“Flores de Papel”

 “Flores de Papel”

(chileestuyo.cl)

I – Um jovem delicado constrói delicadas flores de papel para decorar as mesas da sua mãe, numa espécie de estalagem. Recortadas finamente, as flores de papel são uma forma artificial de imitar e de capturar a beleza da Natureza, quando ela está ausente.

Esta é a cena inicial do último filme de Jane Campion, O Poder do Cão, realizadora australiana, baseado no romance, com o mesmo nome, de Thomas Savage. Lembro um dos primeiros trabalhos desta realizadora ainda no desabitado cinema Passos Manuel, quando a cidade do Porto tinha cinemas e o acto de ir ao cinema era o acto social e cultural que, na altura, representava.

O Passos Manuel chegou a ser programado pelo amigo Henrique Alves Costa, a quem tive a felicidade de conhecer e de com ele conversar e conviver, em muitas oportunidades. As nossas sessões cinematográficas eram no “Carlos Alberto” e continuavam em sessões de degustação na Casa Expresso, mesmo em frente, ao sabor de umas papas de sarrabulho e de mais alguma iguaria.

O Passos Manuel era um cinema de estúdio, no melhor sentido da palavra, com programação cuidada e onde cada filme era documentado com um breve flyer (como hoje se chama aos programas) contendo informação da sessão a que assistíamos. Foi aí que vi, entre muitos, o épico, de Dalton Trumbo, E deram-lhe uma Espingarda (com o título original: Johnny Got His Gun). Filme que, depois de muitos anos pensado, pode ser realizado pelo seu argumentista e realizador perseguido pelo macarthismo de Hollywood.

Imagem do filme Johnny Got His Gun, dirigido por Dalton Trumbo, nos EUA, em 1971. (https://mubi.com)

A propósito, o jornal Público (em Cinecartaz) reproduz um texto da Cinemateca Portuguesa: “Único filme de Dalton Trumbo, reputado argumentista de Hollywood que viu a sua carreira interrompida pelo maccartismo, integrado na famosa “Black List”, podendo apenas trabalhar encoberto por pseudónimos. Este filme, com argumento seu, baseado num antigo romance homónimo, é um cruel e terrível manifesto anti-bélico conjugado com uma subtil e irónica denúncia da censura, que ele tão bem conheceu. Situando a acção na Grande Guerra[,] o filme evoca qualquer outra guerra: a 2.ª Guerra Mundial, a guerra do Vietname mais próxima do livro, ou, visto de hoje, os conflitos actuais, Iraque, Palestina, etc., etc, etc…”

(http://4.bp.blogspot.com)

Também é bom lembrar que no cinema Passos Manuel, as exibições eram precedidas por documentários e por filmes de animação. Assim, foi palco para a descoberta do cinema de animação de Norman MacLaren (1914-1987), um dos mais importantes animadores escoceses voltados para a animação artística e que teve a maioria dos seus trabalhos patrocinada pela Secretaria Nacional de Cinema do Canadá (National Film Board of Canada – NFB), onde realizou grandes obras.

O primeiro filme de Jane Campion, do qual terei sempre memória, é Um Anjo à Minha Mesa (An Angel at My Table, de 1990), baseado no relato autobiográfico de Janet Frame (1924-2004). O filme conta a história de uma menina ruiva, gordinha e tímida que é diagnosticada como esquizofrénica e que passa oito anos sendo tratada com eletrochoques num sanatório, para depois se tornar uma das mais aclamadas escritoras da Nova Zelândia. Por pouco, não é submetida a uma lobotomia. É salva pelo facto de o seu livro de contos The Lagoon and Other Stories (editado em 1951, pela New Zealand’s Caxton Press) receber um importante prémio literário.

A escritora Janet Frame e o seu livro de contos The Lagoon and Other Stories. (Direitos reservados)

Depois, na realização, viria o célebre O Piano (The Piano, filme australo-franco-neozelandês, de 1993). Ambientado em meados do século XIX, conta a história de uma escocesa muda que viaja com a sua filha para uma parte remota da Nova Zelândia, a fim de cumprir o seu casamento arranjado com um neozelandês. Está magnificamente musicado por Michael Nyman.

Jane Campion é uma das grandes realizadoras da História do Cinema e o seu cinema de narrativas feministas é notável, quando nos apercebemos que há uma realizadora por detrás da câmara e que há personagens femininas que povoam os seus filmes e argumentos.

II Flores de Papel é o título de uma das mais famosas peças do autor teatral chileno, Egon Wolff, com o qual tive um único encontro em Santiago, no ano 2000. Nesse encontro, participou Manolo Vidal (Manuel Vidal Vásquez, responsável pelo grupo galego Rua Viva), homem do teatro – de Ourense – que o tinha conhecido em Espanha. Nessa ocasião, Wolf falou-nos dos seus projectos dramatúrgicos, depois de uma longa paragem de escrita e de criação.

Os dramaturgos chilenos Egon Wolff, Jorge Díaz, Luis Alberto Heiremans. (Direitos reservados)

Junto a Luis Alberto Heiremans e Jorge Díaz, Egon Wolff, é talvez, um dos dramaturgos chilenos mais representados no estrangeiro. Paula Braga, directora do Centro de Documentação Teatral do Teatro Nacional São João (TNSJ) – excelente e documentado sítio para os estudiosos de teatro –, informa, a meu pedido, das suas representações em Portugal. Assim, relativamente a  Egon Wolff (1926-2016) em Portugal, registamos Os invasores (pela Cooperativa de Comediantes Rafael D’Oliveira, com direcção de Canto e Castro; e pelo Teatro da Academia Recreativa de Santo Amaro), em 1977. A respeito de Flores de Papel (pelo Teatro em Movimento, com encenação de Leandro Vale; e também pelo Auditório Nacional Carlos Alberto (ANCA), em 1981.

É impressionante como as imagens iniciais de um filme nos trazem tantas memorias!

Numa paisagem deserta, árida, erma, seca e inóspita, as flores de papel são o mais fácil recurso para substituir a natureza. Lembro-me de ter percorrido à boleia todo o deserto de Atacama e ver as salitreiras abandonadas do Chile. Cidades fantasmas, com os seus cemitérios fantasmas, esquecidos depois da crise de 1914 (*). paisagens que lembram o Far-West dos filmes norte-americanos, varridos pela poeira e pelo vento.

Cemitérios no norte do Chile e o deserto de Atacama. (Direitos reservados)

Nas cruzes, como na imagem que ilustra esta crónica, as flores de papel cumprem a sua função rotineira de honra e de memória, de tributo e de cerimonial… Descoloridas, nostálgicas dos seus seres queridos e das suas cores originais, as flores de papel de seda, volátil como os papagaios dos miúdos (chamados volantines na minha terra), elas vão esmorecendo com o tempo até alcançar a brancura alba e celestial.

………………….

Nota do Autor:

(*) Em 1914, a indústria chilena dos nitratos entrou num processo de incerteza e de recessão devido a uma forte competitividade com os fertilizantes artificiais. Além disso, o rebentamento da Primeira Guerra Mundial provocou o fecho dos principais mercados agrícolas do nitrato ou do salitre chileno: Inglaterra, França e Alemanha.

15/12/2022

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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