Fernando Mora Ramos: “Há um sindicalismo mental corporativista e estatístico”
O Teatro da Rainha, companhia com sede nas Caldas da Rainha, estreia dia dois de Julho na Sala-Estúdio do TR, pelas 21.30h — espectáculos a 3, 4, 8,9,10 e 11, às 21h30 — uma adaptação do “Discurso sobre o filho-da-puta”, conhecida obra de Alberto Pimenta publicada, pela primeira vez, em 1977. Trata-se de uma realização coral conjunta de Miguel Azguime e Fernando Mora Ramos, numa versão que contará com quatro atores em palco, numa lógica de quarteto instrumental de vozes e de timbres.
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A pretexto da estreia, desafiamos o diretor da companhia, Fernando Mora Ramos, a discorrer sobre teatro, cultura, política — sobre a nossa vida em sociedade e o que andamos aqui a fazer. O texto de Alberto Pimenta também ajudou à festa, uma vez que a partir dele ou em torno do que ele sugere e propõe, o entrevistado chama Gil Vicente e Brecht à conversa, porque apesar da “sua abstração retórica”, as palavras de “Dfp” abrem-se a “um oceano de destinatários nas suas ondas provocatórias e rigorosas”.
Provocador no pensamento, Mora Ramos aproveita a dimensão camaleónica do texto que encena, para criticar a dimensão “viral e pandémica”, do “Dfp”, “com a agravante — sustenta — que não vale a pena ter a ilusão de que há uma vacina possível, pois o arrivismo, o nepotismo, o modismo, o carreirismo, o militantismo acéfalo, o corporativismo, são doenças sócio-tribais”.
Desiludido ou pessimista, Mora Ramos defende que a saída está na cultura, na capacidade reflexiva, na possibilidade crítica e de desassossego que cada um deveria reivindicar para si e para a sua praxis quotidiana. Porque, alerta ele, “não tenhamos ilusões, a besta anda aí.”
sinalAberto (sA) — O “Discurso sobre o filho-da-puta” é difícil de classificar. Situa-se algures entre a poesia e a chamada prosa poética, aparentemente distante do que tendemos a considerar um texto dramático. É uma espécie de texto transgénero. Como surgiu a ideia de o adaptar a um contexto teatral?
Fernando Mora Ramos (FMR) — O “Discurso sobre o filho-da-puta” tem potencialidades teatrais, são-lhe imanentes, fala longa, sábia, de um orador, um provoc’autor. Pôr em cena é revelar essas potencialidades numa escrita corporal, que cénica, não é previsível e é disciplinarmente múltipla, pois essas potencialidades, na sua imanência e vitalidade anímica presencial, não trazem receita de conversão audio-visiva, tridimensional, presencial, cénica, o que vai surgindo dos ensaios. Escrever é tentar, repetir e variar, trabalhar hipóteses, descobrir evidências no que parece surdo e mesmo incompreensível, procurar na matéria tímbrica das vozes e corpos as singularidades da transcrição, da transformação do texto adormecido no papel em vida num espaço contentor.
Depois, há no texto uma contrafação do mundo dos oficialismos, das instituições, sob a forma de um cruzamento entre o sermão burlesco — um carnaval da oração que Gil Vicente praticou — a oração de sapiência, o elogio fúnebre, o comício e a prática, muito disseminada, da palestra, da aula. É todo um universo de referências e modos gestuais, de gestos na perspetiva do “gestus social” de Brecht, do gesto que revela formas de exercício de poder — quem tem a palavra tem o poder — em deslocalização de contextos de referência nem sempre concretos, pois o texto, na sua abstração retórica — quem o discursa pretende convencer, seduzir — abre-se a um oceano de destinatários nas suas ondas provocatórias e rigorosas. Quase tudo vem à rede na determinação classificatória dos tipos e subtipos de “fdp’s”, aqui o “Discurso” é muito taxonomia antropológica, analítica de propósitos, comentário. Imaginámos um coro para o seu registo cénico — como o coro grego mas mais livre que a visão delegada da cidade, mais comprometido com a figura sempre em “fuga” do autor — para além do que logo se supõe de lógica de orador e oratória. O texto começa “Estimados compatriotas”, é todo um programa.
sA — Alberto Pimenta é poeta e ensaísta, mas também um conhecido performer. Faz sentido pensar que esta é uma incursão do Teatro da Rainha por um teatro mais performativo?
FMR — Entendo a performance como parte do ato teatral. A parte mais elementar, despida da multidisciplinaridade, o osso mesmo, o corpo falante-gestual, a contracena. O que é performativo é o espontâneo que na escrita de cena, nos ensaios, faz com que a energia da presença seja inesperadamente escrita, e sempre, todos os dias, acontecimento único e imprevisível, surpresa — sem isso só há comunicação requentada, tautologia, redundância gordurosa.
