FITEI 2024 (II): Sem memória não há História
A edição 47.º do FITEI (Festival Internacional de Expressão Ibérica) acabou no dia 26 de Maio, tendo cumprido, uma vez mais, a sua missão e objectivos: fazer teatro, apresentar teatro e ser um lugar de referência nacional e regional na divulgação e na apresentação de espectáculos teatrais, todos eles provenientes de um espaço geográfico alargado, tendo como matriz os países da Península Ibérica e os outros países que, por motivos culturais e históricos, estão ligados a esta.
Foram vários os ciclos, exposições e residências artísticas, de que destaco a programação de “O FITEI e as Escolas do Porto”, com a apresentação de dois espectáculos a partir do texto “Rei Édipo”, de Sófocles (com tradução de Maria do Céu Fialho): “Édipo 2024 2.0” e “O Duelo e o Espaço Vazio” – pelos alunos de Teatro da Escola Superior Artística do Porto (ESAP) e por estudantes do programa Erasmus; e a versão “Édipo”, encenada (dirigida) por Ricardo Teixeira e interpretada pelos alunos do 2.º ano do Curso de Teatro do Balleteatro Escola Profissional.
No espaço ou ciclo de formações denominado “Isto Não É uma Escola FITEI”, destacaram-se os workshops “Corpo e Partitura”, de Sofia Santos Silva; “Estrategias para Hacer Aparecer”, workshop realizado por Ana Luz Ormazábal e pela artista cénica Josefa Cavada, ambas de origem chilena; assim como o “Workshop”, com André Amálio e Tereza Havlíčková, dirigido a pessoas com ou sem experiência teatral.
Já no espaço “FITEI Aberto”, houve lugar para a música com “Aparições”, trazendo o palco para a rua, com a participação de um conjunto de músicos e de performers. Por sua vez, com “Ensemble Libecciu” ouviram-se canções polifónicas do Sul e do Leste da Europa, partilhando “o gosto por canções de cariz popular que oscilam entre a força bruta e a delicadeza”, como refere a nota de imprensa do FITEI.
A mesma nota informativa esclarece que a Orquestra Urbana da Trofa “é uma proposta de criação musical de cariz cultural, social e humano”, da autoria e coordenação de André Nunes de Oliveira. Acrescenta ainda que é constituída por cerca de 80 músicos de diversos grupos musicais amadores e por pessoas individuais com interesse na música, residentes no município da Trofa, “cujo trabalho tem vindo a ser desenvolvido e apresentado publicamente com sucesso em diversos eventos”.
Recordo ainda a actuação dos Amigos do Rufo, nome que é atribuído ao Grupo de Bombos e Caixas da Associação Sermonde Cultural, sediada em Vila Nova de Gaia, a qual “tem desenvolvido meritórios esforços na promoção do folclore enquanto movimento artístico e cultural”.
No que concerne ao domínio da exposição, é de salientar o “arquivo vivo” intitulado “70 Anos TEP”, no Palacete dos Viscondes de Balsemão (Museu do Porto), mostra que foi organizada “de forma (mais ou menos) cronológica, em sete núcleos, cada um correspondendo a uma das sete décadas de actividade do Teatro Experimental do Porto, desde a sua constituição”, em 1953.
A par dos muitos motivos de conversa e dos colóquios proporcionados nesta edição do FITEI, merece, igualmente, referência o lançamento do catálogo “REDELAE – REDELAE”. A Rede Eurolatinoamericana de Artes Cénicas (REDELAE) publicou este seu catálogo com uma selecção de espectáculos de diversos países, assumindo “a ambição de promover a grande diversidade de artistas, estéticas e temáticas dos espe[c]táculos do espaço Eurolatinoamericano”.
Recordo, igualmente, a conversa com Janaina Leite (encenadora do espectáculo “Stabat Mater”), moderada pela investigadora e escritora Ana Pais, sobre o processo de criação do espectáculo e em torno das problemáticas presentes na obra da artista e investigadora. Em jeito de sinopse, o FITEI diz que, a partir do texto teórico “Stabat Mater” (em Latim, “Estava a Mãe”), “da filósofa e psicanalista Julia Kristeva, a artista e pesquisadora propõe o formato de uma palestra-performance sobre o feminino, remontando à história da Virgem Maria, ao mesmo tempo em que tenta dar conta do apagamento da sua mãe na sua peça anterior”: “Conversas com Meu Pai”. Neste espectáculo, “ela articula de forma radical temas historicamente inconciliáveis como maternidade e sexualidade”. Por conseguinte, “tendo o terror e a pornografia como bases estéticas, [Janaina] Leite investiga as origens de um arranjo histórico entre o feminino e o masculino, que o trabalho tenta desarmar não sem antes correr riscos e enfrentar os mecanismos de gozo e dor que fixam essas posições”.
