Fernando Mora Ramos: “No teatro fazemos o contrário dos média, não exploramos o drama”

 Fernando Mora Ramos: “No teatro fazemos o contrário dos média, não exploramos o drama”

Depois de um ano confinado à sala estúdio, o Teatro da Rainha regressa ao Parque D. Carlos I com uma grande produção concebida para um espaço público da cidade onde a companhia, com 36 anos de actividade, se encontra sediada. “Lázaro, também ele sonhava com o Eldorado”, do dramaturgo francês Jean-Pierre Sarrazac, com tradução portuguesa de Regina Guimarães, estará em cena entre os dias 6 e 10 de Julho num cenário concebido por José Serrão que aposta no contraste com as pré-existências e na frugalidade das formas e dos materiais utilizados: paletes empilhadas, estrados, escadas e rampas. Falámos com o encenador Fernando Mora Ramos acerca deste novo espectáculo.

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sinalAberto — Comecemos pelo regresso ao Parque D. Carlos I. Depois de um ano e meio de pandemia, suponho que tenha um sabor especial sair da sala estúdio para cumprir uma tradição suspensa, a realização de espectáculos em espaços que não foram originalmente concebidos para o efeito. Qual a importância para o Teatro da Rainha deste tipo de envolvência com a comunidade, uma envolvência que implica tanto um reaproveitamento do património material da cidade como a participação de actores amadores?

Fernando Mora Ramos — Tudo começa numa certa precariedade das condições. Mas não só. Quem não imagina um espaço adequado ao que faz? Construir arquitetura para modos de representar diversos e de dar a ver “os espectáculos” — na “Poética” fala-se da “parte visiva” como uma necessidade, uma inevitabilidade, para completar a ouvida — é um exercício que se vai desenvolvendo à medida que vais fazendo teatro, espectáculo após espectáculo — e já lá vão 50 anos de fazer e 126 experimentações, contas recentes. E não esqueçamos que grandes dramaturgias surgiram com arquitecturas de ar livre, gregos e isabelinos, teatros que envolviam as cidades, públicos heterogéneos.

Fernando Mora Ramos (Créditos: Margarida Araújo)

Nessas experiências, baseadas em textos escritos para serem representados, partos em potência, descobres que as peças, as formas dramáticas, pedem sempre conformações espaciais diferentes — mais do que a cada texto a sua cenografia eu diria que cada texto contém um edifício, esse desejo implícito, um edifício singular enquanto cenografia e relação cena-sala, tens de saber sempre em que espaço concreto é a cena da sala  — isto quanto ao teatro liberto das cenas fixas e de entradas e saídas convencionadas, bastidores e luz de velas, contemporâneo, portanto. Isso significa forma física, mas também forma acústica. O espaço é uma arquitectura, no sentido convencional, e uma caixa acústica, um instrumento, um ressoador, mais seco, mais reverberador. Há espaços que ressoam mais cavo, outros mais agudo, a atenção ao fenómeno da escuta é essencial num mundo dominado pelo ruído e pela surdez, também psíquica, o narcisismo mata a disponibilidade de ouvir.

sA — Porém, a escolha deste espaço tem certamente uma razão.

FMR — Tirar o teatro do pequeno espaço é um desejo de ir ao encontro da maior parte, projectarmo-nos no todo da cidade, sem reservas. Há quem sinta, ainda hoje, intimidação por estas coisas, que não se reveja nestes rituais para “menos gente e certa gente” que são o teatro e o cinema — dizem que morreu, é a fatalidade das indústrias, já o teatro renasce como a erva daninha. Não são espectáculos massivos. Para atingirem o grande número têm de estar em cena meses. Era isso que deveria acontecer, longas explorações, não estreias sucessivas, o que animaria na cidade um debate prolongado no tempo que dessa experiência cívico-estética surgisse. Mas sair da pequena sala é mudar de teatro, deixar para trás as dramaturgias de “câmara” — foi assim que começou o nosso teatro, com o “Monólogo do Vaqueiro” na câmara da Rainha — e avançar para um teatro de raízes mais populares. Foi assim com o “Triunfo de São Martinho”, articulação do “Auto” com o “Triunfo do Inverno” (extraordinária figura, o Inverno, mais os seus males), foram assim os Aristófanes, “A paz” e “Os pássaros” (na recriação de Chartreux), foram assim espectáculos feitos no Adro da Igreja do Pópulo ou no Beco do Forno. Também assim foram as digressões pelas freguesias. Não esqueço o Molière feito no miradouro da Serra do Bouro, atlântico por ciclorama, o TIR do Senhor Carreira a fazer de corta-vento. Esse é problema do ar livre, a concorrência com as forças da natureza e nas Caldas o mau tempo é uma perseguição constante. Nós não fazemos teatro de rua, fazemos teatro em espaços públicos, ao ar livre, em que reconhecemos, ou criamos, condições de representação elaboradas. Não servimos gato por lebre. Estas montagens são de grande complexidade arquitectónica e acústica. Não acontecem sem recurso à tecnologia acústica — e de iluminação, de aplicação mais complicada nestes contextos de ausência de teia — e neste caso, partindo de um lugar específico. Tudo começou ao olhar para a parede esquerda da entrada da estufa do Parque D. Carlos I, disse para mim: ali está o bairro de São Salvador, em Toledo, é por aquele portão que entra o Arcipreste para o seu “palácio episcopal”/negócio de vinhos.