Ora, a repetição não mata a espontaneidade. O intérprete tecnicamente apetrechado encontra sempre essa respiração diversa no mesmo gesto, é capaz de o concretizar, muita intuição inteligente nisso.
Portanto, a performance, como ato único, pretende dizer uma única vez o nunca dito, uma utopia como outra qualquer, já que tudo é sempre referido a qualquer coisa, a um antes referencial, ninguém imagina sem palavras, a língua precede tudo. Muitas vezes o que acontece é que esse inesperado nunca acontecido, o não representado mas “presentado”, é na realidade requentado re-presentado. Como acontece com quem queira tocar piano sem conhecer as teclas, dizendo que compõe uma peça nunca ouvida e que essa peça ensinará aos ouvidos outros modos de ouvir — o piano condiciona tudo, como o corpo instrumento e a língua que o habitat. Na improvisação nada se improvisa e o que se improvisa, em torno de, vem com as inevitáveis referências e vícios do improvisador, quando não clichés. O que fazemos em palco, no teatro, no teatro que queremos fazer, é sempre nessa busca de um gesto que não se senta em cima de um mimetismo fácil, aquele que estupidamente afirma que “na realidade é mesmo assim”, quando a arte é uma reconstrução artística do real e a performance esse gesto inesperado e vital, elementar no seio de uma maneira de fazer, um método — eu não disse “O método”.
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O “fdp” do texto “está vivíssimo”
sA — A primeira edição do “Discurso” data de 1977. Foi depois publicado em Itália, Brasil, Espanha, França. Parece haver uma certa universalidade e intemporalidade na personagem-tipo do filho-da-puta. Estamos a falar de uma espécie de clássico do futuro?
FMR —Eu acho isso. Quando um texto não se dá a ler de uma vez só, como se lido morresse ali, quando diz coisas diversas em momentos e épocas diferentes, quando tem qualidades estilísticas esteticamente reconhecíveis, como inesperadas — e, neste caso, entre conteúdo e forma, a contradição é evidente —, quando a ele se regressa — as edições creio que são já seis, em português, fora as que referes noutras línguas — e se volta a regressar para o trazer à atualidade instante, como agora — é inacreditável que, estando a fazê-lo, fale de “FDP’S” universalmente conhecidos do nosso presente como o Trump e o Bolso… mais os seus eleitores, sem que forcemos uma interpretação; quando o texto tem uma perspetiva histórica clara face ao que denuncia, etc., estamos perante a força de um clássico, é essa resistência ao tempo — ficar colado ao tempo do parto — que o projeta em nova vida, novas leituras, é essa diversidade das leituras que o enriquece. O “fdp”, como os “fdp’s” que inventaria, está vivíssimo e com ele também regressamos a um português que é de recorte erudito e comum, tão necessário num momento de subalternização da própria língua por via do Acordo Ortográfico, um português à procura de um “êxito comunicativo no mercado dos falantes” e da anglicização.
sA — A propósito de personagem, uma das características do filho-da-puta parece ser a sua enorme capacidade de adaptação a diversos habitats. Ele tanto se encontra na Academia como no Estado ou na Igreja, é uma propriedade ou categoria que não olha a estatutos nem classes sociais. Estaremos a falar de um outro tipo de pandemia?
FMR — Exacto: o “fdp” é viral e pandémico. Com a agravante que não vale a pena ter a ilusão de que há uma vacina possível, pois o arrivismo, o nepotismo, o modismo, o carreirismo, o militantismo acéfalo, o corporativismo, são doenças sócio-tribais, basta viver em sociedade e elas estão aí e particularmente nesta em que os vínculos comunitários são frágeis e o individualismo receita, o mercado faz de cada um, um consumidor e uma mercadoria, na mesma pessoa corpo. Ora essa pandemia só se resolve com a revolução que nunca houve, aquela que, de facto, traga uma sociedade de entre-iguais, de “a cada um segundo as suas necessidades, de cada um segundo as suas potencialidades e vocação, para que o todos seja um todos sem relações de mando e obedecimento, com toda a diversidade do que sejam singularidades e com todas as condições de realização de um comum de gente emancipada.”
sA — O Teatro da Rainha está a comemorar 35 anos de atividade. Quiseram os astros que num ano estranhíssimo das nossas vidas, exigindo aos agentes culturais esforços adicionais para os quais ninguém parece estar devidamente preparado. O texto do Alberto Pimenta tem também qualquer coisa de muito pertinente, até profético, sobre certas figuras que vêm emergindo com muita clareza nestes tempos difíceis. Como é que se olha para o futuro a partir do que está a acontecer?
