Galopim de Carvalho: “É urgente olhar para a realidade do nosso ensino”
Desde cedo, António Galopim de Carvalho aprendeu a gostar de saber muitas coisas e de partilhar com os outros o seu conhecimento. Aos 89 anos de idade, continua “a ser a criança, o adolescente e o adulto na força da vida” que tantas portas foi abrindo.
Não quer perder tempo com os terraplanistas nem com os respectivos seguidores. Os negacionistas não lhe merecem a mínima atenção, porque o geólogo e professor universitário jubilado acredita na Ciência e nas potencialidades do Homem. Por isso, gostaria de mudanças na Educação e na sensibilidade cívica dos próprios decisores políticos. Tarefa que, a este nível, lhe parece irrealizável, numa época de alienados pelo “jogo da bola”.
Tornou-se figura pública na área da paleontologia dos dinossáurios, mas recusa ser reconhecido como especialista neste domínio científico. Temos, em Portugal, algumas das mais importantes pistas com pegadas destes animais desaparecidos na Europa e no Mundo, como as que se encontram na Serra d’Aire, em Pego Longo (no concelho de Sintra), em Vale de Meios (Alcanede) e no Cabo Espichel. Há cerca de 65 milhões de anos, uma devastação à escala planetária levou à extinção dos dinossáurios de maior porte e de aproximadamente 75 por cento das espécies vivas desse período pré-histórico. Há quem se empenhe em reconstituir essa realidade através dos fósseis.
No início da década de 90, Galopim de Carvalho mobilizou muitas pessoas para conseguir a abertura de dois túneis da CREL (Circular Regional Exterior de Lisboa) sob as pegadas de dinossáurios de Pego Longo (numa pedreira desactivada perto de Carenque), com o apoio da comunidade científica nacional e internacional. Os ditos túneis foram inaugurados em 1995, mas constata-se que este património paleontológico, oficialmente classificado como Monumento Natural em 1997 e com projecto de musealização aprovado em 2001, pela Câmara Municipal de Sintra, está abandonado e novamente a degradar-se como lixeira a céu aberto.
sinalAberto – Como consegue explicar aos terraplanistas a esfericidade do nosso planeta e a consequente zonalidade climática?
Galopim de Carvalho – Não perco tempo com os seus seguidores. Não funcionam com racionalidade. Discutir com eles é perder tempo.
sA – Enquanto cientista, como olha para estes movimentos (chamemos-lhes assim) negacionistas?
GC – Como disse, não perco tempo com eles.
sA – O cidadão comum conhece-o, sobretudo, pelo trabalho em defesa da presença dos dinossáurios. Portugal já fez o que havia a fazer na preservação dessa memória?
GC – Não. Está muito longe disso.
sA – Desde 2001, quando se jubilou, vem colaborando com várias autarquias. Quais os projectos mais relevantes em que se envolveu?
GC – Um deles é o do Museu do Quartzo, em Viseu, iniciado em 1995 e concretizado com sucesso, em 2012. Outro tem a ver com o Núcleo Museológico do Alto de São Bento, em Évora, que está prestes a concretizar-se.
sA – Qual o ponto da situação da petição pública e da providência cautelar sobre as pegadas de Pego Longo (no concelho de Sintra), que estavam até há pouco tempo transformadas em lixeira?
GC – Continuamos à espera. Julgo que não tem tido grande adesão. E a comunicação não tem ajudado, ao contrário do que fez nos anos 90.
sA – O que é preciso fazer-se para que o património paleontológico seja mais respeitado e visto como um bem público a preservar?
GC – Educar, nesse sentido, os decisores a nível central (governos) e local (autarquias), tarefa que tenho por irrealizável. Há que começar na Escola (a precisar de uma grande reforma) e esperar por melhores dias.
sA – O Professor Galopim de Carvalho conhece, como poucos, as subtilezas e a intimidade da Terra, mas vemo-lo a experimentar as aventuras etnográficas e também poéticas. Quem é, afinal, Galopim de Carvalho?
GC – Muito cedo, aprendi a gostar de saber muitas coisas e de partilhar com os outros, numa relação sempre afectuosa que se revelou de grande eficácia na profissão que abracei. Continuo a ser a criança, o adolescente e o adulto na força de vida que fui.
sA – Entre os fósseis de todos os grandes grupos sistémicos e de todas as épocas, parece-nos que o Professor Galopim de Carvalho tem uma afeição especial pelos dinossáurios. Há alguma razão para isso?