sA — Há ainda outro aspeto que é a integração de amadores no espetáculo. Fala-nos dessa experiência.

FMR — A integração de amadores da cidade é um passo também no sentido do rompimento dessa separação da cena com a sala, dessa fronteira. Somos a companhia residente, isso significa habitar a cidade, um sentido que vai para além do físico, é de proximidade para com os que amam o teatro, que sentem necessidade dele como forma de vida, como esclarecimento dos porvires, espaço crítico e dialogal, cidade, estar junto pelo gosto de identificar o sentido de andarmos por cá a partir de materiais de viagem intelectual e sensível. É também um prazer fazer esse teatro que explora formas mais inocentes do fazer, teatro brut, como me disse Sarrazac numa SMS recente, ingénuas e fortes na expressão, sem entraves de sofisticação tendencialmente herméticos, com uma grande afirmação dos próprios corpos, presença e capacidades de escrever, numa poética que vê a imperfeição como uma forma específica de qualidade.

Temos em horizonte de estímulo essa utopia de imaginar uma cidade viciada em teatro. Não somos daqueles que vêem o futuro em 3 D. Sempre o praticámos, o 3 D presencial. E tens toda a razão. De cada vez que vamos para o Parque a cidade ganha alma comunitária.

sA — “Lázaro, também ele sonhava com o Eldorado”, de Jean-Pierre Sarrazac, foi publicada em 1976. Marca a estreia de um autor que conheces muito bem. De resto, encenaste-a pela primeira vez em 1984. Que diferenças há entre o Lázaro de 1984 e o Lázaro de 2021?

FMR — Em 84 foi uma lança em África, naquele Porto primitivo e bairrista. Não se fazia teatro contemporâneo. Agora, dizem, não se faz outra coisa, anda toda a gente a falar de biografia, autoficção. É um empobrecimento, um umbiguismo lamentável — como obrigação de moda, digo, num mundo tão diverso e amplo não sair da própria pele e do espelho lá de casa é limitado. Nos “Modestos”, onde fizemos o espectáculo, o espaço era uma ruína. Também nisso fomos pioneiros, os que o fizemos, na altura a “Cena”, companhia que depois rumou a Braga. Era impensável usar essa extrema precariedade como cenografia, mas foi o que aconteceu, contra todas as teorias do consumo e do conforto — a ideia de teatro era muito convencional, marcações, bastidores, o centro do palco como obrigação, actores virados de frente ou a três quartos numa mecânica impeditiva do verdadeiro movimento, sem baias, que se gera a si mesmo, codificações abstrusas e ignorantes. Era perigoso, literalmente, ir ver o espectáculo. Não só pela violência do contado, mas também pela iminente queda do tecto. Exagero, um pouco. Mas sem exagerar, ninguém vai lá. E era um espaço interior. Tínhamos também menos meios e menos gente que agora. As dobras e triplicações de papéis eram próprias de um elenco muito jovem. O mais velho era o Abel Fernandes, trabalhava na Osram e trazia lâmpadas de borla. Fizemos um trabalho de luz com lâmpadas roubadas, quase sem projectores. Lâmpadas de nevoeiro, ainda me lembro. Curioso, em aparte, o Abel viajara por França nos idos de sessenta e vira as coisas do Vilar. Era um amador, no verdadeiro sentido. Como se depreende era um espectáculo com energia de sobra, muito marcado pelo desejo de um teatro em que o corpo estivesse presente de forma muito exposta, como sugere Sarrazac no posfácio. O José Bessa, que fazia o Lázaro, era enforcado pelos pés aí a três metros de altura, voava literalmente para o chão. Foi o velho Oliveira, grande carpinteiro, que fez as partes do cenário, essa forca guindaste portuário. Tudo muito sólido. Era ainda o tempo dos pregos. Vinha dos Plebeus Avintenses, grupo de grande tradição.

