Geografia, trabalho e desigualdades socioespaciais
Uma breve nota a pretexto do 1.º de Maio
Nos anos 80, recordo-me de ter aprendido uns rudimentos de Karl Marx, enquanto estudante na Escola Secundária de Elvas. Sem que essas sessões tenham feito de mim um marxista, tenho-as confrontado com algumas leituras diretas do autor. Desde então, arrisco enunciar as ideias gerais que nos podem auxiliar na compreensão do mundo contemporâneo e das respetivas contradições.
Salvo opinião mais especializada, da linha de pensamento de Marx selecionam-se aqui três princípios, referidos de forma sumária e, tal como os entendi na época, relacionando-os com algumas das mais importantes dinâmicas geográficas atuais.
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a) O salário que um trabalhador aufere está muito distante do valor produzido pelo seu tempo e esforço
Olhando para o presente, não é difícil perceber a contemporaneidade deste enunciado. Apenas como exemplo, considerando o valor incalculável que a venda ou o leilão de um diamante pode atingir, é ínfima a remuneração paga a um mineiro nas Lundas (em Angola), no Botswana ou em qualquer outra região mineira de onde se extrai esta pedra preciosa.
A este propósito, sabe-se que a base do processo é a extração difícil de um minério em bruto e não lapidado e que as desigualdades cumulativas se vão acrescentando ao longo de uma cadeia que pode culminar com uma transação milionária na empresa leiloeira Christie’s, de Nova Iorque, ou na Sotheby’s, de Londres.
O mesmo acontece com o trabalhador que extrai e se expõe a um metal raro algures numa exploração mineira da Bolívia, do Chile ou da China, relativamente ao valor e ao significado que essas “matérias-primas críticas” (a expressão é da Comissão Europeia) têm nas áreas da informática, das telecomunicações, da indústria espacial ou da transição energética dita “verde”. A inovação nos atuais setores de ponta, à escala global, começa com um trabalho físico arriscado e pouco reconhecido.
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b) O trabalhador investe na produção de um bem ao qual não terá depois acesso
Na Geografia contemporânea, esta questão continua atual. Também como exemplo, os trabalhadores indiferenciados que suportam as tarefas mais pesadas da construção de um hotel, de um condomínio de luxo ou de um aeroporto, estão a investir em futuros espaços demarcados e seletivos dos quais não poderão usufruir. Pelo contrário, após a inauguração desses edifícios e infraestruturas, este grupo de operários tornar-se-á invisível e desaparecerá no anonimato.
O mesmo acontece com a mão-de-obra que contribui para a construção de estádios e de outras infraestruturas desportivas que acolherão eventos internacionais como os Jogos Olímpicos e os campeonatos mundiais de futebol. Estes operários levantam bancadas nas quais é provável que não se sentem e promovem acontecimentos globais dos quais dificilmente participarão.
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c) O motor da História é a luta de classes
Se as duas primeiras ideias nos ajudam a perceber muitas das dinâmicas da atualidade e das desigualdades que as acompanham, esta terceira deve ser lida com cautela. Autores como Anselm Jappe têm insistido na tese da diluição e do fim das classes sociais, nestes tempos pós-modernos.
Como contraponto, tem-se assistido a uma massificação do acesso a bens e a experiências que, não sendo universal, nos obriga a uma outra linha de pensamento. Mais do que o usufruto de um objeto ou de uma vivência, a desigualdade está, hoje, nos valores da quantidade e da qualidade. Esclareça-se esta questão e sigam-se alguns exemplos.
Estando muito longe de estar globalizada, a acessibilidade às viagens aéreas continua a ser seletiva, mas é hoje maior. No entanto, não se deve confundir a experiência de um percurso em classe executiva nas melhores companhias de aviação, com a viagem equivalente em classe económica numa empresa “low cost”. O tempo despendido e as esperas, o conforto, os serviços disponíveis e a qualidade dos terminais, tudo diferencia estes dois universos, que só em parte se tocam, sem se confundirem.
O mesmo acontece com a experiência turística. É verdade que muitos fazem turismo e que a curva das deslocações e das dormidas subiu. Contudo, é impossível não distinguir as territorialidades exclusivas e “gourmet” de uma elite com maior poder de compra, relativamente a uma massa turística que, provavelmente depois de viajar nas referidas companhias “low cost”, aterra num destino barato e indiferenciado, como Benidorm ou outros.
De igual modo, ir a uma praia seletiva das Seychelles ou das Maldivas, pouco se compara com o domingo passado na Costa de Caparica, à qual se chega após longas filas de automóveis carregados com lancheiras térmicas e almoços que se vão consumir num parque de merendas.