GC – Tudo começou em 1986, quando dois finalistas da Licenciatura em Geologia da Faculdade de Ciências de Lisboa descobriram um conjunto de cerca de duas centenas de pegadas de dinossáurios do Cretácico (92 a 96 milhões de anos) no fundo de uma pedreira abandonada e, na altura, a ser usada como vazadouro de entulhos e lixeira clandestina, em Pego Longo (concelho de Sintra), na vizinhança imediata de Carenque (concelho da Amadora).
Ameaçada de destruição pela construção de uma auto-estrada (CREL), empenhei-me, ao limite das minhas capacidades e entusiasmo, como profissional e como cidadão, na sua defesa, apoiado na força institucional do Museu Nacional de História Natural (MNHN) que, então, dirigia. Foi uma luta de cerca de três anos (de 1990 a 1993), árdua, por vezes dura, contra a insensibilidade dos que decidem.
Escrevi e dei entrevistas a todos os jornais. As rádios deram-me voz e a televisão imagem, e tive a simpatia e a cooperação de todos os jornalistas que comigo se envolveram nesta luta.
Fui às escolas, vezes sem conta, de norte a sul do país, e tive de aprender o muito que não sabia sobre dinossáurios. Escrevi um livrinho de divulgação, “Dinossáurios”, edição da Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, Colecção Natura, em 1998. Fui co-autor de “A Vida e Morte dos Dinossáurios”, editado pela Gradiva, em 1991. E escrevi um outro ainda, “Dinossáurios e a Batalha de Carenque”, pela Editorial Notícias, em 1994.
Trouxe, de Londres, ao MNHN, em finais de 1992, a primeira e grande exposição de Dinossáurios Robots, com um número de visitantes até então e nunca mais alcançado, trezentos e quarenta e seis mil, seiscentos e noventa e quatro (346 694) visitantes, em apenas onze semanas.
Em 1994, João Carvalho e os seus companheiros da Sociedade Torrejana de Espeleologia e Arqueologia de Torres Novas descobriram um conjunto ainda maior e mais espectacular, com trilhos mais longos e centenas de pegadas de grandes herbívoros do Jurássico, com cerca de 175 milhões de anos, na Pedreira do Galinha, na Serra d’Aire, perto de Fátima. Voltei a percorrer idêntica caminhada, mas desta vez, menos difícil, rapidamente vencedora.
Consegui financiamentos para desenvolver projectos de investigação, trazer a Portugal, especialistas na matéria e enviar estagiários para o estrangeiro, a fim de trabalharem e aprenderem com quem sabia.
A enorme apetência de miúdos e graúdos por tudo o que se relacione com estes animais do passado fez com que, através do MNHN, comigo na direcção, trouxesse a Portugal um dezena de grandes e atractivas exposições de dinossáurios e, assim, uma vez mais o meu nome circulou nos media.
Sem dar por isso, tornei-me figura pública no domínio da paleontologia destes animais do passado, sem ser paleontólogo, a ponto de, muitas vezes, ser apresentado, simpaticamente e por ignorância, como o “grande” e, às vezes, o “maior especialista português dos dinossáurios”, o que é falso e sempre me embaraça e me leva a ter constantemente de explicar a minha verdadeira relação com este domínio da ciência.
sA – Como foi a sua primeira infância e adolescência? Que recordações tem dos formões, dos badames, das garlopas e dos ferros das plainas do mestre Roberto?
GC – Meu vizinho na Rua do Segeiro, era eu criança, o mestre Roberto consentia que brincasse na sua oficina. Depois, com o passar do tempo, com a habituação da presença diária e porque “o trabalho de menino é pouco, mas quem o despreza é louco”, já arrumava as ferramentas nos seus sítios certos, à medida que lhes aprendia o nome e a utilidade.
Os sons e os cheiros! Cada operação tinha um som e, às vezes, um odor especial. O rebolo de afiar tinha um som áspero e cheirava a barro molhado. Na ardósia, o formão a deslizar apagava-se-lhe o som à medida que ganhava fio, libertando o cheiro de azeite já negro do pó da pedra e do aço. Os sons das serras e dos serrotes eram todos diferentes, variando nas suas características consoante o material, o braço e a energia de quem delas ou deles se servisse. Percebia-se pelo som, quando estava a chegar ao fim, do serrar uma prancha. O cheiro da madeira de pinho impregnada de resina, libertado no ar da oficina era algo que me agradava e me marcou para sempre. Ainda hoje, entrar numa serração, me dá imenso prazer.