Como se depreende estava tudo a acontecer, éramos criadores de acontecimentos, o contrário de organizar eventos. Como se estivéssemos a fazer a democracia. Isso marcava as coisas de um desejo claramente revolucionário, de produção do inexistente e não de comemoração do simbólico a cada data calhada — anda aí muito cadáver a procriar —, de enfrentar o vazio que 48 anos tinham construído como deserto de tudo, preenchido de formas de ignorância instaladas como rotina e regra, preconceito e vida reprimida.

sA — Hoje o tempo é outro e isso tem de se refletir no modo de encenar as palavras e o pensamento do autor…

FMR — O espetáculo que hoje fazemos é mais reflectido, encontrou na distância — nova actualidade — a sua motivação. A questão migrante está no topo dos problemas que vivemos, na Europa, estamos sempre a metê-la para debaixo do tapete, a responder à questão com medidas de gestão e controle de fronteiras em tudo práticas de desumanidade políticas que revelam um medo imbecil da mistura — a velha França, a velha Alemanha, o Portugal de antanho, etc…

Creio que desta vez estamos a ir mais longe, quer dizer, mais fundo. Temos uma melhor compreensão do texto, de complexidade referencial múltipla, a cavalo entre muitos tempos e entre muitas formas. Sarrazac refere os “Jeux de rêves” que aqui pratica em articulação com o drama por estações — as etapas de um Calvário — como uma forma de desvio relativamente à mimese integral, a uma suposta cópia da realidade. Estes “Jeux de rêves” põem em cena as formas do sonho e misturam-nas com as lógicas factuais, criam um “mundo à parte” na forma, separado e distante dessa ideia de uma forma que, aparente, se identifique falsamente com a realidade. Diz Sarrazac no seu ensaio “Jeux de rêves et autres détours”, página 19, Circé, 2004: «(…) as dramaturgias do desvio (détour), a da parábola e do jeu de rêve, não procuram captar o real. Submetendo-se a tal procedimento, não poderiam mais que esgotar-se no parecer da imitação; perderiam a sua autonomia de “mundo à parte”. O realismo do desvio é um realismo heurístico, que não busca a realidade mas sim a verdade. (…) O realismo do desvio apresenta-se como um realismo do questionamento. O desvio abre diante do espectador a porta do conhecimento. (….)» E continua, página 20: «Realismo alusivo, portanto. Como o que caracteriza os contos de Kafka, esse mestre da parábola a propósito do qual Gunther Anders falava de uma “deformação que informa”.»

O que é importante reter é que este Lázaro, metamorfoseado em tritão, é também um texto depositário deste tipo de experimentação dramatúrgica. Na verdade nem as personagens são identidades, pelo contrário, são figuras, como lhes chama, é difícil ver-lhes a âncora, assim como o processo narrativo não respeita nem unidades de espaço nem de tempo, pelo contrário convoca-as num registo heterotópico e heterocrónico, viagem mental, também. E mais que tudo, presente corporalmente.

sA — Trata-se de uma peça sobre emigração, é o próprio autor quem o afirma. Quando foi escrita, Sarrazac estaria a pensar nos “bidonville”, bairros de lata maioritariamente ocupados por portugueses que fugiam à ditadura. Curiosamente, há 2 anos, o Público editava uma reportagem com o título “É o Alentejo o novo “eldorado” da imigração?” Já este ano, o país parece ter acordado, embora algo sonambulamente, para o problema, por força da situação epidémica em Odemira. A actualidade motivou o regresso a esta peça? Sentiste alguma urgência em abordar o tema da migração?