No dia 17 de Maio, no espaço TMP Café (Teatro Municipal do Porto), a investigadora e escritora Ana Pais moderou uma conversa “Fantasmagorias: Representações (retro)espectrais”, com Janaina Leite, encenadora de “Stabat Mater”, sobre o processo de criação do espectáculo e acerca das problemáticas presentes na obra da artista e investigadora, como referi, neste texto.
No que respeita às residências artísticas do FITEI, destaco as realizadas por Agostina Luz López e por Alberto Cortés (dramaturgo e actor).
O FITEI é, igualmente, um espaço de memória e pelo mesmo foram homenageados os fundadores do Festival Internacional de Expressão Ibérica, António Reis e Júlio Cardoso (da Seiva Trupe), e José Cayolla do TEP (Teatro Experimental do Porto), as duas companhias profissionais do Porto iniciadoras deste festival ibérico.
Um dos últimos espectáculos que tive a oportunidade de assistir, foi “Sem Palavras”, pela Companhia Brasileira de Teatro, de Márcio Abreu. Um espectáculo que coloca no palco diversos discursos na forma de monólogos, onde os corpos, quase sempre nus, são o suporte da palavra. Como informa o próprio grupo teatral: “A partir de corpos diversos, Sem Palavras propõe uma reinvenção da linguagem – misturando teatro, dança, música e performance – para dar conta dos velozes acontecimentos contemporâneos, com histórias de amor, de violência, de consumo, de corpos em transição, entre outros.”
Ao falar do FITEI como um espaço de memória, não posso deixar de relembrar, aqui, a primeira edição, no ano de 1978, nem o belo discurso no acto de abertura, pelo dramaturgo e historiador teatral português Luiz Francisco Rebello, que a 10 de Novembro desse ano, antecipava o significado histórico desta iniciativa, como uma das mais importantes manifestações culturais, de ressonância internacional, do Portugal democrático saído do 25 de Abril, e que “do modelo da Antiguidade conjugava de forma irrepetível a equação entre a experiência teatral e a presença cívica, o festival teatro dos nossos tempos, definitivamente inaugurado em Avignon[,] por Jean Vilar em 1947”. Curiosamente, 77 anos mais tarde, esse célebre festival de teatro, modelo de quase todos os festivais do Mundo, é hoje dirigido artisticamente pelo encenador português Tiago Rodrigues, antigo director artístico do Teatro Nacional D. Maria II.
Foi no ano de 1978 que participei, com o Teatro Experimental do Funchal (TEF – actual ATEF), com uma encenação do “Woyzeck”, de Georg Büchner. Nessa época, o TEF era um grupo de jovens com grandes ambições teatrais. No próximo ano, cumprirão 50 anos de vida, tantos como o Portugal democrático.
Então, encontrei-me no Porto com um exiliado chileno, o coreógrafo Patrício Bunster, uma das grandes referências da dança no Chile. Estava exiliado em Rostock, cidade do nordeste da antiga República Democrática Alemã (RDA). Júlio Cardoso lembra esse encontro e participação do Teatro Lautaro (Compañía de Teatro Municipal de Lautaro), na primeira edição do FITEI. Patricio Bunster, que era arquitecto, foi companheiro na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Chile, do meu tio (irmão do meu pai), também chamado Roberto Merino.
Patricio Bunster depois do exilio, regressou ao Chile para fundar, com a sua ex-mulher, a bailarina e académica Joan Turner, o Centro de Dança Espiral, para a formação de intérpretes, coreógrafos e professores de dança. Há uns 15 anos, convivi, num jantar em casa do académico Juan Barattini, saudoso amigo, com Joan Turner, que fora esposa de Victor Jara. Nesse convívio, estava também o actor chileno Erto Pantoja, que interpretou ou encarnou no palco o músico assassinado pelos militares. Victor Jara e Salvador Allende foram as primeiras vítimas do golpe militar de 1973. Posteriormente, viriam muitas mais, e mais de dois mil desparecidos.
Esta edição do FITEI, pela significância da data, foi para mim um lugar de memória. Já alguém o enunciava neste mesmo festival: “Sem memória não há História.”
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10/06/2024