Gonçalo Quadros: “Vai haver um grande desequilíbrio no modo de funcionamento da nossa sociedade”
…o que é que o pensamento de Eduardo Lourenço tem que ver com engenharia de software? Mais do que se imagina, já lá iremos. Para já vamos ficar a saber como Gonçalo Quadros, presidente do conselho de administração da Critical Software, uma das mais prestigiadas e internacionais empresas portuguesas de engenharia informática, defende que “a ética é tudo” e que “nada faz sentido se não olharmos para o que fazemos segundo uma perspetiva ética”, sobretudo num quadro de competição empresarial crescente. E dirá, ainda, que em Portugal temos “um problema sério: os baixos ordenados médios e a elevada carga fiscal sobre as pessoas”. A certa altura incluirá no seu discurso a noção de “empresa-cidadã” e a ideia imperiosa de que “temos de ser solidários, particularmente cúmplices”, para encontrarmos enquanto comunidade as melhores respostas para os problemas que aí vêm…
Não se imagina a viver numa sociedade onde a robótica e a computação tornem a ação humana subsidiária; porém, até aceita que as máquinas possam, de futuro, pagar impostos. Mas alerta: “não podemos é correr o risco de serem os donos dessas máquinas a ficar com toda a riqueza gerada por elas”.
Líder de uma empresa fundada em 1998 e que em 2019 teve um volume de negócios da ordem dos 58 milhões de euros, que possui cerca de 950 quadros espalhados por vários países, 470 dos quais na sua sede, em Coimbra, Gonçalo Quadros não mitiga as desigualdades e injustiças sociais ainda existentes: “boa parte da nossa população, dos nossos concidadãos, vive em condições muito pouco dignas, para não dizer indignas”. Por outro lado, critica a deficiente articulação ainda existente entre o mundo das universidades — onde o “grande problema continua a ser a consanguinidade” — e a indústria, assim como considera que, fruto da pandemia, “a maneira como trabalhamos e a relação das pessoas com o seu espaço de trabalho modificou-se e não vai voltar a ser como era antes”.O mesmo Gonçalo Quadros, que nunca participou ou assistiu a qualquer edição da Web Summit, vê no pensamento de Eduardo Lourenço e no papel das Humanidades uma relevância para o mundo da tecnologia que poucos se atreveriam a apontar. “Os desafios que hoje são levantados à tecnologia cruzam-se demasiadas vezes com os aspetos que são pensados nos domínios das Humanidades”, sustenta o nosso entrevistado já de seguida.
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sinalAberto — Como é que o líder de uma empresa tecnológica acompanhou a notícia da morte de Eduardo Lourenço?
Gonçalo Quadros (GQ) — Ele é obviamente uma referência para todos nós. A nossa capacidade de olhar para o mundo, de o pensar e refletir sobre ele, é muito importante e mais ainda no domínio da tecnologia. Quem hoje está envolvido neste plano tecnológico, quem molda o mundo através da tecnologia, tem que ter uma perspetiva humanista sobre essas questões. Os desafios que hoje são levantados à tecnologia cruzam-se demasiadas vezes com os aspetos que são pensados nos domínios das Humanidades
sA — Contudo, é hoje evidente a subvalorização das Humanidades e das Ciências Sociais e Humanas face ao mundo da tecnologia.
GQ — Cada vez é mais evidente para nós, que essa é uma relação que temos de estimar e de aprofundar. E vemos isso a acontecer todos os dias. As disrupções que, potencialmente, as tecnologias trazem hoje para as sociedades, as novas questões éticas, os próprios ensinamentos que a História nos traz…, todo o trabalho e conhecimento feito no campo das Humanidades é relevante para quem está, como há pouco lhe dizia, numa posição de poder moldar o mundo.
sA — É curioso dizer isso, porque a perceção que existe é a de que, apesar dessa importância que atribui às Humanidades, elas são vistas como um conhecimento com pouco valor de mercado, face ao conhecimento tecnológico…
GQ — Isso poderá ser uma visão redutora do que estamos a falar. Nós trabalhamos hoje em muitos domínios que podem, na aparência, afastar-nos do que somos, do que é o Homem, as suas caraterísticas e preocupações. Agora, fazer tecnologia e ajudar as nossas sociedades só pode ser feito se nós entendermos muito bem o que somos enquanto comunidade e enquanto sociedade. Portanto, é essa capacidade de pensar com profundidade estas questões — e é disso que estamos a falar — que nos lembra e remete para Eduardo Lourenço.
sA — Neste momento está a decorrer a Web summit. Tem acompanhado?