FMR — Exactamente, Henrique. Temos essa percepção também. Ainda há pouco tempo, em Aljezur, vi um grupo de rapazes/homens a refazer uma rua e perguntei de que origem eram? — nepaleses. E o Nepal aqui tão perto. É quase irreal, de estranho. Estavam a tapar buracos no alcatrão do costume, esburacado. A questão da hospitalidade é central para pensar um novo mundo, um mundo que vai reconfigurar geografias, remisturar culturas próprias, de alguma forma desamericanizar o planeta. Espero eu. Sem novas solidariedades e novas políticas de regulação e inserção dos migrantes esta sangria desatada que é o Mediterrâneo continuará a falar dos nossos egoísmos nacionais tendencialmente homicidas. Sei que são assuntos terríveis. A peça é um frente a frente como o que, nessas vidas só referidas para estatística e jogos de economia, é absolutamente limite: a morte que espreita como absoluta banalidade. No teatro fazemos o contrário dos média, não exploramos o drama, tentamos mostrar o que está por detrás, tornar evidentes as contradições que movem o mundo e as engrenagens da morte, de outro modo hoje industrializada. Que mar é este que agora criamos, que foi dos gregos e de tantas civilizações ricas de cultura?

sA — Como caracterizas o Lázaro de Sarrazac? Será um sonhador? Um pobre miserável? Um desenrascado? Vítima do destino?

FMR — É tudo isso e algo outro, é um resistente. Um estranho resistente, uma força inexplicável e uma consciência de si muito física, conhece bem os limites do corpo. Se os gatos têm sete vidas, Lázaro tem outras tantas. É um sempre-em-pé, até cair. E cai porque sonha demais, sonha errado, sonha como os outros: quero enriquecer para voltar à terra. Isso supõe um caminho de filha da putice, de concessões e omissões, de indiferença, para o qual não está preparado. Tem a sabedoria dos ingénuos. Sarrazac diz que o Lazarilho, o de Tormes, que sobrevive em convívio saudável com o seu estatuto de humilhado — menos do que antes, casado com mulher partilhada e pago para isso — em final de fábula, está presente no que hoje emigra. Este Lázaro são todos esses incluindo o da Bíblia. E ainda um outro, a sua monstrificação. É a condição animal, a vida equiparável a um animal — que na peça acontece — que nos choca. E alerta. Se em nós algum resto de sensibilidade sobra, educados que somos para a insensibilidade, para a propriedade como cidade única e para o consumo como troca mercantil, falsa vida. Fala-se muito de resiliência, está na moda, essa resiliência faz, ao lado do que este Lázaro aguenta, de história para alimentar fábulas de sucesso, paleio ideológico normativo. A nós interessa-nos o avesso, o insucesso, o que não se vende como paradigma positivo no altar das aldrabices. Agrada-me também a ideia de um Lázaro — e os outros também — que é uma entidade movente, sujeito em mutação, ao mesmo tempo capaz de expressar um domínio vocabular que não seria o da sua condição miserável, não está colado a si mesmo, o monólogo final é um testemunho, um legado: sejam índios, respondam pela mudez, não tagarelem, esqueçam essa língua que vos envenena. É uma proposta radicalmente ecológica, a toxicidade está na própria língua, esse veículo de ilusões que, na realidade, não é neutro. A palavroterapia é essa tagarelice que sossega e a poesia uma língua de índios. Em Lázaro, o discurso poético, um certo surrealismo, tem o seu lugar — índio é de algum modo a figura do bêbado, a mais misteriosa, a meu ver.

sA — O local encontrado para o cenário elaborado pelo José Serrão permite conjugar ambientes geográficos diversos, tal como a peça o exige. De Toledo ao porto de Sevilha, passando pelo deserto da Meseta, são muitos e distintos os tons. As próprias dinâmicas da acção impõem essa disparidade, com cenas profundamente trágicas e outras altamente cómicas. A saga de Lázaro é uma tragicomédia?