Durante esses verdes anos da minha meninice, entre estudante das primeiras letras e aprendiz de carpinteiro, sempre acreditei que viria a ser, como o senhor Roberto, um profissional na arte de trabalhar a madeira, tal o fascínio que esse ofício tinha para mim.
Ficou-me o desejo nunca concretizado de carpinteirar um dia, a sério, e a frustração da pouca perfeição, por falta de escola, do pouco que, ainda assim, tive oportunidade de fazer. Ficou-me o encanto pelas ferramentas. Sempre visitei e me detive nas lojas da especialidade. Quantas comprei, com a plena consciência de as não vir nunca a usar.
sA – O que representa a cidade de Évora para a sua vida? Um espaço romanceado pela memória, ao jeito de um velho baú de onde retira a matéria que utiliza para compor histórias como as que nos apresenta no seu livro O Cheiro da Madeira? Porquê este título?
GC – Num tempo (anos de 1930) em que as crianças, a partir dos sete anos (idade de entrar na escola), andavam sozinhas nas ruas da cidade, praticamente toda ela se abriu à minha curiosidade. Muito mais do que a escola (refiro-me à minha, a de São Mamede), que sempre achei desinteressante e demasiado severa, interessaram-me os trabalhos dos artesãos, que ainda os havia e muitos de diversas “artes”, a par de uma indústria ainda pouco expressiva, com excepção das corticeiras, de que havia três fábricas, uma das quais conheci bem por dentro, porque um tio meu era lá operário quadrador e um dos meus padrinhos era o guarda-livros. Brincando, brincando, fui aprendiz de muitos ofícios, com destaque para os de carpinteiro, com o mestre Roberto, de sapateiro, na oficina do meu tio, e de caixeiro, na mercearia do Anselmo, e fiz queijos de ovelha no alavão da Tia Rosalina.
sA – Como confessa aos seus leitores, na sua casa, os trabalhos escolares chamavam-se obrigações. E hoje, como vê o ensino? Julga-o adequado áquilo que as crianças e os jovens precisam de saber e experienciar?
GC – Obrigações, era assim que se dizia. Quando, em 2018, o primeiro-ministro afirmou que o nosso maior défice era o da Educação, fiquei a saber que a análise que ele fazia deste importantíssimo sector da vida nacional coincidia com a minha.
Continuamos a ser um povo em que ainda são muitos os desinteressados pelos valores da ciência e da cultura, alienados pelo “jogo da bola”.
A Revolução de Abril escancarou não só as portas, como os portões e as janelas, ao conhecimento dos mais variados temas das culturas científica, humanística e artística. Mas vivemos 46 anos, praticamente, de costas voltadas para estes valores. A verdade é que são muitos os adolescentes que pouco ou nada leram, que chegam à universidade falhos de todas as culturas, sem saberem escrever Português.
É, pois, preciso e urgente olhar para esta realidade do nosso ensino. É, pois, preciso e urgente que o Ministério da Educação chame a si gente realmente capaz de proceder à necessária e profunda revisão de tudo o que se relacione com o ensino, a começar nos programas, passando pelo negócio dos livros e outros manuais adoptados e, a terminar, na conveniente formação e necessária dignificação dos professores e em tudo mais que lhes diga respeito, como seja, por exemplo, a libertação de todas as tarefas alheias à sua real missão de ensinar.
sA – Na sua meninice, entre ajudante de costura e aprendiz de carpinteiro, o escritor em que também se tornou diz-nos que sempre acreditou vir a ser, como o senhor Roberto, um profissional na arte de trabalhar a madeira. Ainda pensa assim? Quando o seu pai lhe perguntava o que quereria ser quando fosse crescido respondia, sem a mínima hesitação: “Carpinteiro!” A que se deve esse desvio profissional?
GC – Foi, evidentemente, um sonho de uma criança encantada com esta arte e que se desvaneceu com o abrir de outras portas que foi abrindo ou que a vida lhe abriu.
sA – Num outro livro, intitulado Com coentros e conversas à mistura, afirma que, na “ânsia desenfreada de lucro e de prazer, a civilização industrial incontrolada pode desencadear uma nova extinção em massa”. No entanto, diz que o planeta “acabará por encontrar novos caminhos”. Em que ficamos?
