Francisco e a árvore (2)

 Francisco e a árvore (2)

Ilustração: Cristina Malaquias

(*)

Francisco continuava a procurar o abrigo da sua árvore predileta. Enfeitiçado pela energia e frescura da oliveira, o menino vivia momentos verdadeiramente fascinantes. Inventava histórias e engendrava aventuras, enfrentando monstros e feras terríveis. Em cena, entravam espantosas personagens que se animavam e ganhavam forma nas suas congeminações fantásticas.

Sob a protetora sombra da árvore, o menino convertia-se num super-herói esgrimindo os seus poderes contra a injustiça, num feiticeiro criando feitiços para acabar com a guerra e com a fome, num conquistador de sonhos e de coragem ou num exímio explorador de mundos encantados. Noutras ocasiões, era um navegador descobrindo caminhos nunca percorridos e até um astronauta viajando pelas galáxias na sua nave espacial. Outras vezes, a fantasia cedia lugar ao pensamento sobre «coisas intrigantes e misteriosas», tecendo ideias, como se de um novelo puxasse o fio capaz de produzir uma poderosa e colorida rede. Era como se aquela árvore alimentasse a sua imaginação com poderes mágicos.

O tórrido setembro silenciava a Natureza com o seu calor. Todos se refugiavam em casa e só saíam ao entardecer. À noitinha, depois de jantar, sentavam-se à porta de casa e conversavam animadamente sobre quase tudo, especialmente sobre as notícias que viam na televisão, sobre alguma novidade da terra ou sobre histórias do passado, recordadas com a intensidade própria da sábia memória dos mais velhos. As vozes das pessoas faziam adivinhar o brilho dos seus olhos guardando pedaços da vida difícil.

Francisco adorava aquele convívio ao ar livre e aquela liberdade de poder estar na rua, noite adentro, fruindo aquela aragem que refrescava tudo e todos. Tinha habitualmente por companhia as estrelas, a lua, a oliveira e o Cusco. Por vezes, a pequenada juntava-se para jogar à bola ou à apanhada no terreiro e era uma verdadeira animação.

Naquela manhã, quando acordou, Francisco sentiu um cheiro diferente no ar. Abriu a janela e, para seu espanto, parecia que ia chover. O céu estava cinzento e não se via o Sol. — Mas o que é isto? – balbuciou. Um odor a queimado empestava o ar e o menino, subitamente, pressentiu o que se passava. Nesse momento, o avô entrou esbaforido em casa. — Anda fogo aqui perto! Bem perto! Encham os baldes com água e ponham as mangueiras a postos. Temos de estar prevenidos, se aqui chegar! A mãe lançou as mãos à cabeça e assomou à porta. — Com o vento que sopra, o fogo vai galgar tudo, temos de chamar os bombeiros! – exclamou, alarmada.

Depois, tudo aconteceu. O fogo aproximou-se da quinta com uma rapidez desmedida. Viram-no primeiro ao longe e, de imediato, empurrado pela ventania, veio tomando conta de cada palmo de terra, elevando-se pelas árvores e arbustos, lavrando o chão amarelo e levando tudo à sua passagem. As labaredas pareciam do tamanho de arranha-céus, produzindo um calor infernal, e o fumo tornava o ar irrespirável. Numa grande azáfama, o avô e a mãe molhavam o terreno em volta da casa e do barracão, na tentativa de os defender das chamas.

Ao saber do incêndio, o pai veio da vila e, mal chegou, pegou no menino e no cão, colocou-os no carro e levou-os dali, por um caminho em terra, para um ermo, a pouca distância. Era o local do talefe, erguido sobre uma laje de pedra e rodeado por um extenso círculo de terra nua. Ali não corriam perigo, pois não havia qualquer vegetação. Logo a seguir, o pai dirigiu-se rapidamente para a entrada da quinta, onde reinava grande confusão. Os carros dos bombeiros, com as sirenes a soar, tinham entrado e procuravam proteger a casa e os animais que estavam no barracão.

O fumo mal deixava ver o que se passava. Como era hábito em momentos de aflição, os sinos da igreja tocavam a rebate e o povo da aldeia tinha-se aproximado na ânsia de ajudar. Francisco assistia a tudo do alto do talefe. Pouco depois, apareceu o avô, juntando-se a ele. Pôs a mão sobre o seu ombro e procurou tranquilizá-lo. Contudo, o menino sentia o coração apertado e, agarrado ao Cusco, não se conformava com o facto de nada poder fazer. Estava a salvo de qualquer desgraça, mas o que ele queria era estar ao lado dos bombeiros, para poder ser útil. O fogo tinha-se aproximado velozmente da casa e os bombeiros atarefados faziam o que podiam. De repente, as labaredas ergueram-se, tocando o céu com uma força inexplicável. Francisco percebeu então que a sua árvore tinha sido atingida pelo fogo. Ele não queria acreditar. A grande e majestosa oliveira, o seu refúgio, a sua companheira de aventuras, estava a ser engolida por aquele terrível gigante.

Incrédulo, o menino nem conseguia pensar. O seu coração batia descompassadamente como uma locomotiva desgovernada. Uma espessa nuvem cinzenta rodeou todo o lugar. Não conseguia enxergar o que quer que fosse e a fuligem evolada com o fumo espalhava-se por todo o lado. Pouco a pouco, foi percebendo que o fogo se extinguira. Impaciente e desolado por tamanha infelicidade, o menino olhou para o avô. Decidiram não esperar mais e caminharam em direção à quinta. O Cusco seguia-os um pouco desorientado e assustado com tamanha confusão.

Ao aproximar-se da casa, Francisco sentiu um nó na garganta. A mãe dirigiu-se-lhe e agarrou-o num pranto. O avô e o pai, afogueados e enfarruscados, olhavam com desânimo em volta. Os bombeiros já tinham saído para proteger os terrenos vizinhos e evitar reacendimentos. A casa e o barracão, onde se protegeram os animais, tinham sido poupados à fúria do incêndio. O menino sentou-se no banco de pedra que ficava mesmo por baixo do parapeito da janela do seu quarto. Olhava, triste, para a grande oliveira. Fumegava ainda. Negra como o carvão, ali estava o que restava dela. A árvore tinha perdido todo o seu esplendor e apenas se reconhecia pelo contorno do seu corpo, com os grossos troncos expostos à cinza e os ramos nus erguidos para o céu, como se gritasse, exalando aquele terrível cheiro a queimado. O menino correu, então, e pegou na mangueira para a molhar e aplacar o seu sofrimento.

Alguns minutos depois, inconsolável e vencido pela emoção, o Francisco mordeu os lábios e chorou. Chorou pela sua oliveira, a sua companheira de sonhos. Deixou-se ficar ali, olhando para o que restava da bela árvore, acariciando distraidamente o Cusco e lastimando todo aquele infortúnio.

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(*) In “A Oliveira Mágica”

29/08/2022

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Celeste Almeida Gonçalves

É professora e escritora de obras para a infância e juventude, desenvolve vasta atividade de mediação de leitura em escolas e bibliotecas e dinamiza variados projetos, no âmbito da leitura e da escrita criativa.

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