Fazer os textos – o nada coitado Jorge

 Fazer os textos – o nada coitado Jorge

Jorge Silva Melo (© Coffeepaste)

Será esse o ponto. A questão pode apresentar-se deste modo: desde que o corpo se tornou protagonista do que pode potencialmente realizar (além de engravidar, acrobacias, maratonas, quedas verticais das alturas, apneias, etc.)  como escrita, porque a escrita (a que distinguiu o Homo erectus do animal não bípede, heresia face a todos os pim-pam-puns) passou a ser algo equiparável ao que quer que seja que signifique ou pareça significar. Isto é, que se exerça a partir de um meio que (in)significante possa ser significante. Esse equiparável quer dizer que qualquer coisa pode ser n’importe quoi,porque o que nivela, na recepção e na multiplicação para amplas recepções, tudo nivela pelo mesmo. E nada se distingue, porque o que é promocional e publicitário apenas depende do que seja campanha, incluindo o que, sendo mediático (e não directamemente publicitário) o seja em substância, como o chamado jornalismo cultural.

Wiki Images (Pixabay)

Este nadificar de tudo passa por ser democratizar. Um texto como Hamlet é comparado ao mesmo referido Hamlet na versão culinária ou na versão gestual: to be or not to be. Feito apenas com um jogo de movimentos próprios de um transe corporal que expresse essa indefinição identitária; e se faça interrogação em corpo presente na ausência da frase. Nada contra o corpo. Nem contra o movimento: o corpo no espaço a desenhar múltiplas formas e a apresentar-se como sujeito, razão subjectiva de movimento, substantivando os gestos, é um poderoso meio de significação sensível – necessitarão sempre de tradução.

O monólogo de Ella, num corpo deficiente, sendo um único gesto, é um enorme texto, uma biografia. E um gigantesco texto gestual, impossível de fracturar numa cirurgia estética que pusesse palavras de um lado e corpo do outro. O que resgata uma inexistência dos fundilhos da história é a fala; a fala de um corpo deficiente, no caso, um texto, uma reflexão na primeira pessoa assente na sua própria incapacidade mental, hiper-expressiva. É algo que nunca aconteceria se Herbert Achternbusch não o tivesse intuído no corpo da tia e não o tivesse escrito. É o texto de um corpo marginalizado desde o parto, mulher e deficiente na origem.

Entre nós, o Jorge Silva Melo era a última barreira da defesa dessa relevância do texto, desse primado da palavra, sabendo-a corpo

Foi o Jorge que me passou esta peça. Foi? Não importa. Pode ter sido o Sarrazac. É a mesma coisa. O mesmo amor dos textos que importa reter. E dos corpos, de certos corpos e de uma escrita dos corpos que crê que a fala pode ser o tradutor universal que as linguagens do corpo nunca serão com o mesmo nível de complexidade. Isso importa ter em conta, para não banalizar o aleatório nem o “ledorismo” – essa da ”minha leitura” – como liberdade absoluta, como o que as pessoas dizem quando dizem “gosto” e “não gosto”, um clicar anterior muitas vezes a pensar.

Não há tradução gestual possível de Ulisses, qualquer deles.

Vida de Artistas”, de Noël Coward, com encenação de Jorge Silva Melo. (© Artistas Unidos) Em 1995, Jorge Silva Melo criou os Artistas Unidos, companhia que dirigiu até à morte, no dia 14 de Março.

“Vida de Artistas”, de Noël Coward, com encenação de Jorge Silva Melo. (© Artistas Unidos) Em 1995, Jorge Silva Melo criou os Artistas Unidos, companhia que dirigiu até à morte, no dia 14 de Março.

Entre nós, o Jorge Silva Melo era a última barreira da defesa dessa relevância do texto, desse primado da palavra, sabendo-a corpo. Nos textos que fazia, sempre textos, mesmo que revisitando acontecimentos cinematográficos ou teatrais e na colecção de peças que iniciou com a Cotovia, do meu amigo André Jorge. Era um genial publicista e um encenador obcecado, sempre em processo fabril, produtividade em alta. Um e outro e outro e outro, espectáculos sem espectáculo, mesmo refazendo sucessos fílmicos. Tinha uma noção clara do nosso atraso e do mal que as lógicas absolutistas e mal compreendidas do primado dos corpos poderiam trazer. Era preciso ter uma estratégia multiplicadora, fazer muito e fazer o que era diverso. Era pedagogo-rei em país de zarolhos pedantes. O mundo não é questão de unilateralidade estética como modo de o filtrar, amar e observar, de viver.

Quadro de “Música”, de Frank Wedekind, no Teatro da Cornucópia (em 28 de Junho de 2016). O Teatro da Cornucópia foi fundado em 1973, por Jorge Silva Melo e por Luís Miguel Cintra, os quais reuniram em torno do seu projecto um pequeno grupo de actores profissionais.

Quadro de “Música”, de Frank Wedekind, no Teatro da Cornucópia (em 28 de Junho de 2016). O Teatro da Cornucópia foi fundado em 1973, por Jorge Silva Melo e por Luís Miguel Cintra, os quais reuniram em torno do seu projecto um pequeno grupo de actores profissionais.

Foi-se o último excelente muro, agora qualquer maré ignorante pode fazer a sua cheia cíclica sem qualquer contraponto, mesmo que nas traseiras do evento principal, porque o evento é sempre no palco principal e, muitas vezes, o que acontece a sério é na sala secundária e no horário nada nobre. Agora a pandilha dos evenemenciais tem o chemin aberto, pode fazer disto uma periferia das capitais que gostam de flirtar, uma rascóia de luxo – acontece aos ratinhos de vária proveniência, mental, pois.

Giammarco (Unsplash)

O Jorge, com quem estava em discordância profunda relativamente à política teatral, era senhor de uma erudição tão esclarecida e ampla que ela era ao ponto de lhe ser impossível “escapar” a uma prática eclética. Essa abrangência, que se lê tanto na colecção dos livrinhos, de que era o militante número um e o único, imagino, vai fazer muita falta. Faço votos para que a equipa dos Artistas Unidos mantenha alta essa chama do amor dos textos, dos mais centrais aos mais demodés, aos mais marginais. E a outros que agora descubra, outros caminhos no mesmo caminho. Esse seu contributo para a nossa mais que arcaica modernidade teatral foi essencial. Os mais novos que o digam. Não têm outro fundo a que recorrer. Não vou dizer aquela coisa do “Obrigado, Jorge!”, como quem reconhece um lado da herança, vou apenas abraçar-te, para sempre. A última barreira da absoluta vitória do aleatório “umbigual”, nestas coisas do fazer espectáculos de teatro a fugir do espectáculo, foi-se. Alguém disse que se foi uma Biblioteca, como se diz em África quando morre um velho, num sentido complementar também. Ele era essas duas coisas: uma biblioteca de referências à mão da sua acutilante inteligência e, a outra, biblioteca de livros para circular, ele que era leitor viciado, escritor e divulgador militante, publicista de algum modo. Um libertino do gosto.

04/04/2022

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Fernando Mora Ramos

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