FMR — O futuro está sempre a acontecer e nunca vem, temos sempre expectativas que estão além do realizado e realizável. No entanto, olhando para trás, fizemos um caminho que posso dizer notável. Passámos por tudo, como o Clindor do Corneille, na “Ilusão Cómica”; fomos ricos de arquiteturas e extremamente pobres delas, precários, e obviamente, nada acumulámos, não mais que saber, conhecimento, modos de fazer e novos horizontes de dramaturgia e escrita cénica.
Claro que aprendemos um teatro diferente do que conhecemos quando arrancámos. Muito mais empenhado na subjetividade que os textos assumam, menos colados aos obrigatórios grandes temas universais, e mais colados ao pequeno acontecimento, à gente pequena, no cruzamento da relação entre o íntimo e o político. Para nós, neste tempo de vida, houve situações mais complicadas e mesmo quase trágicas que esta agora — várias vezes quiseram acabar com a companhia, e até a partir de gente muito próxima, do mesmo suposto campo de prospetivas.
Quanto ao futuro nem os omniscientes o conhecem, para nós continua luta diária, teimosia, só sabemos fazer isto e pensar que o que fazemos serve para que uns tantos possam sonhar com outro mundo concreto. Um mundo em que a crítica esteja inscrita e que “o belo, o agradável e o novo” sejam bem-vindos, para citar o Pimenta.
O fechamento em que nos encontramos é terrível, leva a formas de patriotismo acéfalas, a globalização gerou estes nacionalismos que aí estão, nunca procurou a universalidade mas pôs o mundo nas mãos dos mais poderosos como se fora um brinquedo seu e as pessoas a sua carne para canhão disponível. Por cá há agora muita coisa exacerbada e vêm aí tempos complicados. Não creio que escapemos ao tal “austeritarismo”, estas forças no poder lêem o mundo a partir das contas do orçamento, é uma tabuada de regras escolares médias, contra a vida, uma receita de economistas — não podemos ser governados por economistas, não têm visão do mundo. A mediocracia está instalada e há muita gente desejosa de mais poder de compra, de mais estatuto, de mais salário e muito justamente — mas não como horizonte exclusivo, no fundo, falta dele. Há um sindicalismo mental corporativista, estatístico, muito parecido na resposta com o quadro de quem impõe uma agenda.
A agenda — todos os dias nos média dominantes os “intervenientes da democracia instituída”, demo-liberal, falam de um mesmo que ofusca — agora é o Covid e a sua grelha que fizeram desaparecer a Síria, o conflito na Palestina, etc. — cria um plano único que é o mesmo para todos e que se traduz por um mesmo sempre quantificável — uma luta de números, sejam mortos sejam o 3% do teto da dívida pública que nos condenou a protetorado domina os contendores. E mesmo quando os que se opõem querem dizer outra coisa, ao seguir no mesmo trilho temático e ao dar relevo ao mesmo tema, entram na dependência de quem gere o tema e o determina, são puramente reativos, colaboram na criação dessa cortina de opacidade que esconde a relevância de outros temas que são mais importantes que, volto ao exemplo, participar em posição subalterna no simulacro de debate sobra a dívida assumindo-a como “a questão” única porque o economicismo é religião e a moeda Deus — isso é um erro monumental de análise do real para quem assuma ser força de mudança, pois não é por dizermos “o contrário” no quadro de uma espécie de antagonismo estrutural que sistema o fluxo das coisas que esse mesmo se desvela, desmascara .
Por outro lado, o futuro a inventar está fora desses campos, é noutro algures, ao lado. A vida está noutro lugar, mais perto do corpo e da generosidade — é curioso que o Pimenta fala da Escola como um lugar de omissão de vida.
E o fascista que aí anda está a cavalgar este corporativismo dos salários, das pensões, de certos grupos profissionais, da ameaça de outras culturas que tendem para uma outra hegemonia que não a da sacrossanta tradição judeo-cristã, como é o caso das forças policiais e das questões da segurança em geral.
A paranóia securitária, o medo cultivado pela irresponsabilidade e mediocridade informativa e mediática, pela mentira e pela mentira ideológica, a imposição de regras sanitárias excessivas, que limitam para além da defesa da saúde de todos as liberdades, têm levado a uma maior aceitação do que se apresenta como providencial, salvador, em registo é claro, de star sistema parolo local, que o nosso firmamento começa ali em Algodres de cima e acaba sempre na Rampa do Chiado.
Enfim, vamos ver, mas não tenhamos ilusões, a besta anda aí.
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27/07/2020