Evolução do conhecimento farmacêutico e da sua aplicação aos doentes

 Evolução do conhecimento farmacêutico e da sua aplicação aos doentes

(es-us.noticias.yahoo.com)

O termo “farmácia”, proveniente do termo grego “phármakon”, que significa medicamento, é associado à deusa grega Pharmakis, titular do conhecimento terapêutico, sobretudo, das plantas.

Desde os primórdios, as doenças e os acidentes, pela debilitância que originam, concitaram a atenção individual e coletiva, para minorar ou anular os seus perniciosos efeitos. Assim, a busca de substâncias e de processos para a cura é constante e levou o homem ao encontro do fármaco.

No Paleolítico, iniciou-se, para fins curativos, a utilização de plantas, de derivados de animais e de minerais. E as terapêuticas assentavam em crenças e em mitos, segundo os quais demónios causadores de doença e deuses proporcionavam a cura aos que a merecessem.

Artefato dos Sumérios, que acreditavam que a deusa Inanna roubara a escrita de Enki, o deus da sabedoria. (© Getty Images – bbc.com)

Na antiga Mesopotâmia, os Sumérios dirigiam preces aos deuses Ea, Anu, Inanna-Istar, Chamach e Marduk, divindades relacionadas com o quotidiano das pessoas: dor de cabeça, pesadelos e outros achaques. Outros povos da Mesopotâmia prestavam culto a outras divindades conexas com a Medicina, nomeadamente, Ninazu deus-médico e o seu filho Ningishrida, representado por dupla cabeça de serpente, e Gula, deusa da arte de curar.

Nas civilizações mesopotâmicas, era comum a crença de que os deuses decidiam da incidência da doença, uma consequência de comportamentos que desagradavam às divindades. E os deuses podiam curar o doente em recompensa por uma ação benéfica ou pelo arrependimento.

Mesopotâmia (conhecimentocientifico.r7.com)

Os médicos eram os sacerdotes-médicos-farmacêuticos. Os sacerdotes separaram-se do médico-farmacêutico na Antiguidade, ao passo que o médico se separou do farmacêutico na Idade Média.

Médicos e farmacêuticos, apesar de estes poderem ser barbeiros ou sacerdotes, gozavam de prestígio social, devido à profissão, mas tinham responsabilidades e riscos associados, pois cortavam-lhes a mão ou escravizavam-nos, se um homem livre morresse numa operação.

Apesar de o tratamento da Mesopotâmia ter origem religiosa, encontrou-se uma série de tabuinhas com informação acerca das doenças, das terapêuticas e dos medicamentos (de origem animal, mineral e vegetal). Referia-se a via de administração de preparações medicamentosas e de veículos empregues, sendo os mais utilizados o vinho, a cerveja e diversos óleos. E ficou a referência ao cultivo e à comercialização de plantas medicinais, assim como ao fabrico de diversos produtos como corantes, sabões e cosméticos. Sobressai a tábua de Nippur, que tem o título de documento medicinal mais antigo, remonta ao século III a. C. e contém cerca de 15 receitas.

A tábua de Nippur, importante cidade suméria, que é tida como o mais
antigo documento farmacêutico da História.
(museudouniversodafarmacia.com.br)

A prática farmacêutica – bem evidenciada: até havia uma rua na Babilónia destinada ao comércio farmacêutico – englobava operações como a secagem, a pulverização, a extração de sucos, a filtração, a decantação, a maceração, a digestão e a ebulição.

Os Egípcios foram tidos como povo cuidadoso, quanto ao seu físico. Está ligada à beleza e ao cuidado com a pele grande parte dos seus objetos, nomeadamente produtos de maquilhagem e perfumes. Eram crentes na relação entre a doença e o castigo divino. Assim, havia a associação de divindades à prática médica, com destaque para: Toth, deus da ciência e da medicina e patrono dos médicos, e Imhotep, médico divinizado a quem os gregos chamaram Asclépio. E estudos efetuados em múmias revelam que esta civilização padecia de diversas patologias, nomeadamente oculares, de bexiga, dos intestinos, tuberculose, doenças parasitárias, doenças da pele, obesidade, hipertrofia genital, entre outros problemas. A função renal era desconhecida. E os tratamentos eram acompanhados por palavras mágicas.