A este propósito, o mesmo raciocínio aplica-se a um bem que foi conquistando espaço ao longo do século XX e que por aqui continua: o automóvel. Em muitas regiões do Mundo, o crescimento do poder de compra impulsionou a expansão massificada (mas, mais uma vez, não universal) deste veículo. Porém, não se misture a condução de um velho carro com 15 ou 20 anos, movido a energia fóssil e reparado numa oficina de bairro e com o recurso a peças recicladas, com o esplendor identitário que significa entrar e deslocar-se num Tesla ou num qualquer outro automóvel de prestígio.
O acesso aos bens de qualidade e às experiências superlativas e do luxo obedecem a regras que não podem ser compreendidas pelos esquemas interpretativos do século XIX. Por vezes, sem nos socorrermos do clássico e populista exemplo dos automóveis de alta cilindrada que são propriedade de cidadãos subsidiados e se encontram estacionados em bairros sociais, esta geografia da ostentação denuncia percursos obscuros e ascensões rápidas que, apenas, parecem fazer sentido, se considerarmos as opacidades de um sistema global difícil de regular.
Mais do que isso, nesta realidade pós-moderna que está para além das tradicionais classes sociais, vai-se criando um “star system” que tem tanto de vazio como de exibicionista. As plataformas e as redes digitais, os “smartphones” e os “reality shows” televisivos são realidades performativas a partir das quais emergem novos ídolos e “influencers” com vidas esplendorosas que servem de referência e que guiam comportamentos miméticos.
Deste modo, a produção de riqueza está desligada do valor do uso e do trabalho e produzem-se grupos disformes e heterogéneos, que vão dos especuladores do imobiliário, do petróleo e do trigo, aos ídolos do espetáculo, a começar por alguns jogadores de futebol, que farão parte de uma outra “neoburguesia”, a qual em nada se pode confundir com as elites dominantes do século XIX.
Simultaneamente, nas sociedades ocidentais e numa outra dimensão, cresce o anonimato de uma classe média que vai perdendo poder de compra, redimensionando as suas trajetórias de vida e encolhendo as suas territorialidades. A sucessão de crises também se repercute na cartografia dos sem-abrigo que se dispersam e ocultam nos interstícios dos espaços urbanos.
Como nos mostra Laurent Davezies, em termos sociais e espaciais, o novo paradigma digital pós-fordista polariza mais o poder económico e político do que a velha economia fordista. Numa analogia direta, o mesmo autor refere que a velha Detroit das indústrias do automóvel dispersava e redistribuía mais riqueza que a Silicon Valley das empresas da Internet.
A toda esta complexidade, acrescente-se uma bolsa heterogénea de desaparecidos ou de esquecidos. Aos “sem-casa” que se diluem nas nossas cidades, somem-se os afetados pelos processos de despossessão e os expulsos (em Geografia, escrevemos “desreterritorializados”) pelas máquinas de exploração de diamantes e de terras raras. A estes adicionem-se os deslocados pelas barragens, por parques naturais e por outras áreas ecológicas protegidas, pelas alterações climáticas, pelo avanço das monoculturas agroindustriais ou pelas guerras e conflitos territoriais, assim como os migrantes vulneráveis, que desaparecem no Sahel, nas areias do Sahara ou nas águas do Mediterrâneo.
Invisíveis e transparentes são também os trabalhadores que erguem estádios de futebol e de outras modalidades olímpicas e que, depois, desaparecem, assim como a mão-de-obra que sustenta a limpeza noturna de edifícios na “City” de Londres ou no complexo urbano de negócios de “La Défense” (em Paris). No horário diurno, estas equipas de trabalho dissolvem-se e escondem-se.
Este é um mundo sombrio e sem rosto sobre o qual pouco ou nada sabemos. É, sobretudo, um universo de anonimatos e uma geografia de sujeitos sem-nome e sem-rosto.
Mas os focos de análise continuam. Após a higienização realizada por imigrantes desqualificados, os edifícios empresariais da alta finança estão preparados para receber a nova tribo de colaboradores com fato, gravata, colarinho branco, “smartphones” e “tablets” sofisticados. De manhã, estes entram na empresa, mas acabam por fazer parte de um sistema pouco circunscrito que estende o trabalho para casa e para os cafés, em ciclos intermináveis de conetividade digital, vinte e quatro sobre vinte e quatro horas, sete dias sobre sete dias por semana.
Porém, e sem pessimismos desmedidos, observando a evolução estrutural de indicadores como a esperança média de vida ou a população do planeta que frequenta a escola e a universidade, parece-nos correto afirmar que o Mundo está melhor do que no passado. Apesar disso, o sistema global revela novos problemas e apresenta-se mais desigual e polarizado.
Perante esta complexidade, já no final dos anos 70 (do século XX), Jean-François Lyotard anunciava a insuficiência das grandes metanarrativas do passado, que pouco compreenderiam a porosidade e a geometria variável destas novas realidades. Para este mundo de desigualdades e de desacoplamentos, serão necessárias outras teorias sociais e espaciais, diferentes daquelas que retrataram o mundo ocidental e as sociedades industriais do século XIX.
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04/05/2023