GQ — Devo dizer que nunca fui à Web summit. Acho que é um evento importante, porque uma parte do que fazemos exige comunicação, marketing…, é preciso injetar alguma energia nas comunidades, e a Web summit faz isso muito bem: junta-nos a todos, concentrando as pessoas, os seus sonhos, vontade, ambições, etc; e o facto de isso acontecer em Portugal é um sinal para o ecossistema planetário neste domínios das tecnologias. Por isso penso que é um evento relevante.
sA — Mesmo este ano em que tudo é à distância?
GQ — Enfim, isto da pandemia é um “outlier”, é algo que não serve de referência. Agora, atenção: a pandemia vem reforçar a atenção para o aspeto da transição digital. Empresas como a nossa são obviamente um ator nesse contexto em que as transformações estão a acontecer. E nós sabemos que essa transição digital está a acontecer cada vez mais nas nossas vidas, nos negócios das nossas empresas, que são suportados por tecnologia. Há, portanto, um movimento do analógico para o digital que tem vindo a acelerar, e a pandemia tornou isso ainda mais evidente. Acelerou algo que já estava a suceder, é uma transformação brutal, que nos obriga a dar passos que, provavelmente, queríamos dar de forma mais lenta. Mesmo o modo como nós vivemos em sociedade mudou e não vai voltar a ser a mesma coisa.
sA — A atual pandemia fez muitos estragos na Critical?
GQ — Não especialmente. Nós temos alguma exposição, por exemplo, ao setor aeronáutico, que parou, mas trabalhamos em vários outros setores de negócio: ferroviário, automóvel, aeronáutico, espaço, financeiro; portanto, trabalhamos numa diversidade de setores que nos tornam mais resilientes, aspeto que no contexto que estamos a viver é especialmente útil e é uma vantagem muito saborosa. Nós não fomos, de facto, demasiado afetados pela pandemia, vamos ter um bom desempenho este ano, mas claro que há muita incerteza quanto ao futuro. E isso evidentemente afeta os investimentos, os comportamentos dos nossos clientes…
sA — O país vai sair muito mais enfraquecido: como olha para este cenário?
GQ — Com muita preocupação. Para além de tudo quanto já aconteceu, incluindo no plano sanitário com o elevado número de vítimas já causado pela pandemia, agora há outro conjunto de vítimas, que temos de avaliar no plano económico, que vai ser muito complicado, mas que temos de nos preparar para isso. Temos de ser solidários, particularmente cúmplices, temos que nos sobressaltar, perceber enquanto comunidade quais as melhores respostas para o que aí vem. A solução não pode ser apenas vista numa perspetiva “top-down”, com bazucas e afins, tem que ser muito mais que isso.
sA — “Mais que isso” quer dizer o exatamente o quê?
GQ — Desde logo, procurar intervir nos planos onde podemos fazer a diferença. Uma empresa como a Critical, por exemplo, tem um conjunto de fornecedores, trabalha junto de um conjunto de comunidades e deve conseguir estar atenta para que, se for bem sucedida e conseguir gerar riqueza, possa olhar com ambição e responsabilidade para o que está à sua volta.
sA — Refere-se à responsabilidade social?
GQ — Absolutamente. E isso é mais importante do que alguma vez foi. No nosso caso, entendemos que a razão por que existimos vai para além da ideia mais ortodoxa que entende que a finalidade de uma empresa é gerar lucro e produzir riqueza. Nós entendemos que devemos ir muito além disso. E no contexto em que estamos a viver isso é especialmente óbvio. Vai haver um grande desequilíbrio no modo de funcionamento da nossa sociedade, há pessoas que de repente ficaram sem pé, em contextos muito difíceis (já estamos a ver isso hoje), e o que eu temo é que isso vai acelerar e vai ser muito pior dentro de algum tempo. Portanto, nós todos, indivíduos e empresas, os que ficarem com alguma capacidade de intervir, não podem desistir: têm que se sobressaltar e intervir. Isso é algo que eu espero que se venha a passar na nossa sociedade e que será determinante para ultrapassar o que aí vem, minimizando as consequências, a dor e as dificuldades que certamente muita gente vai ter de enfrentar.
sA — A pandemia está também a mudar as relações de trabalho.
