Estrelas, sempre estrelas

 Estrelas, sempre estrelas

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– Hóspedes, mas estes são diferentes.

Levava água no bico a nova de Ti Manuel, o brasuca. O mistério foi crescendo quando na quelha das traseiras da pensão particular a vizinhança, aos cochichos, aguardava pela altura de entrar.

Na sala de jantar, acotovelando-se, homens de chapéu na mão e mulheres com os chanatos fora dos pés em plebeia atitude de submissão. Ansiedade e o maravilhamento: Encostado ao louceiro embelezado por malgas de marmelada e bojuda frascaria de compota, um trio de saltimbancos reluzia como fosse a Santíssima Trindade. Casal de meia-idade disfarçada, filho de verdes anos, tenrinhos que nem salada de morujes. O pai, esguio, enfiado num fato tom de mel agarrado ao saxofone. A mulher, «a minha senhorita», cabelos exóticos, sandálias de tacão alto, tinha um acordeão Paolo Sopranini no regaço. O pechinchinho, servindo-se de gestos corteses e olhar matador, dava voz de ouro brunido a canções de arrebatar um coração tão seco como as palhas do celeiro.

Então à noite, sob a luz do Petromax abriam-se as pétalas da natureza humana. No intermezzo da actuação, mocinhas polinizadas pelo belo cântico não evitavam o repentino desabrochar de amores. Apoteose final. Altano, o trio curvando-se para a assistência e logo o brotar do tumulto:

– Bravo!

– Muito bem!

– Sã senhori!…

Durante dois dias assim foi a celebração do espectáculo. Na emoção adormecida de cada um, as vedetas faziam acordar paixões, melhor dito, faziam acordear paixões… Pela primeira vez no livro de horas da pensão particular ficaram esquecidas as panelas no fogão a lenha que muito se babaram até os odores penetrarem na sala de jantar – e de actuar – provocando alarmes, aflições e recriminações. Porque, teimava o velho fadário, primeiro as obrigações, depois as distracções.

– O fado da desgraçadinha, órfã de pai e mãe, pela voz inconfundível de minha senhorita – anunciava o homem agarrado ao saxofone.

Seguiam-se dramas e tragédias em sextilha que amachucavam os circundantes. Para desanuviar:

– Queremos a Malagueña.

– La Malagueña Salerosa!,

surpreenderam os apelos da Candidinha, a menina de boas-famílias que no Coliseu do Porto ensopou cinco lenços graças a um filme protagonizado por Joselito, o pequeno cantor, Una leyenda infantil, La voz de oro com agudos que faziam estremecer plateias, gerais e balcões. Na terra contaria e recontaria a película depois de ler o catecismo aos da segunda classe. Para o auditório entrado na adultícia escolhia a canção La Núbia, interpretação de Antonio Prieto que punha a sonhar todas as candidatas à subida do altar com raminho de laranjeira entre as mãos enluvadas. As mesmas meninas debulhadas em lágrimas devido aos épicos lances de paixão à Scarlett O´Hara que a minha tia, a limar as unhas das mãos, lhes narrava antes de tudo o vento levar.

La Campanera, anunciou o trio.

E, a espanholar, a composição de Genaro Monreal:

Para quê pintas els ogos
flor de lírio rêal…

– A Granada!

 Venha a Granada, criação de Agustín Lara, suplicou o velho Forquilha, lorpeirão de fama e labrego por descendência, sempre tão anojado e vai agora verdadeiramente em posição de louvar aquele vedor de paixonetas subterrâneas, bem capaz de fazer emergir o tom de Mário Lanza. Bebia água fresca com sumo de limão e açúcar mascavado, bichanava qualquer coisa aos pais e de novo o pingente a florir a sala.

El Pastor.

Avé-Maria.

– Vá, só mais uma: Guitarra Romana, com o acompanhamento de minha senhorita.

E ele, o filho lindo, no estribilho:

Suona, suona mia guitarra
lascia piangere il mio cuore
senza gioie e senza amore
mi rimami solo tu.

Lágrimas reprimidas, engolir em seco.

Ó guitarra romana
accompagnami tu.

Entre aplausos, beijos e abraços, fungos e raminho de promessas duradouras o trio foi de abalada com um chilro de andorinhas no beiral das casas de Almendra. Nesse dia as cotovias-do-monte palraram, muito haveriam de palrar, fizeram coro os rouxinóis namoradeiros e já umas tantas mulheres partiam para os cerros, ladeiras e longos vales de verdura à cata de garrobas, às garrobas, às garrobas meu povo sob chapadas de sol e jeiras de côdeas.

Ninguém quis saber donde o trio provinha, para onde o ganha-pão o levou. Do género, “chegou e disse, tirou o chapéu e foi-se”.

Amos da admiração, os trovadores, os cantores repentistas, os menestréis ascenderam ao reino dos acontecimentos inesquecíveis e por lá se encontram ainda, cuido eu. Que assim seja para bem dos pensamentos escondidos em montes e montes de chocolate em pó.

Minha avó Sílvia Paixão, a eterna cozinheira bordadeira e mais as filhas, Maria da Luz e Ivone, compreendendo a alma dos destinos errantes que pela pensão particular iam pernoitando, não estiveram com meias-medidas. Sem o darem a entender, porque gestos de partilha são muito feios quando exibidos, nada levaram pelas diárias, pagariam na próxima vez quando por ali arribassem. E alindaram o fedelho de vozinha d´ouro, ó solo-mio! com camisas, camisolas de malha, um par de calções e até uma gravatinha estica-colarinhos do meu gavetão, a pretexto de já me ficarem apertadas – diziam justas.

Em fascínio por aquela passagem de artistas, grandes artistas, qual?!, as maiores celebridades, as mais brilhantes estrelas do Mundo, muito chorei no recreio da escola primária ao lobrigar, lá ao longe, na curva da estrada, envolvido em claves de sol, um trio derreado com malas e sacos caminhando lentamente pela estrada de alcatrão. Instantes depois, sumir-se-ia num pífio jubileu por entre um pano de fundo de amendoeiras em flor.

Suona, suona mia guitarra
lascia piangere il mio cuore…

“Um dia voltam. Têm de voltar, catancho”, veredictou Ti Manuel, o brasuca, sacho ao ombro, a caminho de esventrar a terra-mãe.

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21/08/2020

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Alfredo Mendes

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