Faltam “novas abordagens e modelos de ação” no combate à pobreza
“Mais do que medidas ou apoios avulsos que, sem a devida monitorização e avaliação, nunca se constituirão como estratégicos”, são necessárias “novas abordagens e modelos de ação”. Foi o aviso do Presidente da República (PR), no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, assinalado a 17 de Outubro.
Num ano de excedente orçamental, o chefe de Estado pressionava o Governo a não descurar a situação da pobreza no país e a encontrar “novas abordagens e modelos de ação para o seu combate”.
Em mensagem publicada na sua página oficial, a propósito da efeméride, o PR avisa que cerca de dois milhões de portugueses [1,7 milhões] “são pobres”, que as novas realidades “têm agravado as condições de pobreza” e que “são necessárias novas abordagens e modelos de ação, mais do que medidas ou apoios avulsos que, sem a devida monitorização e avaliação, nunca se constituirão como estratégicos”. E, apesar de assinalar “os passos positivos na identificação” das causas da pobreza e “no avanço” da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza publicada em 2021 e a concretizar até 2030, Marcelo Rebelo de Sousa reforça a urgência de novas abordagens: “Só assim se poderá equacionar a retirada de 660 mil pessoas da situação de pobreza, reduzindo para metade da taxa nas crianças e entre trabalhadores, objetivo traçado e que todos desejamos alcançar.”
Efetivamente, depois de, em 2019, ter apontado a data de 2023 para acabar com a situação dos sem-abrigo, objetivo em relação ao qual o governo foi mais prudente, admitiu a impossibilidade de cumprir o prazo, devido à pandemia de covid-19, e apontou 2026 como a nova meta para “reduzir drasticamente” o número de pessoas sem-abrigo e ter uma “cobertura nacional em termos de prevenção”. Foi este o prazo indicado, a 15 de outubro, no Algarve, no encontro nacional da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENPISSA), lançada em 2017 e que termina este ano, mas para a qual o PR quer novo objetivo temporal, a que junta o apelo a nova estratégia a começar em 2024.
No discurso o Algarve, o PR apontou respostas como o Housing First (a casa, primeiro), que aposta na autonomização dos sem-abrigo, um bom exemplo europeu e mundial. Pediu atenção a situações de risco como a dos trabalhadores agrícolas sazonais em Odemira, no Alentejo, e a dos Timorenses que vieram com promessas de trabalho e acabaram a viver nas ruas de Lisboa.
Marcelo Rebelo de Sousa diz não desistir da causa da erradicação do problema dos sem-abrigo – que apontou como um desígnio nacional, quando assumiu o cargo – e que tem a expectativa de que o programa do governo tenha continuidade até ao fim da legislatura.
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A 17 de outubro, Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza, o governo apresentou o Plano de Ação 2023-2025 da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP).
Segundo os dados das declarações do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) partilhados pela Pordata, para marcar a efeméride, mais de um terço das famílias ganhavam, em 2021, o máximo de 833 euros brutos mensais e mais de metade apresentava rendimentos até 1125 euros. E, numa altura em que a habitação e a inflação têm apertado cada vez mais a vida de milhares de famílias, os dados da Pordata mostram que, em 2022, cerca de um terço (29%) gastava mais de 40% dos seus rendimentos só para pagar renda e despesas da casa. Neste indicador do Eurostat, Portugal mantém-se acima da média europeia (21%), que nunca chegou a ir além dos 27%, desde que há registos.
Sem avançar mais detalhes sobre o plano de ação entretanto divulgado, a coordenadora da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, Sandra Faria Araújo, diz que o documento conta com seis eixos, 14 objetivos estratégicos e 273 atividades “que tocam todas as áreas setoriais que contribuem para o combate à pobreza”.
