Foi aprovada lei para restaurar 90% dos habitats da UE
O Parlamento Europeu (PE) aprovou a Lei da Recuperação da Natureza, a 27 de fevereiro, em sessão plenária, em Estrasburgo, apesar da contestação dos grupos de direita e dos agricultores.
A lei passou com 329 votos a favor, 275 contra e 24 abstenções, uma margem maior do que a inicialmente esperada. O resultado suscitou aplausos e vivas da parte dos socialistas e dos verdes, enquanto os colegas de direita se mantiveram em silêncio.
Será, agora, adotada pelo Conselho, antes de ser publicada no Jornal Oficial da União Europeia (UE), entrando em vigor 20 dias após a sua publicação.
A lei, que foi enfraquecida nas negociações com os governos dos 27 Estados-membros, será apreciada pelo Conselho da UE, que reúne os ministros da UE com esta tutela, para votação final.
Mais de 80% dos habitats europeus (tanto terrestres como marinhos) encontram-se em mau estado. Por isso, a 22 de junho de 2022, a Comissão Europeia propôs o Regulamento de Restauro da Natureza, para contribuir para a regeneração, a longo prazo, da Natureza danificada, nas zonas terrestres e marítimas da UE, para alcançar os objetivos da União, em matéria de clima e de biodiversidade, bem como para cumprir os seus compromissos internacionais, nomeadamente o Quadro Mundial das Nações Unidas para a Biodiversidade, de Kunming-Montreal. Com efeito, segundo a Comissão, a nova lei trará benefícios económicos significativos, uma vez que, por cada euro investido, resultarão benefícios de, pelo menos, oito euros.
O Regulamento Restauro da Natureza, acordado com os Estados-membros, visa a regeneração dos ecossistemas degradados em toda a UE, ajudar a alcançar os seus objetivos em matéria de clima e biodiversidade, bem como reforçar a segurança alimentar.
Por outro lado, dá resposta às expectativas dos cidadãos em matéria de proteção e restauro da biodiversidade, da paisagem e dos oceanos, expressas nas propostas 2.1, 2.3, 2.4 e 2.5 das conclusões da Conferência sobre o Futuro da Europa, que se realizou através de plataforma online, de 19 de abril de 2021 a 9 de maio de 2022, de que se fizeram relatórios intermédios e o relatório final, publicado em maio de 2022. Tais propostas são, respetivamente:
- criar, restaurar, gerir melhor e alargar as áreas protegidas – para conservar a biodiversidade;
- reforçar o papel dos municípios no planeamento urbano e na construção de novos edifícios de apoio a infraestruturas azuis e verdes, evitar e pôr termo a maior impermeabilização das terras e dos espaços verdes obrigatórios nas novas construções, a fim de promover a biodiversidade e as florestas urbanas;
- proteger os insetos, em especial os indígenas e polinizadores, nomeadamente através da proteção contra espécies invasoras e de uma melhor aplicação da regulamentação em vigor; e
- apoiar a reflorestação, a florestação, incluindo as florestas perdidas por incêndios, a aplicação de uma gestão florestal responsável e apoiar uma melhor utilização da madeira, em substituição de outros materiais, bem como definir objetivos nacionais vinculativos em todos os Estados‑membros da UE para a reflorestação de árvores autóctones e da flora local, tendo em conta as diferentes situações e especificidades nacionais.
A nova legislação visa reabilitar, logo que possível, pelo menos 20%, das áreas terrestres e marítimas da UE, até 2030; pelo menos 30% dos habitats em mau estado (desde florestas, prados e zonas húmidas a rios, lagos e leitos de corais); até 2030; 60%, até 2040; e 90% de todos os ecossistemas degradados, até 2050. E estabelece obrigações e objetivos em diferentes domínios de ação, tais como as terras agrícolas, os polinizadores, os rios, as florestas e as zonas urbanas, para inverter, gradualmente, os danos ambientais causados pelas alterações climáticas e pela atividade humana.
Em consonância com a posição do PE, os Estados-membros devem priorizar as zonas Natura 2000, até 2030. E, uma vez em boas condições, devem assegurar que uma zona não se deteriore significativamente, bem como adotar planos nacionais de restauro que especifiquem a forma como tencionam alcançar essas metas.
