
Se o ideário socialista defende as populações e os direitos humanos (o que acredito), haverá reflexão profunda do primeiro ministro sobre a sua cobertura política a quem não é da ciência nem da política e haverá novos protagonistas em política de saúde como ato de cultura e ciência, sem profetas da desgraça.
Este país e o mundo serão capazes, também para cuidar dos doentes e das pessoas mais fragilizadas, sejam doentes COVID ou doentes não-COVID, com um novo paradigma da saúde centrado não só nas doenças crónicas, mas também nas doenças infeciosas emergentes, respeitando os profissionais (médicos, enfermeiros e operacionais dos serviços de saúde) e protegendo os doentes, agora prioritários, mas pouco.