Passaram-se três anos desde a criação da comissão que preparou a Estratégia, aprovada pelo governo no final de 2021. Porém, só quase um ano depois, foi definida uma coordenadora, que preparou o plano de ação para o período de entre 2023 e 2025. O objetivo final é chegar a 2030 com menos 660 mil pessoas em situação de pobreza, incluindo 230 mil trabalhadores e 170 mil crianças. Entre as metas, conta-se também a redução da privação material infantil e da disparidade da pobreza entre as diferentes regiões do país.
Para o economista Carlos Farinha Rodrigues, que participou na preparação da Estratégia, avançar com o plano “é positivo”, pois é dada uma “consistência acrescida às políticas de combate à pobreza”, mas “já deveria ter avançado há mais tempo”.
Os dados da Pordata mostram também que, em sete anos, o preço das casas subiu 90%, em Portugal, enquanto os salários aumentaram apenas 20%. Em média, na União Europeia (UE), entre 2015 e 2022, o preço das casas subiu 48%. “Quer as rendas, quer os juros estão a dificultar a vida de milhares de pessoas, que não são só as pessoas em situação de pobreza”, frisa Carlos Farinha Rodrigues, explicitando: “Temos algumas pistas a sugerir que há setores da população a sofrer fortemente com o aumento dos preços e a inflação. Mas uma das minhas preocupações é que estas dificuldades não surjam nos indicadores de pobreza tradicionais.”
Tal como já tinha defendido antes, o especialista considera necessário pensar em “indicadores que possam ser articulados com os existentes” e que traduzam a “capacidade de acesso da população a bens e serviços essenciais”. Ainda não é conhecida a percentagem da população que estava em situação de pobreza em 2022. Os dados mais recentes são de 2021, altura em que 1,7 milhões de portugueses (16,4%) viviam com menos de 551 euros mensais.
Como se disse, o ENCP reúne mais de 270 medidas, com destaque para o apoio às crianças e jovens, habitação e emprego. Além disso, em sintomia com o aviso do chefe de Estado, o governo, pela mão de Ana Mendes Godinho, ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, avança com um novo modelo assente na “resposta integrada e personalizada”, com um gestor para cada caso de pessoas em risco. Esta é, segundo o Jornal de Notícias (JN), de 17 de outubro, uma das mais de 270 medidas propostas no plano do governo, estruturado em seis eixos de intervenção e 14 objetivos estratégicos. “É reformular toda a lógica de atendimento e intervenção social no país”, apontou Ana Mendes Godinho, salientando que as pessoas vão deixar de ter de bater a 200 portas, para resolverem os seus problemas e que não haverá intervenções múltiplas.
A meta é retirar 660 mil pessoas da situação de pobreza e reduzir para metade as crianças em risco até 2030, num projeto com dotação média de três mil milhões de euros anuais.
Em algumas autarquias vai arrancar o projeto-piloto em 2024, sendo o objetivo alargá-lo a todo o país, entre 2026-2030. “Tivemos uma reunião com a Associação Nacional de Municípios Portugueses que ficou muitíssimo entusiasmada, até porque surge no contexto da descentralização da ação social, em que cada vez mais a lógica é de respostas de proximidade e não de distância”, frisou a responsável pela pasta da Solidariedade e da Segurança Social.
A pessoa de maior vulnerabilidade deve dirigir-se a um serviço de primeira linha, neste momento, a ação social descentralizada na autarquia. Identificada a situação, “será identificado um gestor de caso”, que responderá “pela interação permanente e integrada com essa pessoa”. Estão também previstas para a pessoa em questão “visitas técnicas da educação, das equipas de saúde, da Segurança Social, da ação social”.
O gestor de caso “fará parte de uma ‘pool’ criada ao nível da ação social de primeira linha”, explicou a ministra, e terá como missão “encontrar respostas nas várias dimensões de políticas públicas sociais”. “Isto é de uma dimensão brutal” e, para quem está em causa, é uma “viragem completa na forma como olhamos para as respostas à pobreza”.