Médicos-farmacêuticos do Egito. (studio3portal.webnode.page)

Os doentes podiam ser tratados por médicos e por mágicos: os médicos recorriam à magia para a preparação de medicamentos e os mágicos recorriam a medicamentos. Os médicos-farmacêuticos do Egito são reconhecidos pela curiosidade e pelo sentido crítico. São abundantes as anotações deixadas sobre os tratamentos efetuados. Quando a Medicina e a Farmácia se separam da religião, começaram a surgir funções e tarefas farmacêuticas: a recolha e armazenamento dos compostos terapêuticos, a preparação dos medicamentos e a sua conservação.

No Mundo Clássico – ou seja, nas civilizações grega e romana – também há relatos da existência de deuses conexos com a Medicina e com a Farmácia (Pharmakis, já referida; Apolo, deus fundador da Medicina; Artemisa, irmã de Apolo com poderes curativos para as mulheres; Asclépio, símbolo da Medicina; e Higia, filha de Asclépio, deusa da Saúde e da Higiene), o que mostra a relação entre a doença e as causas divinas. Porém, foram os Gregos quem iniciou a explicação da doença como evento natural.

Hipócrates (460-355 a.C.). (pt.wikipedia.org)

Por volta do ano 500 a.C., os filósofos questionaram a origem da doença e iniciaram a procura da compreensão da Natureza. Surge, então, a teoria dos quatro elementos – água, ar, fogo e terra – matérias a partir das quais tudo é constituído. Hipócrates (460-355 a.C.), médico grego e tido como o “Pai da Medicina”, desenvolveu a teoria dos humores (sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra) para explicar a causa das doenças, baseado na teoria dos quatro elementos. Os desequilíbrios entre os quatro humores estariam na base do aparecimento da doença. O trabalho dos médicos era determinar, conforme o estado do doente, que humor estaria em falta ou em excesso e estabelecer a medicação adequada.

Pedânio Dioscórides (es.wikipedia.org)

Iniciou-se, então, a “farmacologia ocidental”. Vários documentos mostram como estava avançada a prática farmacêutica, referindo o uso de cataplasmas, de gargarejos, de pílulas, de unguentos, de óleos, de colírios, de ceratos, de inalações, entre outros. E surgiram novas profissões, no âmbito farmacêutico, como vendedores de medicamentos e preparadores de remédios.

É difícil distinguir entre a medicina grega e a romana, pois a medicina romana foi fortemente influenciada pela grega, daí a adoção do termo medicina greco-romana.

Capa de uma versão da obra “De
Materia Medica”, datada de
1554, Lião. (pt.wikipedia.org)

Aquando da formação do Império Romano, os médicos gregos tiveram papel fundamental na implementação de uma prática médica mais direcionada para o medicamento. Entre os médicos responsáveis pela medicina greco-romana, destacam-se Pedanius Dioscórides (século I d. C.), médico e naturalista grego de elevada importância para a evolução da Medicina. Foi o autor do maior guia farmacêutico da antiguidade, “De Materia Medica”, com referências a mais de 600 substâncias ativas derivadas de plantas, 35 produtos de origem animal e 90 minerais. É uma obra extraordinariamente completa (na génese das disciplinas de Farmacologia e de Farmacognosia), na qual Dioscórides descrevia todo o tipo de informação para cada planta, desde o seu habitat à posologia e ao modo de administração.

Outra personalidade muito importante, contemporânea a Dioscórides foi Celso, que, apesar das dúvidas quanto à sua profissão, médico ou enciclopedista, dispôs os medicamentos em simples ou compostos. Os simples eram os diuréticos, os purgantes, os narcóticos, os sudoríferos; e os compostos eram divididos em pílulas, gargarejos, emplastros, unguentos, colírios e antídotos. E Galeno, médico grego nascido no século II d. C., na obra “De methodo Medendi” (“A Arte de Curar”), desenvolve temas, como as propriedades e a composição dos medicamentos simples e compostos, com base na doutrina hipocrática.

Cláudio Galeno ou Élio Galeno. (pt.wikipedia.org)

A terapêutica de Galeno (“Pai da Farmácia”) provocava o efeito contrário ao sintoma do doente, por exemplo, se este sentisse frio, seria tratado com medicamento quente. E Galeno descreveu a importância de aspetos como a correta prescrição, o modo de administração, a quantidade necessária de princípio ativo para exercer efeito terapêutico e a duração do tratamento.

A Medicina árabe do século VII teve como objetivo a descoberta e a obtenção de substâncias dotadas de capacidades terapêuticas. O contacto com a alquimia permitiu considerável avanço na Medicina e na Farmácia. Foi quando surgiram os formulários farmacêuticos com fórmulas e receitas médicas e com o modo de preparação. Alguns consideram que foram os Árabes os responsáveis pela separação da Farmácia da Medicina, assim como do desenvolvimento de novas formas farmacêuticas como xaropes, conservas, confeções e elixires.

