Fui à praia com o Ramalho Ortigão
Para muita gente, é complicado imaginar o verão sem praia. Mas a ideia de ir a banhos é relativamente recente. Uma moda que, em Portugal, se tornou popular apenas a partir da segunda metade do século XIX. Nessa época, uma figura inusitada estava pronta para explicar, aos portugueses e portuguesas, os benefícios do mar: Ramalho Ortigão, que publicou, em 1876, um livro intitulado “As Praias de Portugal: Guia do Banhista e Viajante.” Aproveito este livro e o sol de agosto para viajar no tempo, descobrir o que Ramalho Ortigão opinava sobre o mar, acerca de uma das “minhas” praias e que conselhos nos daria.
Ortigão fala do mar como o “guia da humanidade” e, inspirado pelos cientistas da época, diz que entender o mar é o primeiro passo para compreender o cosmos. Por isso, dedica o início do livro a falar dos animais que nele habitam e como se adaptam à vida nas profundezas. Afirma, por exemplo, que “a pressão dos mais extraordinários volumes de água e o sucessivo rebaixamento termométrico não esmaga a vida nos corpos que encerram líquidos em vez de ar”. Um facto que, hoje, pode parecer óbvio, mas, que, se as pessoas no “submarino” ou submersível Titan (que, em 18 de junho de 2023, desapareceu no Oceano Atlântico Norte, na costa de Terra Nova, no Canadá)tivessem entendido melhor, teria sido evitada uma tragédia. Primeiro conselho: evitar as profundezas (até porque, na época, ainda não tinham inventado os submarinos).
Os perigos do mar também se estendem à superfície. “O mar torna-nos imaginativos, faz-nos propender para a contemplação, para a ociosidade, para a vaga saudade, para a indefinida melancolia. Este estado poético é dos mais perigosos. Prostra, enfraquece, desarma o carácter”, escreve Ramalho Ortigão. Quem nunca se perdeu no horizonte, em particular, quando as férias começam a acabar? O sentido ou significado moderno é de “depressão sazonal”, mas Ortigão já tinha identificado o problema, embora o tenha dedicado a um público específico. “É por isso que as mulheres, à beira-mar, nos dias doces e enervantes do outono, precisam mais do que nunca de se retemperarem na aplicação, no estudo, na actividade intelectual,” indica.
O feminismo não é um dos pontos fortes de Ramalho Ortigão (o qual é mais conhecido pela crítica social mordaz) e o favoritismo geográfico também é claro: no livro, a praia mais a sul fica em Setúbal. Assumo que, nessa época, o Algarve ainda não fosse muito acessível. Apesar disso, podemos viajar no tempo a uma das praias da minha infância, a Figueira da Foz, e saber como era em 1876. Uma decisão nefasta, como veremos em seguida, já que Ramalho Ortigão, embora não desgoste da Figueira, tem sérios problemas com a sua proximidade a Coimbra.
Diz ele que nem a brisa marítima salva a Figueira da Foz de uma “uma espécie de terror mesclado de tédio” onde se “aspira vagamente o cheiro dos sapatos e das velhas batinas gordurosas na aula quente e fechada”. Ou seja, o mesmo que sentia relativamente à “cidade dos estudantes”. Embora a Figueira não seja Coimbra, o meu companheiro de leitura não cede nem um milímetro: “A Figueira participa do carácter que tem Coimbra, um pouco para pior, porque os estudantes que frequentam a Figueira são ordinariamente os piores, os mais broncos, os que não saem de Coimbra, aqueles em quem os efeitos do vício universitário se desenham mais profundamente.” Não sei o que dizer, embora Ramalho admita que a Figueira era (e é) uma das melhores praias urbanas do país e, como refere, dominada por dois tipos de banhistas: famílias de Coimbra ou de Lisboa, ou lavradores da Beira. “As primeiras destas duas camadas não parece serem mui particularmente simpáticas à população indígena,” diz Ramalho.
Coisas que nunca mudam: queixas relativamente ao transporte. Na época, seis horas de diligência até Coimbra, apenas disponível duas vezes por dia. Hoje, temos um comboio que para em todos os apeadeiros. E, nesse tempo, nem havia acesso fácil à vila. Comentários, Ramalho? “Por uma disposição superior, cujo alcance debalde nos esforçamos por atingir, é proibido o ingresso dos burros no interior da vila, o que não obsta a que lá entrem muitos – disfarçados”, observa. Desisto de tentar melhorar o humor do meu companheiro de viagem e peço-lhe, em jeito de despedida, três conselhos para aproveitar a época balnear.
.
O mar é bom para a saúde?
O ar do mar abre o apetite, ajuda a respirar melhor, ajuda as pessoas a serem menos apáticas, em particular as crianças. Nada de novo, mas sobre o que Ramalho nos surpreende é com os usos medicinais da água do mar. Se tiverem problemas do género, dois a quatro copos tornam-se um “medicamento purgativo”. Depois, claro, o mar é ideal para banhos medicinais (até “três quartos de hora”) ou higiénico (de duração “mais curta e de temperatura mais fria”).
O que devo comer quando vou a banhos?
“Da alimentação do banhista devem excluir-se os pratos irritantes, as substâncias difíceis de [digerir], o abuso da mostarda, da pimenta, do café, das bebidas alcoólicas,” escreve o meu companheiro de viagem. Nada de cerveja fresca na praia, nem pão com manteiga. “Nada torna o estômago mais abarrotado, o cérebro mais espesso, a inteligência mais bronca, a actividade mais dormente”, anota Ortigão. Um regime “pouco animalizado” que todos sabemos ser o mais saudável (mas menos divertido).
.
E se gosto de água mas não do mar?
Nesta questão, Ramalho Ortigão estava à frente do seu tempo. Assim, repara: “Tão salutares, tão higiénicos, tão pouco usados infelizmente em Portugal, os banhos de rio podem em grande número de casos substituir vantajosamente os dispendiosos banhos do mar.” Ou seja, era um preponente das praias fluviais, que me parecem tão interessantes como as do mar, embora ele as veja mais como uma alternativa barata para as franjas da população mais pobre. Já, em 1876, se aconselhava a não gastar demasiado nas férias.
Seja no mar ou no rio, desejos de um bom resto do verão, se calhar, sem companheiros de viagem tão “rabugentos” como o Ramalho Ortigão.
.
03/08/2023