No Orçamento do Estado para 2024 (OE2024) está previsto um aumento da despesa com prestações sociais. Além do abono de família (desejavelmente automático), do reforço da garantia para a infância e do alargamento da gratuitidade das creches para 120 mil crianças, no próximo ano, será reforçado o complemento solidário para idosos (CSI) e o rendimento social de inserção (RSI).
Proceder-se-á à implementação de programas de bem-estar mental nas escolas e ao aumento do número de psicólogos (pelo menos, um por 750 alunos). Requalificar-se-ão as respostas de acolhimento residencial e aumentar-se-á o número de famílias de acolhimento. Reforçar-se-á o apoio aos jovens na habitação (renda acessível e aumento dos tetos de rendas elegíveis no portal da Habitação Porta65 Jovem), na qualificação profissional e no apoio financeiro ao ensino não superior em meio prisional. E reforçar-se-ão, em articulação com os municípios, os apoios a idosos, a Agenda do Trabalho Digno, a formação profissional de trabalhadores, a inserção de pessoas sem-abrigo e de migrantes, a educação e a inserção socioprofissional de portadores de deficiência e de dependentes.
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A Organização das Nações Unidas (ONU) marcou o recente Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza sob o lema “Trabalho Decente e Proteção Social: Colocar a dignidade em prática para todos.” A métrica para determinar a pobreza extrema é um rendimento diário inferior a 2,15 dólares por pessoa. Atualmente, mais de 8,4% da população global, cerca de 670 milhões de pessoas, vivem nessa condição. As projeções até 2030 indicam que 7% da população mundial, o equivalente a 575 milhões de indivíduos, ainda enfrentará a extrema pobreza.
A data promove a inclusão e o diálogo entre aqueles que vivenciam essa situação e a sociedade em geral. Em 2023, o tema destaca as pessoas que enfrentam jornadas de trabalho longas e difíceis, em condições perigosas, não regulamentadas e sem ganhos adequados para o sustento pessoal e de suas famílias. Os benefícios de adotar o conceito de trabalho decente incluem capacitar os indivíduos, assegurar salários justos e condições de trabalho seguras, bem como reconhecer o valor próprio e a humanidade dos trabalhadores. Por outro lado, enfatiza-se a urgência de implementar a proteção social universal para garantir que os rendimentos sejam seguros para todos, com especial atenção aos grupos mais vulneráveis da sociedade.
O apelo aos políticos é que tenham a dignidade humana na orientação dos processos de tomada de decisão. A meta é garantir que avanços nos direitos humanos e na justiça social tenham prioridade em relação à busca de lucros empresariais.
A ONU defende o reforço de parcerias entre governos, empresas e organizações da sociedade civil em nível global para se alcançar um desenvolvimento equitativo e “garantir que ninguém seja excluído ou deixado para trás”.
Este ano, a data é marcada por pedidos de solidariedade com as pessoas que vivem na pobreza e compromissos em favor de uma economia justa com foco na proteção do bem-estar humano e ambiental, ao contrário de prioridades financeiras. O administrador do Programa da ONU para o Desenvolvimento (PNUD) propõe que os países criem condições para novos empregos dignos, para se acabar totalmente com a pobreza. A atuação deve ser com o setor privado, que responde por cerca de 90% de vagas nos países em desenvolvimento. Todavia, os países devem buscar “meios para que as pessoas que vivem na pobreza tenham apoio essencial”.
O Mundo teve mais 165 milhões de pessoas extremamente pobres entre 2020 e 2023. E o chefe do PNUD defende que se vá além do Produto Interno Bruto (PIB) e que se adotem métricas para combater as causas profundas da pobreza e promover o progresso nos objetivos globais de forma mais eficaz.
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O plano do governo português e o da ONU são ambiciosos exigentes. Oxalá que se cumpram fora do papel. Se isso acontecer, outro galo cantará.
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16/11/2023