Geografia Cultural e Política: Quatro determinismos para perceber o conflito na Ucrânia
Duas considerações prévias. Por um lado, escrever em cima de um acontecimento não é um exercício fácil nem o mais conveniente. Por outro, quando estão em causa os direitos humanos, não podem existir ambiguidades. A responsabilidade deve ser atribuída a quem inicia o conflito.
A compreensão desta guerra entre a Rússia e a Ucrânia exige perspetiva, profundidade e análises ponderadas que atravessam e interligam escalas geográficas e tempos diferentes.
Acrescentaria que se chegou a este ponto pela convergência de erros de avaliação a propósito de um conjunto de determinismos cujos efeitos não foram antecipados
Comecemos pelo determinismo histórico e territorial e pela conceção segundo a qual um lugar que em alguma data pretérita nos pertenceu deve regressar à esfera da nossa soberania. Nesta leitura instrumentalizada do tempo, o passado histórico é seletivo e vai até onde nos for conveniente.
Nas questões geopolíticas, acontece o mesmo que ocorre com as ideias maniqueístas da tradição, da originalidade e da autenticidade. Perante um qualquer panorama geográfico, onde e quando podemos identificar uma paisagem tradicional? Será esta a de 1920? A de 1850? E por que não a de 1750? Onde paramos? Qual é a original e a autêntica?
A propósito da alegada inequívoca filiação da Ucrânia à Rússia, em muitos momentos do seu passado, setores do atual território ucraniano estiveram associados à Polónia e à Lituânia. Outras regiões, mais a sul, fizeram parte do Império Otomano. Num debate que não tem fim, os gregos reclamam a origem toponímica de cidades como Mariupol ou Sebastopol. Ainda na primeira metade do século XX, o escritor turco Ahmet Hamdi Tanpinar se referia aos mártires otomanos que caíram na defesa da Península da Crimeia.
Ao determinismo histórico e territorial junta-se o demográfico e identitário. O argumento é simples. Quando a nossa família línguística, étnica ou religiosa se encontra geograficamente dispersa e supostamente ameaçada, temos o direito de a agregar numa mesma unidade política. Sem se ponderar a verdadeira vontade dessas populações, sem se aprofundar os sentimentos de múltipla pertença destas comunidades, advoga-se a ideia de que a Geografia Cultural justifica estratégias expansionistas e movimentações na Geografia Política.
Assim persistem e se promovem os mapas mentais da Grande Rússia, mas também os da Grande Sérvia, da Grande Albânia, da Grande Grécia ou da Grande Turquia, da Grande Hungria ou da Grande Áustria. A lista é extensa e a sua concretização utópica conduziria o mundo ao caos.
Refira-se um terceiro determinismo, de natureza normativa e jurídica insensível a um dos princípios básicos da Geografia: a localização espacial. Segundo esta conceção linear, uma organização militar como a NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) poderá avançar para um país independente, sem atender ao seu posicionamento geográfico. Pior do que um ato expansionista são as hesitações, as mensagens dúbias, os encorajamentos de adesão, logo seguidos de silêncios de sinal contrário.
A Ucrânia faz parte de uma cintura sensível e de alto risco, um “shatterbelt” intemporal que exige ponderação, cautelas e inteligência, sobretudo quando se tem, do outro lado, uma ditadura de ações imprevisíveis não calibradas por instituições democráticas.
O risco pode ser o que agora se vê na Ucrânia: um Estado que tem apoios na retaguarda, recebe palavras de solidariedade, mas que, no solo, está sozinho e à mercê de uma hipotética negociação que não honrará os seus interesses.
Neste ponto de vista, a geopolítica das organizações internacionais, que define os seus caminhos estratégicos, deve ser complementada pelas perspetivas da Geografia Cultural e Política, mais próximas dos terrenos que se pisam.
Viajar por este “shatterbelt” nos interlúdios de alguma aparente serenidade; pisar o chão dos países Bálticos, da Polónia, da República Checa ou da Eslováquia; visitar a Bielorrússia, a Ucrânia, a Hungria, a Roménia ou a Bulgária é uma experiência por mundos diversificados. Mas é também a aproximação a um ambiente de conflitos omnipresentes e próximos no tempo.
Neste extenso corredor, percebe-se que os limites e as fronteiras são realidades debatidas, contestadas, instáveis e pouco duradouras.
O exorcismo do passado nos espaços públicos; os memoriais de guerra sinalizados com flores recentes e cerimónias evocativas; as estátuas e a toponímia; a exposição de fotografias de mártires e de ruínas urbanas nas praças ou em murais que enquadram ruas e avenidas; os museus políticos e nacionalistas e as paredes crivadas por orifícios de balas, todos estes dispositivos materiais e imateriais produzem uma geossimbologia evocativa de uma violência que continua presente e de um medo que permanece, mesmo em países juridicamente independentes.
Porque o espaço não é abstrato, qualquer movimentação nestes contextos deve ser ponderada. Por isso, não fica claro se, depois do colapso da ex-URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), a NATO não terá privilegiado o mero expansionismo geográfico à inteligência institucional e diplomática.
A paisagem urbana que encontramos neste “shatterbelt” que atravessa vários Estados sugere-nos um outro determinismo mal avaliado. Lado a lado com os memoriais e os museus de guerra ou em frente de algum mural que expõe as imagens de um conflito recente, não é difícil encontrar os sinais e as marcas de consumo ocidentais. Os McDonalds e os Hard Rock Café, os Burger Kings ou as lojas Gucci simbolizam outra ilusão: a integração da economia e das finanças homogeniza os espaços, sinaliza a irrelevância da Geografia, limpa as heranças e as tendências de fundo e confirma a “utopia Fukuyama”, de “O Fim da História e o Último Homem”.
Os atuais acontecimentos da Ucrânia mostram-nos que não é assim, que nem a Geografia desapareceu, nem a História morreu.
O rastilho que incendeia a conjugação destes quatro determinismos de responsabilidades partilhadas é-nos explicado pela Geografia Política, pela Geopolítica e por geógrafos como Ratzel, Mackinder ou Spykman.
Nestas perspetivas, a Europa é a península ocidental de um vasto continente: a Eurásia. O centro desta massa continental (o “Heartland”), seja este ocupado pela Rússia czarista, pela URSS ou pela Rússia de Putin, vive um permanente jogo de forças com os espaços limítrofes, sobretudo a oeste. Esta tensão tem sido atenuada por “buffer zones” que, no caso desta “shatterbelt” entre a Rússia e o Ocidente, tem vindo a encolher desde o fim da URSS.
Nestas regiões, a montante e a jusante da guerra, toda e qualquer atitude expansionista deve ser contida. Pelo contrário, nestas “shaterbelts” deve imperar uma inteligência territorial que não se deixe enlear nas malhas dos diferentes determinismos que atravessam estes espaços geográficos.
O contrário está espelhado na anunciada desnuclearização da Bielorrússia e nos tristes e trágicos acontecimentos que têm acontecido no território ucraniano, um conflito que é também um choque entre as sociedades abertas e os regimes fechados, talvez uma das mais importantes e performativas linhas abissais que irá marcar o mundo nas próximas décadas.
02/03/2022