Falando da morte
Miséria, um pobre ferreiro engana a Morte e é assim condenado à eternidade. Falou então a Morte do alto da nogueira e fez com o velhinho um contrato: poupar-lhe a vida enquanto o mundo fosse mundo. O velhinho consentiu e a Morte desceu. Por isso, enquanto o mundo for mundo a Miséria existirá sobre a Terra. (Conto popular)
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Sentados numa confeitaria, sem saber como (?), a conversa trouxe o tema da morte à nossa mesa. Éramos cinco: Paulo, Carla, Inês, Miguel e eu… Lembrámos a velha senhora nalguns contos e tradições populares. Entre muitas recordações que surgiram, a velha tradição do Ferreiro Miséria e o seu encontro com a Morte. É uma narração que tem uma longa história na tradição oral da Península Ibérica e que, mais tarde, se traslada, com armas e bagagens, para nossa América Latina. A propósito, entre outros exemplos, posso referir algumas obras.
“À direita de Deus Pai” (A la diestra de Dios Padre), peça baseada na história (conto) de Don Tomás Carrasquilla, foi a obra-prima do actor, dramaturgo, ensaísta, narrador, poeta e encenador colombiano Enrique Buenaventura (1925-2003), autor que tive a felicidade de conhecer, nos anos setenta.
Esta peça de teatro não só lançou as bases do Teatro Experimental de Cali (TEC), também se tornou uma das obras mais emblemáticas e belas da dramaturgia colombiana e um clássico do teatro latino-americano. A primeira versão estreou em 1958, na cidade de Bogotá, e ganhou, em Paris, no Teatro das Nações, o prémio de teatro popular, no ano de 1960. O original teve, pelo menos, cinco versões, de 1958 a 1986.
O tema foi também tratado pelo dramaturgo chileno Jaime Silva (1934-2010), na peça de teatro El Evangelio Según San Jaime, apresentada pela primeira vez em 1969, obracontada em verso, com rasgos de comédia musical e de alegoria circense.
“Bater as botas” ou, se preferir, “partir desta para melhor” são formas para nos referirmos à morte, as quais podem variar, mas o sentimento de medo desta é o mesmo. Em contraponto, este assunto que aflige muitas pessoas é tratado de maneira inteligente em “Contos de Enganar a Morte”, de Ricardo Azevedo, livro (publicado pela Ática) que traz contos que ensinam a enganar a morte.
Não podíamos deixar de, aqui, recordar o belíssimo espectáculo de João Paulo Seara Cardoso, para o Teatro de Marionetas do Porto, “Miséria”, que Carlos Porto – crítico de teatro (quando no país havia críticos!) – viu com a agudeza que o caracterizava e escreveu no JL(Jornal de Letras, Artes e Ideias): “O que há de espantoso neste espectáculo é o jogo entre o que pertence às marionetas e o que pertence ao actor em carne e osso, ao mesmo tempo manipulador e intérprete… A perfeição das coisas, diria Cesário Verde. Não há muito a dizer de um espectáculo como este. Obra-prima do teatro de marionetas, obra-prima do teatro, simplesmente.”
Voltando à nossa mesa de café, eu partilhei duas narrativas das quais me lembrava. Uma delas é “O encontro em Samarra”, uma fábula contada pela própria Morte, na versão de W. Somerset Maugham. Conto breve, com ambiente de “As Mil e Uma Noites”, no qual fica muito claro que é impossível fugir ao nosso destino fatal! E a outra, contada por Bruno Traven, em “Macario”.
“Macario” é a narração de um camponês (lenhador) pobre do México que quer prolongar a sua vida, quando a Morte lhe aparece, outorgando a possibilidade de ele não morrer. Isso em troca do acto generoso de Macario ao dar de comer à Morte, a qual se lhe apresentou como um pedinte esfaimado.
Bruno Traven (datas incertas, possivelmente, 1882-1969) é o pseudónimo principal de um dos autores (de nome próprio Ret Marut) mais enigmáticos da literatura moderna, conhecido especialmente pelo romance“O Tesouro de Sierra Madre”, adaptado para o cinema por John Huston e protagonizado por Humphrey Bogart, em 1948. A sua obra, com tendências anticapitalistas e pró-anarquistas, apresenta com frequência uma visão de mundo árida e violenta. De provável origem alemã, exilou-se no interior do México (em 1924), onde escreveu as suas primeiras novelas. Conseguiu manter a identidade em segredo durante toda a sua vida, apesar de a sua produção literária ter sido traduzida para inúmeras línguas, ultrapassando todas as barreiras do anonimato.
Foi por volta dos anos sessenta que vi a versão fílmica de “Macario”, realizada por Roberto Gavaldon, com interpretação de Ignacio López Tarso e Pina Pellicer. O filme, baseado no romance de B. Traven, mantém os elementos originais de uma antiga lenda de fronteira, ambientada no vice-reino Nova Espanha(*). Foi o primeiro filme mexicano a ser nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Além disso, também foi inscrito no Festival de Cinema de Cannes de 1960.
Acerca do argumento, registamos que o sonho de Macario é comer um peru assado inteiro sozinho e confessa à sua esposa e aos filhos que não comerá até que seu sonho se torne realidade. A sua mulher, preocupada, rouba um peru e dá-o a Macario no dia do seu aniversário, antes que ele vá trabalhar para as montanhas. No entanto, no momento em que Macario se prepara para comer o peru, aparecem três homens. O primeiro é o Diabo disfarçado de bom cavalheiro, que tenta Macario para conseguir um pedaço do peru. O segundo é Deus disfarçado de velho. Macario recusa-se a dividir o peru, pois acredita que ambos têm os meios necessários para conseguir o que querem. Quando uma terceira figura — um camponês como ele — aparece, ele divide o peru com prazer com o homem. O terceiro homem não é outro senão a própria Morte.
A Morte, como compensação, chama Macario de “amigo” e dá-lhe uma água milagrosa que cura qualquer doença. Macario irá transformar-se num médico curandeiro… Se a Morte aparecer aos pés do enfermo, ele pode ser curado com essa água. Todavia, se a Morte aparecer pela cabeça da pessoa, ela está condenada a morrer. Essa “amizade” durará anos…
Para acabar este apontamento, recordo que, no ano de 1978, depois de ter realizado uma acção de formação teatral na associação cultural e recreativa “Os Plebeus Avintenses”, na vila de Avintes, encenei ali um texto meu, escrito especialmente para um grupo de quase 25 pessoas que completaram a formação, a peça “Auto da Peste, da Morte e do Diabo”, na qual retomava as tradições latinas e hispânicas destas narrativas. O espectáculo foi apresentado em estreia no desaparecido Cine-Teatro Avenida, em Vila Nova de Gaia. Nesse elenco, participaram actores como Mário Sancho, Alzira Santos, João Enes e Adriano Martins, todos eles iniciados nesse curso e que, mais tarde, integraram companhias profissionais de teatro da cidade do Porto, a exemplo da Companhia de Teatro Seiva Trupe-Teatro Vivo e do Teatro Experimental do Porto (TEP).
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Nota da Redacção:
(*) A Nova Espanha foi o primeiro vice-reino da América, criado por uma carta régia espanhola de 1535. Estendeu-se do istmo do Panamá aos actuais estados americanos da Califórnia, do Texas e do Novo México, além de incluir as possessões do Caribe e das Filipinas.
12/01/2023