Para melhorar a biodiversidade nos ecossistemas agrícolas, os Estados-membros têm de fazer progressos em dois dos três indicadores seguintes: o Índice de Borboletas dos Prados; a percentagem de terras agrícolas com elementos paisagísticos de grade diversidade; as reservas de carbono orgânico em solos agrícolas minerais. Devem também tomar medidas para aumentar o índice de aves comuns de terras agrícolas, visto que as aves são bons indicadores do estado global da biodiversidade.
Uma vez que o restauro das turfeiras drenadas é uma das formas mais eficazes, em termos de custos, de reduzir as emissões no setor agrícola, os Estados-membros devem restaurar, pelo menos, 30% das turfeiras drenadas até 2030 (pelo menos um quarto deve ser re-humidificado), 40%, até 2040, e 50%, até 2050 (em que, pelo menos, um terço deve ser re-humidificado). A re-humidificação continuará a ser voluntária para os agricultores e proprietários privados de terras.
A lei prevê um travão de emergência, conforme solicitado pelo PE, para as metas para os ecossistemas agrícolas poderem ser suspensas em circunstâncias excecionais, como a redução drástica das terras necessárias para suficiente produção alimentar para o consumo da UE.
A legislação estipula, igualmente, uma tendência positiva em vários indicadores nos ecossistemas florestais e a plantação de mais três mil milhões de árvores. Os Estados-membros terão também de restaurar, pelo menos, 25 mil quilómetros do curso natural de rios e de garantir que não há perda líquida na área nacional total de espaço verde urbano e de coberto arbóreo urbano.
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Apresentado, como ficou dito, pela primeira vez, pela Comissão Europeia, em junho de 2022, ganhou mais importância após o acordo histórico sobre biodiversidade selado na COP15 (Nações Unidas). No entanto, em 2023, a lei tornou-se alvo de uma campanha de oposição por parte dos conservadores, nomeadamente do Partido Popular Europeu (PPE), a maior formação do PPE. Este grupo alegou que a lei ameaçaria a subsistência dos agricultores europeus, perturbaria cadeias de abastecimento há muito estabelecidas, diminuiria a produção alimentar, faria subir os preços para os consumidores e até destruiria áreas urbanas para dar lugar a espaços verdes.
Os argumentos foram contestados por grupos de esquerda, pela Comissão Europeia, por dezenas de organizações não-governamentais, por milhares de cientistas do clima, pela indústria das energias renováveis e por grandes empresas como a IKEA, a H&M, a Iberdrola, a Unilever, a Nestlé e a Danone. Os contestatários da argumentação do PPE insistiram que o objetivo de recuperar a Natureza era compatível com a atividade económica e essencial para garantir a viabilidade, a longo prazo, dos solos europeus.
A tentativa de fazer descarrilar a posição comum do PE, liderada pelo PPE, fracassou em julho, depois de um punhado de conservadores se ter rebelado e quebrado as fileiras para votar a favor. Os eurodeputados puderam, assim, encetar negociações com o Conselho da UE e chegar a um acordo provisório, em novembro, que se esperava fosse aprovado por ambas as instituições.
No entanto, a eclosão, em janeiro deste ano, de protestos de agricultores em toda a Europa revigorou a reação contra o Pacto Ecológico Europeu, uma vez que o setor agrícola culpou diretamente os regulamentos ambientais do bloco pela carga burocrática excessiva.
A Lei da Recuperação da Natureza foi mais uma vez atirada para o centro da tempestade política.
“Continuamos a acreditar que a Lei da Recuperação da Natureza está mal redigida e nunca esteve à altura da tarefa que temos pela frente”, afirmou Manfred Weber, líder do PPE, antes da votação, acrescentando: “A inflação é, atualmente, impulsionada pelo aumento dos preços dos alimentos nos supermercados. Temos de pedir aos nossos agricultores que produzam mais e não menos para estabilizar a inflação.”