GQ — A maneira como as pessoas se relacionam com o seu escritório mudou, ainda não sabemos exatamente como, mas a maneira como trabalhamos e a relação das pessoas com o seu espaço de trabalho modificou-se e não vai voltar a ser como era antes.
sA — Falava há pouco na famosa “bazuca”. Aproveitar bem os fundos europeus que estão a chegar seria investi-los onde e de que forma?
GQ — Eu entendo que em primeiro lugar temos que olhar para as pessoas. Esse deve ser o foco — mais até do que as empresas. Um dos maiores artificialismos seria manter empresas que, de todo, não têm viabilidade. Daí eu considerar que se deve, em primeiro lugar, olhar para as pessoas e procurar ajudá-las nas suas dificuldades. Não devemos, por outro lado, apoiar o que não será sustentável. Ora, reconheço que este trabalho não será fácil, razão pela qual digo que se deve apoiar as pessoas e ajudá-las a ultrapassar as dificuldades que enfrentam.
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sA — Tem afirmado que Portugal pode ser “o centro de engenharia da Europa”. Porque é que não é, então?
GQ —Temos um conjunto de universidades e de politécnicos espalhados pelo país que estão a qualificar bem muita gente, em domínios onde há procura. E uma coisa que está a acontecer em Portugal é que há uma certa liquidez, quando comparado com alguns países europeus. Repare: eu falava há pouco da transição digital; pois bem, a indústria automóvel, por exemplo, precisa cada vez mais de engenheiros de software e não conseguem. Em Portugal nós produzimos essa engenharia, mas não temos a pressão da parte da procura, como um país como a Alemanha. Logo, temos uma capacidade de resposta que é relevante para esses mercados. A nossa parceria com a BMW só existe dada a liquidez em engenharia de software que nós podemos oferecer.
sA — E Portugal tem assim tanto talento desse para oferecer?
GQ — Penso que sim. Tem essa capacidade de produção de talentos, porque possui, como dizia antes, bons politécnicos e universidades e, portanto, o país tem uma cadeia de valor capaz de o posicionar de uma maneira muito interessante. Mais: as grandes empresas dos setores mais tradicionais vão necessitar de responder a este desafio da transição digital, o que implica que vão necessitar de contratar talento, que está completamente saturado nos seus países.
sA — Está a dizer-me que as universidades e os politécnicos têm de investir em força no domínio da engenharia informática?
GQ — Absolutamente.
sA — E é estratégico que o façam?
GQ — Creio que sim. Quando digo que Portugal pode ser o centro da engenharia na Europa é sobre isso que estou a pensar. Agora, é preciso planear, juntar vontades, ter ambição, criar escala e um contexto de desenvolvimento estratégico nesta área. Hoje, Portugal já não é uma geografia desconhecida ou desprezada neste setor tecnológico. Várias empresas decidiram instalar o seu centro de engenharia no nosso país, sem que isso corresponda uma estratégia especial de fundo. Elas vieram porque as nossas universidades passaram a produzir recursos competentes, Portugal está culturalmente próximo do centro e norte da Europa, as experiências que foram ensaiadas foram bem sucedidas e, portanto, fez-se um caminho que transformou muito a imagem de Portugal. Temos, portanto, aquilo que é necessário: a imagem, a capacidade dos potenciais investidores confiarem em nós; devemos, assim, ser ambiciosos e temos de o ser.
sA — Um dos aspetos que já o vi defender várias vezes é a qualidade da gestão, seja quando se refere a empresas, universidades e até autarquias. Olhemos para as universidades públicas: que três medidas essenciais seria imperioso tomar?
