Explosão da barragem de Kakhovka criou trágica terra de ninguém
Na madrugada de 6 de junho, a destruição, por explosão, da segunda maior das seis barragens no Dniepre, a barragem da central hidroelétrica de Kakhovka, na cidade de Nova Kakhovka, a 60 quilómetros de Kherson (Sul da Ucrânia), deixou as dezenas de vilas adjacentes, onde residem perto de 38 mil pessoas, em elevado risco de inundação, nas margens daquele rio: a ocidental, controlada pela Ucrânia e a oriental, pela Rússia.
As autoridades ucranianas culpam as tropas russas de terem feito explodir a barragem, por detonação de minas ali existentes; e a Rússia, alegando que foi ato de sabotagem da Ucrânia, já abriu uma investigação. Também os aliados da Ucrânia pediram a abertura de investigações, para apurar quem são os responsáveis.
Cerca de 16 mil pessoas estão na zona crítica na margem ocidental do Dniepre; e, do outro lado, há muitas mais (pelo menos, 22 mil). O Ministério do Interior ucraniano pediu aos residentes de 10 aldeias da margem ocidental e de partes da cidade de Kherson que reúnam documentos essenciais e animais de estimação, desliguem os aparelhos elétricos e abandonem as casas.
A barragem destruída fica na linha da frente sul da guerra da Ucrânia, perto de Kherson, única capital de distrito que os Russos tomaram, mas que voltaram a perder em novembro.
As tropas russas expulsas de Kherson passaram para a outra margem, ocupando Nova Kakhovka, onde fica a barragem. O reservatório, importantíssimo na região, funciona como fonte de água para consumo humano e para rega dos vastos quilómetros quadrados de terrenos agrícolas que ocupam a paisagem do Sul do país. Mais de 700 mil pessoas ficaram sem água potável.
O complexo hidroelétrico – barragem e reservatório –, construído em 1950, é atravessado por uma estrada e por uma linha férrea a ligar as duas margens. Tem 3,2 quilómetros de comprimento e cerca de 30 metros de altura. E a sua água é necessária para arrefecer os reatores da central nuclear de Zaporíjia, a maior da Europa, agora ocupada pelos Russos.
Segundo a empresa estatal ucraniana Ukrgidroenergo, que explora a central hidroelétrica, esta possui a capacidade de 334,8 megawatts (MW), a partir dos 18 milhões de metros cúbicos de água que armazena; e os danos, que são irreparáveis, foram causados por “detonação na casa das máquinas a partir do interior”, podendo o reservatório vir a ficar destruído.
O nível da água em Nova Kakhovka (controlada pela Rússia) tinha subido 10 metros, em poucas horas, segundo as informações das autoridades russas. A água continuava a subir. Foram retirados civis das áreas inundadas, para evitar a perda de vidas. A cidade ainda tem eletricidade, mas algumas localidades já não. Esperava-se que a água continuasse a subir nos três dias subsequentes, sendo possível, só depois, aferir a extensão dos estragos e iniciar a limpeza. No total, cerca de 22 mil moradores de 14 vilas ou cidades da zona ocupada pela Rússia estão em perigo.
Milhares de pessoas de ambos os lados estão a ser e vão ser mais afetadas pelos danos na barragem. Do lado de Kiev, os trabalhos de retirada das pessoas já começaram. E o governo da Ucrânia assegurou que o risco de inundação afeta um total de 80 localidades.
É uma catástrofe de desenrolar lento, sendo difícil avaliar a sua gravidade e até poder aceder às pessoas que estão em sítios inundados, sem estradas ou sem linhas de transporte públicos para fugirem. Em Mykolaiv, também a sul, um pouco para oeste de Kherson, circulam comboios de emergência para retirar pessoas desta cidade. E os moradores das aldeias inundadas podem estar cercados, pois algumas das estradas para o Nordeste de Kherson estão totalmente alagadas.
A Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) garantiu, na rede social Twitter, estar “a acompanhar de perto” a situação. Para já, não há “risco imediato para a segurança nuclear”. O mesmo foi assegurado pela administração russa das instalações: “Não há ameaça à segurança da central nuclear. O nível da água utilizada para refrigeração não mudou”, garantiu o diretor, Yuri Chernichuk, ao Telegram.
Contudo, apesar de não haver desastre nuclear à vista, a destruição da barragem e da central hidroelétrica pode afetar o abastecimento de energia na Ucrânia. A explosão implica a desativação da central hidroelétrica que era alimentada por aquele enorme caudal, agora a inundar, a grande velocidade, os terrenos e localidades circundantes.
German Galushchenko, ministro da Energia ucraniano, em comunicado, explicou que o incidente não representa ameaça direta ao fornecimento de eletricidade do país, sendo a energia produzida “suficiente para atender às necessidades dos consumidores”.
Também a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, é abastecida por esta barragem, e o governador do território alertou para o risco de o Canal Norte da Crimeia, que abastece 85% da península a partir do Dniepre, desabar devido à explosão da infraestrutura – o que provocaria falhas no abastecimento da população e problemas nos campos agrícolas mais a norte.
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse que a explosão foi tentativa ucraniana para cortar o abastecimento de água à península: “Claramente, um dos objetivos desse ato de sabotagem foi privar a Crimeia de água. O nível da água no reservatório está a descer e, consequentemente, o abastecimento de água para o canal está drasticamente reduzido.” Com feito, segundo declarou, após a anexação, o governo de Kiev bloqueou o abastecimento de água, em várias ocasiões, mas a Rússia tem medidas desenhadas para aliviar os problemas de abastecimento de água à Crimeia, o que dá uma certa “margem de segurança”.
Sergei Aksyonov, governador da Crimeia, apoiado pela Rússia, disse que não há ameaça imediata ao abastecimento de água da península ou qualquer risco de inundação, mas sinalizou uma ameaça potencialmente séria nos próximos dias.
Enquanto Peskov culpa a Ucrânia pela destruição da barragem, a maioria dos responsáveis ucranianos e internacionais parece culpar Moscovo. Oleksandr Prokudin, chefe da Administração Militar Regional de Kherson, disse, em vídeo publicado na plataforma Telegram, que “o exército russo cometeu mais um ato de terror”. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, secundou-o, falando de “terroristas russos” como principais culpados.
James Cleverly, ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, vê no ataque “um ato abominável”. Segundo a NBC News, altos funcionários norte-americanos que admitiram que as secretas dos Estados Unidos da América (EUA) estão inclinadas para a teoria da responsabilidade russa. E o secretário-geral da ONU, António Guterres, alinha com essa hipótese, e acrescenta: “Uma coisa é clara. Esta é outra consequência devastadora da invasão da Ucrânia.”
Antes de disponibilizar a ajuda do país às populações afetadas pela catástrofe, o referido ministro britânico escreveu, no Twitter, que “atacar intencionalmente infraestruturas exclusivamente civis é crime de guerra”. E o Comité Internacional da Cruz Vermelha classificou o ato como “um dos ataques mais graves contra a infraestrutura civil ucraniana”, afirmando que pode constituir “crime de guerra”, mas, dada a sua neutralidade, não atribuiu a culpa a nenhum dos países.
Andriy Yermak, chefe de gabinete do presidente da Ucrânia, escreveu, no Twitter, que se trata de “um ecocídio” e que “os Russos serão responsáveis pela possível privação de água potável, para as pessoas a sul da região de Kherson e na Crimeia, e pela destruição de aldeias e da nossa biosfera”. E Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, culpando Moscovo, escreveu, no Twitter, que “a Rússia e os seus representantes” serão responsabilizados.
A barragem, como ponte sobre o Dniepre, poderia servir de passagem ao exército ucraniano para a margem controlada pelos Russos, pois é o caminho mais curto e direto. Porém, isso é, agora, difícil de concretizar. Resta saber se a destruição da barragem leva a nova escalada na guerra. Para já, enquanto a água faz os seus estragos, os bombardeamentos continuam e fazem vítimas civis e militares. Dizem que, nestes dias, morreram mais de 100 pessoas, na zona afetada.