Pedro Marques, eurodeputado português dos Socialistas e Democratas (S&D), rebateu as afirmações e acusou os conservadores de espalharem “desinformação”. “Esta ideia de que estão a votar [contra a lei], porque se preocupam com os agricultores é absolutamente inaceitável. Isto é apenas populismo. Isto é enganar os europeus e certamente os nossos agricultores”, observou Pedro Marques, vincando: “Negar o Pacto Ecológico, negar a emergência climática não é certamente a forma de resolver os nossos problemas.”
A sobrevivência da lei é vital para o Pacto Ecológico Europeu, que está sob crescente pressão dos partidos de direita e liberais, do setor agrícola e das associações industriais.
No início do mês de fevereiro, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, decidiu retirar um projeto de lei polémico que visava reduzir para metade a utilização e os riscos dos pesticidas até 2030. “Só se os nossos agricultores puderem viver da terra, é que poderão investir no futuro. E, só se atingirmos, juntos, os nossos objetivos climáticos e ambientais é que os agricultores poderão continuar a ganhar a vida. Os nossos agricultores estão bem cientes disso. Devemos confiar mais neles”, afirmou a presidente da Comissão.
Por isso, o texto do Regulamento prevê que algumas disposições relativas aos ecossistemas agrícolas podem ser temporariamente suspensas em circunstâncias excecionais.
Não obstante, é de encarecer a referência do relator César Luena (S&D, da Espanha), após a votação: “Hoje é um dia importante para a Europa, uma vez que passamos da proteção e conservação da natureza para o seu ‘restauro’. A nova legislação vai ajudar-nos também a cumprir muitos dos nossos compromissos internacionais em matéria de ambiente. O Regulamento restabelecerá ecossistemas degradados, respeitando simultaneamente o setor agrícola, ao permitir flexibilidade aos Estados-membros. Gostaria de agradecer aos cientistas, por fornecerem as provas científicas e combaterem a negação climática, bem como aos jovens, por nos terem recordado que não existe planeta B nem plano B.”
Por seu turno, a eurodeputada portuguesa Sara Cerdas (S&D) considera que o PE “fez História” ao aprovar a Lei do Restauro da Natureza. “É uma excelente notícia, para a União Europeia (UE), para o resto do Mundo e para todos”, disse a eurodeputada à Lusa, no dia em que os eurodeputados aprovaram a Lei. A Lei, salientou Sara Cerdas, a única portuguesa efetiva na Comissão de Ambiente, da Saúde Pública e da Segurança Alimentar (ENVI), estabelece um objetivo de recuperação de, pelo menos, 20% das zonas terrestres e marítimas até 2030 e de todos os ecossistemas que necessitem até 2050. E prevê que os 27 Estados-membros da UE devem recuperar, pelo menos, 30% dos habitats em mau estado até 2030, 60% até 2040 e 90% até 2050.
Fruto de “negociações intensas” entre o PE e o Conselho Europeu, a lei “não está longe” da proposta da Comissão de 2022, disse a eurodeputada, salientando que o grupo europeu de que o Partido Socialista (PS) faz parte queria uma proposta “mais ambiciosa”. Porém, enfatizou: “Fizemos História. […] É uma lei muito importante, hoje temos 81% dos ecossistemas da UE em mau estado. […] E é também uma resposta no combate às alterações climáticas.”
Nas declarações à Lusa, a eurodeputada criticou a posição, contra a lei, do grupo PPE e referiu que, para melhorar a biodiversidade nos ecossistemas agrícolas, os Estados-membros terão de fazer progressos em dois dos três indicadores seguintes: o índice de borboletas das pastagens, a percentagem de terras agrícolas com caraterísticas paisagísticas de elevada diversidade e a reserva de carbono orgânico no solo mineral das terras de cultivo.
Questionada pela Lusa sobre o porquê da dificuldade em haver consenso na proteção e restauro da Natureza, respondeu apenas: “É porque a natureza não vota, não dá votos.”
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Entretanto, os agricultores não estão satisfeitos com as respostas da UE às suas reivindicações – veem a vida andar para trás – e a UE tem o dilema entre a resolução do problema ecológico e climático e a da agricultura. Saberá encontrar um desfecho satisfatório?
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04/03/2024