GQ — O grande problema continua a ser o da consanguinidade. As universidades têm de ser capazes de se abrir, de atrair talento e de romper com o ciclo da consanguinidade. As pessoas nascem, crescem e morrem dentro da mesma universidade. Não pode ser assim. A captação do melhor talento é absolutamente decisivo para termos as melhores universidades. Portanto, direi que este é o aspeto decisivo. Depois, é a criação de uma estrutura que facilite as ligações das universidades com a indústria. Há uma perspetiva, latu sensu, da vida entre os dois mundos. Desde logo no modo como cada uma das áreas lida com a noção de tempo. Há a necessidade de urgência e de ser muito ágil e flexível da parte da indústria (porque o mundo é mesmo assim e está em mudança constante); porém, as universidades têm muita dificuldade em fazer esse tipo de gestão. Percebe-se: o mundo académico está centrado na formação de pessoas e todo esse percurso tem menos sobressaltos. A formação de um engenheiro demora três anos, depois mais dois, e assim sucessivamente. Ou seja, tudo isso é passível de ser planeado ao longo de um período de tempo estável, que não é o mesmo a que a indústria está sujeita. Ora, o desenvolvimento de uma qualquer solução tecnológica que envolva uma universidade tem que estar sujeito a golpes de rins, a mudanças, a uma flexibilidade e agilidade que claramente a universidade não tem. Portanto, essa capacidade de irem além da formação e da publicação de artigos, que constituem o foco da vida académica — e que é relevante, há que reconhecer — é algo que as universidades têm de ser capazes de fazer. Porque a indústria precisa de conhecimento e este, por definição, é nas universidades que se está a desenvolver. Daí, que a existência de mecanismos que permitam alinhar empresas e universidades seriam muito bem-vindos. Só que eles, por alguma razão, não acontecem e a razão é porque as universidades não pensam sobre isto com a ambição que é necessário pensar, porque isso levaria a uma redução a este nível das universidades, o que é difícil de perspetivar, porque há um conjunto de espartilhos administrativos que tornam estas mudanças muito difíceis.
sA — Quando diz isto está a pensar em algum modelo de funcionamento em concreto?
GQ — Há muitos modelos, mas nós não podemos olhar para os modelos anglo-saxónicos e das universidades norte-americanas, onde têm emergido inúmeras start-ups ligadas às universidades e que mudam o cenário empresarial, e procurar aplicá-los aqui. Esses casos são moldados num determinado contexto cultural, logo, não significa que poderiam ser aqui replicados com igual êxito. Tal não invalida, no entanto, que não possamos trazer e por à disposição das universidades — porque eu acho que é isso que falta, porque as pessoas têm grande capacidade, ambição, competência — um tipo de organização e de estruturação diferente do que tem sido feito. É preciso dar algum grau de liberdade que hoje não existe para, por exemplo, uma empresa fazer um contrato com uma universidade. É difícil. Há um regulamento da carreira docente, em que os professores estão em exclusividade e, portanto, se desenvolverem uma qualquer atividade não podem ser remunerados, ou seja, há todo um contexto que dificulta uma relação franca, ágil, flexível e prática. Essa relação está assim muito dificultada porque a universidade não está preparada.
sA — O que à primeira vez vista é um pouco paradoxal, visto as universidades queixarem-se do estrangulamento financeiro de que vêm sendo vítimas…
GQ — Sem dúvida. A riqueza que muitas vezes as universidades geram causam-lhes problemas, porque essa riqueza desconta face ao que podem depois receber do Orçamento de Estado, etc. Enfim, faltam-me detalhes, mas é o que oiço falar e por isso fico perplexo com estas dificuldades e com os sinais negativos que se dá a quem gere e quer que tudo isto funcione. Ora, quem gere tem de ter os mecanismos e as ferramentas para que esta relação seja efetiva. E por isso tem de haver razões para que ela funcione. E uma das razões é a universidade poder gerar riqueza, poder investir em mais recursos, melhores instalações para poder construir uma comunidade também mais forte e com mais futuro.
sA — Já o ouvi dizer que os impostos são um problema para as pessoas, não para as empresas. Ouvindo a generalidade dos empresários e associações do setor o discurso é bem diferente.
