Ficção, mas pouco
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.
Finalmente, o país tinha entrado no verdadeiro século XXI ou, quiçá, antecipado o século XXII. Não havia governo, mas sim governo eletrónico (o tão apregoado e-government dos finais do século anterior), o que era totalmente diferente. Todos os serviços do Estado estavam disponíveis na Rede. Mais, só podiam ser acedidos através da Rede, pois tinham sido abolidos os serviços de atendimento presenciais. Mais, ainda, esses serviços só podiam ser acedidos através de um telemóvel, cuja utilização era obrigatória.
Telemóvel: essa benesse da cidadania, que permitia aos eleitores votar para escolher os seus representantes virtuais, num hemiciclo também virtual, e saber o resultado da votação em poucos segundos. Para isso muito tinha contribuído a obrigatoriedade de ter o cartão eletrónico de cidadão – ou melhor, o cartão de cidadão eletrónico – armazenado no telemóvel, pois então, bem como todo e qualquer outro documento. Sim, a carta de condução também estava, obrigatoriamente, no telemóvel, assim como os documentos do carro, da casa e de toda e qualquer propriedade. Boletim de saúde? No telemóvel. Consultas e medicação? No telemóvel. Verificação do estado de saúde? Os sensores do telemóvel tratavam do assunto. Um ligeiro desvio de qualquer sinal vital alertava de imediato as equipas de saúde, que podiam analisar com detalhe todos os parâmetros biométricos de cada cidadão através do telemóvel, identificar rapidamente todos os contactos nos últimos dias e decretar o isolamento profilático. Na verdade, nem só as equipas de saúde podiam rastrear os contactos mas, também, qualquer serviço do Estado, para qualquer fim oficial, em nome da legalidade, da segurança e da ordem.
O querido telemóvel, de quem ninguém se queria separar por nada deste mundo, libertava os cidadãos da necessidade de ter cartões bancários, de ter que sujar as mãos com dinheiro em numerário, de ter que submeter as já esquecidas declarações de rendimentos. Todas as transações eram feitas com o telemóvel, todos os dados automaticamente enviados para os serviços de controlo do Estado, que sabiam, assim, todas as entradas e saídas de fundos de cada cidadão e podiam libertá-los da arcaica obrigação de declarar o que quer que fosse. Que comodidade! Que progresso!
O telemóvel não era somente utilizado para comunicação entre o cidadão e o Estado mas, sobretudo, para comunicação entre o Estado e o cidadão. Através da aplicação de uso obrigatório myGovernment os cidadãos podiam ser notificados imediatamente de qualquer medida ou decisão, de qualquer nova lei, de qualquer nova obrigação, ou de simples propaganda, a qualquer hora e em qualquer lugar. De facto, tinha deixado de existir o “qualquer lugar”, a chamada “parte incerta”, pois através do telemóvel todos os cidadãos podiam ser facilmente localizados com uma precisão espantosa, dentro ou fora de suas casas, uma enorme vantagem para todos.
Agora, mais uma revolução estava na calha, que tornaria o telemóvel desnecessário e obsoleto: o myChip, um dispositivo multifunções, de grande capacidade de comunicação, de armazenamento e de recolha de dados, injetado em todos os recém-nascidos. Quem tomaria a decisão final sobre a obrigatoriedade desta maravilha da civilização? Os eleitores, naturalmente, através da aplicação myGovernment, que lhes ofereceria como única possibilidade votarem SIM.
Exagero? Loucura? Ficção?
27/09/2021