Fazer os textos – o nada coitado Jorge
Será esse o ponto. A questão pode apresentar-se deste modo: desde que o corpo se tornou protagonista do que pode potencialmente realizar (além de engravidar, acrobacias, maratonas, quedas verticais das alturas, apneias, etc.) como escrita, porque a escrita (a que distinguiu o Homo erectus do animal não bípede, heresia face a todos os pim-pam-puns) passou a ser algo equiparável ao que quer que seja que signifique ou pareça significar. Isto é, que se exerça a partir de um meio que (in)significante possa ser significante. Esse equiparável quer dizer que qualquer coisa pode ser n’importe quoi,porque o que nivela, na recepção e na multiplicação para amplas recepções, tudo nivela pelo mesmo. E nada se distingue, porque o que é promocional e publicitário apenas depende do que seja campanha, incluindo o que, sendo mediático (e não directamemente publicitário) o seja em substância, como o chamado jornalismo cultural.
Este nadificar de tudo passa por ser democratizar. Um texto como Hamlet é comparado ao mesmo referido Hamlet na versão culinária ou na versão gestual: to be or not to be. Feito apenas com um jogo de movimentos próprios de um transe corporal que expresse essa indefinição identitária; e se faça interrogação em corpo presente na ausência da frase. Nada contra o corpo. Nem contra o movimento: o corpo no espaço a desenhar múltiplas formas e a apresentar-se como sujeito, razão subjectiva de movimento, substantivando os gestos, é um poderoso meio de significação sensível – necessitarão sempre de tradução.
O monólogo de Ella, num corpo deficiente, sendo um único gesto, é um enorme texto, uma biografia. E um gigantesco texto gestual, impossível de fracturar numa cirurgia estética que pusesse palavras de um lado e corpo do outro. O que resgata uma inexistência dos fundilhos da história é a fala; a fala de um corpo deficiente, no caso, um texto, uma reflexão na primeira pessoa assente na sua própria incapacidade mental, hiper-expressiva. É algo que nunca aconteceria se Herbert Achternbusch não o tivesse intuído no corpo da tia e não o tivesse escrito. É o texto de um corpo marginalizado desde o parto, mulher e deficiente na origem.
Entre nós, o Jorge Silva Melo era a última barreira da defesa dessa relevância do texto, desse primado da palavra, sabendo-a corpo
Foi o Jorge que me passou esta peça. Foi? Não importa. Pode ter sido o Sarrazac. É a mesma coisa. O mesmo amor dos textos que importa reter. E dos corpos, de certos corpos e de uma escrita dos corpos que crê que a fala pode ser o tradutor universal que as linguagens do corpo nunca serão com o mesmo nível de complexidade. Isso importa ter em conta, para não banalizar o aleatório nem o “ledorismo” – essa da ”minha leitura” – como liberdade absoluta, como o que as pessoas dizem quando dizem “gosto” e “não gosto”, um clicar anterior muitas vezes a pensar.
Não há tradução gestual possível de Ulisses, qualquer deles.
“Vida de Artistas”, de Noël Coward, com encenação de Jorge Silva Melo. (© Artistas Unidos) Em 1995, Jorge Silva Melo criou os Artistas Unidos, companhia que dirigiu até à morte, no dia 14 de Março.
Entre nós, o Jorge Silva Melo era a última barreira da defesa dessa relevância do texto, desse primado da palavra, sabendo-a corpo. Nos textos que fazia, sempre textos, mesmo que revisitando acontecimentos cinematográficos ou teatrais e na colecção de peças que iniciou com a Cotovia, do meu amigo André Jorge. Era um genial publicista e um encenador obcecado, sempre em processo fabril, produtividade em alta. Um e outro e outro e outro, espectáculos sem espectáculo, mesmo refazendo sucessos fílmicos. Tinha uma noção clara do nosso atraso e do mal que as lógicas absolutistas e mal compreendidas do primado dos corpos poderiam trazer. Era preciso ter uma estratégia multiplicadora, fazer muito e fazer o que era diverso. Era pedagogo-rei em país de zarolhos pedantes. O mundo não é questão de unilateralidade estética como modo de o filtrar, amar e observar, de viver.
Quadro de “Música”, de Frank Wedekind, no Teatro da Cornucópia (em 28 de Junho de 2016). O Teatro da Cornucópia foi fundado em 1973, por Jorge Silva Melo e por Luís Miguel Cintra, os quais reuniram em torno do seu projecto um pequeno grupo de actores profissionais.
Foi-se o último excelente muro, agora qualquer maré ignorante pode fazer a sua cheia cíclica sem qualquer contraponto, mesmo que nas traseiras do evento principal, porque o evento é sempre no palco principal e, muitas vezes, o que acontece a sério é na sala secundária e no horário nada nobre. Agora a pandilha dos evenemenciais tem o chemin aberto, pode fazer disto uma periferia das capitais que gostam de flirtar, uma rascóia de luxo – acontece aos ratinhos de vária proveniência, mental, pois.
O Jorge, com quem estava em discordância profunda relativamente à política teatral, era senhor de uma erudição tão esclarecida e ampla que ela era ao ponto de lhe ser impossível “escapar” a uma prática eclética. Essa abrangência, que se lê tanto na colecção dos livrinhos, de que era o militante número um e o único, imagino, vai fazer muita falta. Faço votos para que a equipa dos Artistas Unidos mantenha alta essa chama do amor dos textos, dos mais centrais aos mais demodés, aos mais marginais. E a outros que agora descubra, outros caminhos no mesmo caminho. Esse seu contributo para a nossa mais que arcaica modernidade teatral foi essencial. Os mais novos que o digam. Não têm outro fundo a que recorrer. Não vou dizer aquela coisa do “Obrigado, Jorge!”, como quem reconhece um lado da herança, vou apenas abraçar-te, para sempre. A última barreira da absoluta vitória do aleatório “umbigual”, nestas coisas do fazer espectáculos de teatro a fugir do espectáculo, foi-se. Alguém disse que se foi uma Biblioteca, como se diz em África quando morre um velho, num sentido complementar também. Ele era essas duas coisas: uma biblioteca de referências à mão da sua acutilante inteligência e, a outra, biblioteca de livros para circular, ele que era leitor viciado, escritor e divulgador militante, publicista de algum modo. Um libertino do gosto.
04/04/2022