GQ — Acho que temos um problema sério, em Portugal: o baixo ordenado médio e a elevada carga fiscal sobre as pessoas. Se olharmos para isso, percebemos que há uma enorme assimetria e uma carga brutal de impostos sobre as pessoas. Para uma boa parte da nossa população é muito difícil viver dignamente, em Portugal. Portanto, as empresas que geram lucro e estão bem — enfim a Critical tem feito um caminho forte e bom — têm de olhar com muita honestidade para os problemas da sociedade. Portanto, a mensagem que eu quero transmitir é essa. Fico muito preocupado com o nível de impostos que as pessoas pagam e com aquilo que elas têm disponível para poder viver com dignidade, educarem os filhos e terem uma perspetiva sobre o mundo, que seja decente.
sA — Isso liga-se, em parte, com a questão da ética empresarial. Como vê esse aspeto num universo crescentemente competitivo entre empresas?
GQ — A ética é tudo. Nada faz sentido se não olharmos para o que fazemos segundo uma perspetiva ética. A mensagem que procuramos desenvolver num projeto como o nosso, é que se não partirmos de um contexto absolutamente sólido, inquestionável do ponto de vista da ética, tudo o resto não vale a pena, porque não será duradouro e nem nos vai orgulhar. Daí eu dizer que a ética tem de estar no princípio de tudo. Aliás, nem devíamos estrar a discutir a ética, no sentido em que ela nem deveria ser um tema de discussão. Porque só o simples facto de discutirmos a sua importância já é um mau sintoma. A ética não é passível de discussão: é como água que bebemos ou o ar que respiramos — não se discutem. Independentemente da natureza humana ser o que é, a ética tem de estar sempre presente, seja na vidas pessoas ou das empresas.
sA — Ainda a propósito de ética: como olha para o aumento do trabalho precário e dos salários baixos?
GQ — Essa é uma preocupação que também cabe aos empresários alterar. É claro que eu entendo que nem todos os empresários possam responder a isso, porque muitos deles estão em áreas de negócio mais difíceis…Agora, aquilo a que eu aspiro é que nós, em Portugal, possamos fazer um caminho em que as empresas que geram mais riqueza possam ajudar a resolver este problema. Cabe naturalmente a quem investe e às respetivas empresas contribuir para a resolução de problemas como este. É evidente que os salários são baixos e há aqui como que uma pescadinha de rabo na boca: os salários são baixos porque as empresas também não geram riqueza, estão mal posicionadas na cadeia de valor… Ora, nós, enquanto país, temos de olhar para isto com exigência e as empresas têm de perceber esta realidade dramática em que vivemos. Ou seja, boa parte da nossa população, dos nossos concidadãos vive em condições muito pouco dignas, para não dizer indignas. Muitas delas, aliás, abaixo do limiar da pobreza. Ora, isto tem que ver com a (in)capacidade de arranjarem melhores empregos, empregos que não sejam precários, que lhes dêm melhores condições — e isto é resolvido por um intervenção das próprias empresas, por uma mudança no nosso perfil industrial; não devemos apostar na indústria que se baseiam em baixos salários, mas sim naquela que utiliza o conhecimento, a criatividade e a ousadia de pessoas qualificadas e ambiciosas capazes de competir nos mercados mais maduros e evoluídos, onde se consegue gerar mais riqueza. É para aí que temos de caminhar, e depois, obviamente, termos nas empresas pessoas alinhadas com esta vontade de fazer a diferença no mundo em que vivemos. Uma empresa como a Critical, por exemplo, não pode ser apenas conhecida pelos projetos que faz, pelas novidades tecnológicas que lança. Tem de ser capaz de ser reconhecida também pela sua capacidade de ajudar a tornar o mundo num sítio melhor. Esta capacidade de as empresas serem empresas-cidadãs é muito importante — e está a acontecer no mundo. Já existem inclusivamente certificações que ajudam as empresas a posicionar-se a esse nível. É uma tendência que vai desenvolver-se, mas que em Portugal deveríamos acelerar, porque muitos dos problemas que temos devem ser resolvidos bottom-up, isto é, têm de ser resolvidos de baixo para cima, por nós, pessoas que estamos no terreno e não estarmos à espera de quem esteja num governo que decida, ou faça acontecer o que quer que seja. Temos de ser nós a tomar essa responsabilidade em mãos. Não vamos conseguir mudar o mundo completamente, mas podemos ser uma ajuda grande. É nisso que acreditamos.
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sA — Consegue imaginar-se numa sociedade onde a robótica e a computação tornam a ação humana subsidiária?