FMR — Creio que o género mais interessante é esse, o das misturas. A vida não tem tons únicos, mistura-os, da lágrima surge o riso, até se diz chorei a rir — há um texto de O’Casey sobre este tema. Tinha, em tempos, uma noção muito puritana dessas coisas, dificuldade de pensar que podemos fazer humor com coisas limite. Mas não é verdade. O modo como, por exemplo, Tabori, judeu e dramaturgo, grande encenador experimentador, aborda o Holocausto, vem contrariar aquela ideia de que há coisas de que não podemos falar. E rirmo-nos não será reagir à anedota, coisa fabricada de antemão para rir. O riso libertador pertence a outras possibilidades, de emancipação em processo, não é para consumo recorrente, é sempre imprevisto. Na indústria, no chamado humor de pacote, de série ou de show, aí sim a recorrência é a renda. No mais trágico há cómico. É indissociável. O exemplo que Pirandello dá, no seu ensaio sobre o Humorismo, acerca da velha senhora que se pinta, é exemplo disso — fica ridícula e pensa que fica bela. O que acontece é feito dessa quantidade de tonalidades diversas. O cómico de Chaplin é muitas vezes trágico. Eu diria que esta peça, feita de muitas peças e de teatros de vária origem, de vários teatros, que labora a pantomima, a farsa, um teatro físico menos elaborado, formas de comédia, mais sofisticadas, o monólogo — no essencial a estrutura vive do drama por estações, as etapas de um calvário, e de momentos de comentário, mais monologados ou ditos em falas directamente dirigidas aos espectadores, ou em poemas, canções — a que nós acrescentámos referências ao flamenco, ao music-hall, outras cinematográficas, é uma forma ógrica, alimenta-se de tudo aquilo que o real possa oferecer para o converter em ficção que abra possibilidades de ler e não a confirmação do vivido como “é assim que as coisas são”. Nessa capacidade ógrica cabe ainda com certeza certo cinema clássico italiano e até o nosso, de todos, Charlot.

sA — Num ensaio intitulado “O Jogo dos Possíveis”, Jean-Pierre Sarrazac diz que «a representação já não é imitação mas sim “análise” de uma vida, de toda a vida…» Ou seja, no seu trabalho não se processam julgamentos nem sentenças. Abre-se o armário das hipóteses e lançam-se possibilidades. Nesta peça em concreto, “Lázaro, também ele sonhava com o Eldorado”, encontramos gente muito pouco encantadora. Ou será que os mais ruins são, no caso em apreço, também eles vítimas da indigência geral?

FMR — Na medida em que a realidade, o seu fluxo, não produz moral, nem segue ética alguma, o que é sua consequência é esta deformação das possibilidades do que o sonho, o que se projecta como ilusão, utopia falsamente positiva, escrita e estruturação livre, vai recriando como fuga para a frente — alimentamos sempre um devir que nos calhe melhor. Do positivo que estimula é parido um negativo que necessita de análise e de sangue frio analítico, modos de enfrentamento que não se ceguem de instinto básico ou de sentimentalismos de novela, de tudo se explicar temperado com uma predisposição para a pieguice — e a compaixão para autoconsumo e complacência abrangente — que é tão contrastante com a brutalidade da real. Os maus não são maus por opção, isso é o que dizem as novelas e as séries — uma espécie de novela evoluída, com qualidade, como dizem, falando de três a cinco estrelas — nem os bons são bonzinhos. A peça desmonta com precisão fabular e cirúrgica as malformações estruturais da ideologia do sucesso e dos seus apêndices publicitários e propagandísticos: ser melhor, o melhor, o campeão, coleccionar recordes, etc., chegar ao topo. Na peça a menina que lhe vende o Eldorado a certa altura diz, comparando a vida dele com a dos banqueiros, que estes passam a vida a viajar, como ele poderá fazer, só que a butes. É o curso do dinheiro, anda muito mais rápido que os aviões, Lázaro vai de pé esquerdo, pé direito, mas pode sonhar que a sua viagem lhe permita ter uma casinha comercial, transforma-se em riqueza a investir — é o paleio do capitalismo popular, do empreendedor, etc., tudo mitologias prontas a usar. O mundo dominado pelo espetacular primarizou completamente. Lázaro face ao que hoje nos querem impor como credo horizonte é um intelectual, pelo menos calcorreou a pé a Meseta, grande escola, aprendeu com a sola dos pés e no fim lega sabedoria, cuidado com os modos de integração sistémica e os caminhos que aí levam.

Há uma frase que também me tem batido: não te deixes ir atrás do barulhinho das agulhas que no cérebro vão tecendo essa forma do desejo — sucesso, êxito, — na tua cabeça. Sim, o desejo é também uma construção, uma conformação. As grilhetas hoje são açucaradas.

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30/06/2021

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Henrique Manuel Fialho

Está representado em diversas antologias de poesia e conto publicadas em Portugal, no Brasil, em Espanha e em Marrocos, tendo colaborado igualmente com textos ensaísticos, poemas e ficções incluídos em variadíssimas publicações colectivas.

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