Uma das importantes contribuições árabes para a farmácia
foi a introdução de um novo género de literatura
profissional: os formulários para uso dos farmacêuticos ou
outros preparadores de medicamentos.
(museudafarmacia.pt)

Nesta altura, o conceito de “farmácia” é alterado e são exigidos conhecimentos técnicos e científicos para exercer a profissão. O farmacêutico é o responsável pelo conhecimento, pela procura e pela manipulação das substâncias terapêuticas, de modo a obter medicamentos de fácil administração aos doentes. O medicamento deve ser o mais semelhante possível ao alimento e só pode utilizar-se quando a alimentação não consegue restabelecer o equilíbrio do organismo. Era grande a importância do consumo e da qualidade de água. E, para diabéticos, recorria-se à preparação de fórmulas à base de leite de vaca, que seria capaz de engrossar o sangue.  

Na Europa, os avanços significativos na área da saúde iniciaram-se no século XII, com o aparecimento de três profissionais de saúde: médico, cirurgião e boticário (de “apotheca”, armazém, no Latim). Em 1240, o rei Frederico II da Sicília, publicou a Magna Carta da Farmácia, pela qual a profissão farmacêutica foi reconhecida como independente da médica.

A farmácia europeia da época medieval, tendo por base a influência árabe, é caraterizada por um espaço pequeno, tipo armazém aberto para o mercado. Atrás do balcão, havia prateleiras com os medicamentos simples e compostos. Procurava-se a utilização de substâncias exóticas, como o corno de unicórnio, animal mítico que só podia ser captado por uma jovem virgem. Beber um líquido a partir do corno era uma forma de proteção contra a morte. Os farmacêuticos da altura contornavam a incapacidade de captura deste animal com a utilização de cornos de rinoceronte, de veado ou de antílope. O corno era o símbolo da farmácia da Europa Ocidental.

Os boticários portugueses a as drogas medicinais orientais. (hamaisvida.pt)

A Idade Média ficou também marcada pelo início da produção de perfumes, com álcool na sua constituição, uma vez que foi em 1320 que os químicos italianos desenvolveram o instrumento para a produção de álcool, denominado de serpentina de refrigeração.

O Renascimento questionava tudo o que fora desenvolvido até aí. E a saúde não foi exceção. Filipe Aurélio Teofrasto Bombastus von Hohenheim, médico suíço que veio a adotar o nome de Paracelso (pela vontade de demonstrar superioridade em relação ao enciclopedista romano Celso), contestou tudo o que até aí fora escrito sobre Medicina e sobre Farmácia, desde a teoria dos elementos até à teoria dos humores. E formulou a nova teoria que defendia que a doença resulta, não de desequilíbrio entre os quatro humores vitais, mas de anomalia do organismo, sendo que a saúde depende do equilíbrio de três elementos: enxofre, mercúrio e sal. A anomalia, que é do foro químico, tem de ser tratada pela utilização de químicos.

Paracelso, alquimista, médico e astrólogo suíço,
representado num quadro da autoria de Quentin
Matsys. (wikiwand.com)

A terapia de Paracelso incluía, na sua maioria, tinturas, extratos e essências – em oposição aos xaropes e extratos até aí utilizados – considerados como químicos, já que eram obtidos a partir de processos de separação. Também agora, por oposição ao conceito galénico, surge nova teoria quanto à utilização dos compostos. Os seguidores de Paracelso sustentavam que o idêntico cura o idêntico, isto é, o medicamento utilizado deve ser específico para cada patologia.

A época paracelsiana destacou-se pelos avanços a nível químico e metalúrgico, na medida em que foram desenvolvidos os processos de obtenção de compostos metálicos, visando a utilização terapêutica de diversos metais, como ferro, cobre e chumbo, entre outros. E foi então que o farmacêutico deixou de ser apenas botânico e passou a ser químico e botânico e os processos químicos como a destilação, por exemplo, passaram a ser praticados nas farmácias.

Hoje, distingue-se entre laboratório – para a investigação e a produção do medicamento –, farmácia hospitalar (armazém do medicamento para ser aplicado no hospital) e unidade comercial farmacêutica (farmácia comunitária), para distribuição onerosa do medicamento, habitualmente sob prescrição médica, bem como para o aconselhamento e para o apoio ao doente.

Enfim, é longa, espinhosa e controversa a diacronia da ciência e da sua aplicação.

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10/07/2023

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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