Tenha a explosão sido provocada pela Rússia ou pela Ucrânia – objetivamente, o episódio interessava aos dois lados (a Ucrânia quer avançar até à Crimeia e a Rússia quer travar o avanço) –, o certo é que, por um lado, dificulta a contraofensiva de Kiev, que se estava a desenhar em grande, e, por outro lado, trava a progressão russa e cria problemas às autoridades russas no apoio à população que dizem tutelar na zona.
Além do mais, trata-se de um grande desastre ambiental, com periculosidade nuclear, que mata plantas e animais, com exceção das aves, e que pode provocar a desertificação da região, o que motiva a AIEA a querer monitorizar o nível das águas e as condições de refrigeração da central nuclear, que está a funcionar por bombeamento.
Dizem alguns que as consequências da explosão (o núcleo central do complexo pode derrocar) – o “maior desastre ambiental causado pelo homem na Europa em décadas” – podem fazer-se sentir durante muitos anos e afetar o Mundo. Ao longo do Dniepre, o impacto pode ser sentido por gerações: as aldeias e as cidades podem não voltar a ser habitáveis, durante anos, e as atividades de subsistência, nas férteis margens do rio podem ser irrecuperáveis. Com efeito, a fauna e a flora demorarão décadas a recuperar, o que permite caraterizar um “ecocídio” este evento bélico.
Como aponta o jornal The Guardian, o evento em Nova Kakhovka pode vir a afetar países vizinhos, e as torrentes arrastam dezenas de milhares de minas, à medida que atravessam a linha da frente da guerra. As inundações podem, por isso, causar explosões em terreno onde se encontrem civis, a muitos quilómetros de distância, e até muitos anos depois.
Com 10 mil hectares inundados na margem direita do rio, dão-se cheias, a jusante, em contraste com a escassez de água a montante da barragem. Em poucos dias, os níveis do reservatório estarão tão baixos que as bombas de água da central nuclear de Zaporíjia (a 200 km) não serão utilizadas para arrefecer os reatores. Para isso, terá de se recorrer a uma piscina de arrefecimento.
Devido à escassez de água, também será afetada, a produção de alimentos, como o trigo, o milho, o óleo de girassol e a soja, com efeitos que poderão ser sentidos em todo o Mundo. A Crimeia, que tinha de contar com um canal que fornecia água a partir da barragem de Nova Kakhovka, pode ter uma crise hídrica, no próximo ano.
Segundo o Ministério da Agricultura e da Alimentação da Ucrânia, os terrenos agrícolas do Sul poderão “transformar-se em desertos”, no próximo ano. As consequências serão globais, pois foi afetado o maior celeiro da Europa: o evento na central hidroelétrica atingiu 94% dos sistemas de irrigação, na região de Kherson, 74%, em Zaporíjia, e 30%, em Dnipropetrovsk.
O mesmo departamento governamental da Ucrânia prevê um cenário devastador para a pesca, com a morte massiva de peixes jovens e adultos. Como, recentemente, terminou a estação de desova, os ovos de peixe colocados nas margens do reservatório poderão secar. Outro problema será a entrada e a morte de peixes de água doce e de outros recursos biológicos nas águas salgadas do Mar Negro, mar cuja fauna pode morrer com o influxo maciço de água doce.
Imagens de satélite da Maxar Technologies Inc. (empresa de tecnologia espacial com sede em Westminster, Colorado, nos EUA) mostram casas e prédios submersos, restando apenas os contornos dos telhados, com a água a ocupar parques, terrenos e infraestruturas. E Martin Griffiths, alto responsável da Organização das Nações Unidas (ONU) para a ajuda humanitária, admite que “a magnitude da catástrofe só será compreendida nos próximos dias”.
Enfim, as margens do Dniepre transformaram-se em terra de ninguém e de nada. As patas da guerra dão cabo do progresso de que ela se serve e do que tanta falta faz ao bem-estar dos povos!
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12/06/2023