GC – Uma parte maior ou menor da biodiversidade passível de extinção é uma coisa, o planeta é outra. Quando a vida, ainda muito simples, ao nível das bactérias, surgiu na Terra, já esta era um planeta com centenas de milhões de anos. À semelhança das extinções em massa do passado (a última foi há 65 milhões de anos), a Terra “acabará por encontrar novos caminhos”, em obediência apenas às leis da física, incluindo as do acaso, podendo voltar a ensaiar um outro ser inteligente ou, até, mais inteligente do que esta versão moderna do Homo sapiens, que somos nós. Para tal, só necessita de tempo, de muito tempo, e isso não lhe irá faltar, uma vez que estimamos em mais cinco a seis mil milhões de anos a sua existência como planeta, até que o Sol, na sua evolução como estrela, o envolva num imenso brasido.
sA – Mesmo admitindo que nunca tenha deixado de existir biodiversidade aquando das grandes extinções de massa, identificadas na história geológica, retomo uma sua questão: “Perante quem deve o Homem prestar contas da maneira como decide articular-se com a Natureza?”
GC – É, sem dúvida, aos outros homens, ou seja, à sociedade, que cada um de nós tem de responder pelo poder de decisão e pela liberdade de acção que as nossas imensas capacidades nos conferem. Se o Homem deu voz à Natureza, a sociedade deu-lhe ética e assume-se no direito de estabelecer regras entre os seus pares no usufruto deste vasto condomínio. Sendo certo que a capacidade de intervenção de cada indivíduo, como elemento consciente desta mesma sociedade, está na razão directa das suas convenientes informação e formação, importa, pois, incrementá-las. E incrementá-las é facultar-lhe o acesso aos conhecimentos que, desde sempre, a ciência nos vem revelando.
sA – Como reconhece, o Homem, “na sua possibilidade de adquirir conhecimento e de o transmitir, é a manifestação mais elaborada da realidade física do mundo que conhecemos, na qual foi consumida a totalidade do tempo do universo”. Que Homem hoje habita o planeta?
GC – Não há um, mas muitos tipos de homens, que posso reunir em apenas dois: o que explora, engana, rouba e faz a guerra, na procura da riqueza e tudo o que ela lhe proporciona; e o explorado, enganado, espoliado e morto numa tragédia que lhe é imposta.
sA – Sugere uma nova política do solo?
GC – Não tenho conhecimentos para me pronunciar seriamente sobre um tema a um tempo científico, económico e político. Trata-se de uma questão a colocar ao arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles.
sA – Admitindo a ideia de que “a Ciência, através do Homem, pode ser entendida também como expoente máximo da matéria que se questiona a si própria”, reutilizo uma sua interrogação: “Teremos nós o direito de gerir a Natureza apenas em nosso proveito, como tem sido regra, sobretudo a partir da Revolução Industrial?”
GC – Claro que não!
sA – Recorda o Prof. Galopim de Carvalho, ao citar o filósofo grego Aristóteles que “não existe nada na mente que não tenha passado pelos sentidos”. Quer explicar melhor o significado e o contexto em que usa esta frase?
GC – São, com efeito, os cincos sentidos que nos permitem ter a percepção de tudo o que nos rodeia. Discípulo de Platão, Aristóteles (384-322 a.C.) introduziu o racionalismo, a corrente filosófica assente na operação mental, discursiva e lógica, sendo por isso considerado um precursor do empirismo filosófico, a linha de pensamento segundo a qual o conhecimento científico deve ser baseado na observação do mundo (e essa só pode ser feita através dos sentidos) e não na intuição ou na fé, como fora antes dele.
sA – O que representa, para si, a afirmação de que “o presente é a chave do passado”?
GC – O conteúdo desta afirmação teve início antes da sua divulgação que fez história no domínio da Geologia. O geólogo escocês James Hutton (1726-1797), considerado o “pai da geologia moderna”, mostrou que a história da Terra pode ser decifrada a partir do estudo das rochas sedimentares estratificadas, uma vez que estas rochas se geraram de modo comparável ao dos modernos sedimentos em formação sob os nossos olhos. Este raciocínio é hoje usado, automaticamente, sem qualquer hesitação, quando, através do estudo destas rochas, se procura conhecer o ambiente e as condições em que foram geradas. Uma tal concepção, que constituiu um passo decisivo neste tipo de investigação, encontrou apoio e continuação no trabalho do seu concidadão Charles Lyell (1797-1875). Autor do conhecido Princípio do Uniformitarismo, do Actualismo ou das Causas Actuais dele se conhece a expressão que ficou clássica – O presente é a chave do passado. Esta frase diz concretamente, na situação em que aqui é usada, que qualquer corpo de rocha sedimentar foi depositado por agentes geológicos vulgares, tais como gravidade, chuva, vento, água corrente, gelo, acções marinhas, etc., todos eles processos familiares nos dias de hoje.