GQ — Isso nunca acontecerá, se estivermos atentos. A montante de tudo estará sempre o homem. As máquinas podem ajudar muito e já ajudam hoje a dar-nos um tipo de qualidade de vida, um bem estar que sem elas não conseguiríamos ter. Agora, a ação da tecnologia vai disromper alguns equilíbrios que nós hoje temos como garantidos. E um deles é no plano do trabalho.
sA — Há quem defenda que as máquinas também deveriam passar a pagar impostos. Concorda?
GQ — Por exemplo. Temos de olhar para isso e perceber como é que conseguimos distribuir a riqueza da maneira mais correta. Porque se as máquinas gerarem riqueza e ela for distribuída corretamente por todos, então o resultado é aquele que nós queremos. As pessoas conseguem viver com dignidade e têm um caminho nas suas vidas que faz sentido. O ponto é perceber como é que num contexto em que as máquinas nos substituem se consegue fazer isto, mantendo a equidade, iguais oportunidades no acesso à riqueza. Não podemos é correr o risco de serem os donos dessas máquinas a ficar com toda a riqueza gerada por elas. Estamos a ver o que acontece já hoje com os grandes gigantes tecnológicos…, para a importância que eles têm nas nossas vidas. E quando falamos na substituição das pessoas por máquinas estamos, em boa verdade, a referir-nos ao modelo de distribuição de riqueza, que pode ficar altamente alterado e prejudicar os mais vulneráveis e os mais desfavorecidos. E é isso que temos de perceber como poderemos combater.
sA — A Critical será, porventura, a maior empresa de Coimbra. Como é o relacionamento com a câmara local?
GQ — Temos uma relação muito pouco frequente, porque não temos no nosso plano de negócio essa necessidade. Direi, portanto, que é uma relação tranquila, mas não é muito presente no nosso dia-a-dia.
sA — E não deveria sê-lo?
GQ — Não forçosamente.
sA — Porque não? — quantas empresas há em Coimbra com a dimensão da Critical, que tem cerca de 500 postos de trabalho qualificado?
GQ —Enfim, é uma empresa como há outras. Agora, é claro que Coimbra precisa de um determinado tipo de dinâmica e, aí sim, devemos ser exigentes face ao poder autárquico, a quem nos governa: que seja capaz de atrair investimento, de tornar os sítios vibrantes, que possam fixar pessoas e ser referências. A Critical é uma empresa que nasceu em Coimbra e aqui continua, que tem feito o seu caminho, em que cerca de 80 a 90 % do que fazemos é para exportação…
sA — Como olha para a estratégia de Coimbra na captação de investimentos, quando comparada com cidades — portuguesas ou estrangeiras — da mesma dimensão?
GQ — Não estou satisfeito. Coimbra destaca-se pela negativa no que toca a todos os indicadores que fazem uma cidade, um concelho, uma região. E não me refiro a uma gestão autárquica em particular, tem sido assim desde há muitos anos. Na verdade, temos tido um mau desempenho no plano demográfico, não conseguimos reter ou atrair jovens, perdemos a indústria tradicional, que não foi substituída por uma indústria nova e criativa, como sucedeu em muitas outras cidades… Coimbra não se destaca a esse nível e essa é uma constatação que eu faço e que não me deixa satisfeito como cidadão.
sA — Abandonou, recentemente, o movimento “Somos Coimbra”. Quer explicar as razões?
GQ — Não me sinto muito confortável a falar sobre isso. Mas na vida tomamos decisões, há opções que resultam, outras não. Gostava muito que houvesse em Coimbra um movimento de cidadania independente, e o meu envolvimento era nesse sentido. Mas depois há muitas formas diferentes de pensar, legítimas, claro, mas entendo que apenas devemos fazer os caminhos nos quais nos sentimos bem.
sA — Estava nos seus planos candidatar-se à câmara municipal?
GQ — Não, de todo. Embora, devo dizer, é verdade que ainda no contexto do “Somos Coimbra” cheguei a mostrar-me disponível para poder ser candidato, se tal fosse entendido como um contributo para fazer a diferença e ser consequente face ao que vou dizendo e defendendo. Isto é, de que forma poderia ser útil e ajudar a construir uma cidade de que gosto e que eu sinto que precisa do nosso empenho e contributo. Seria, no fundo, passar do plano da identificação dos problemas e da visão crítica para o plano em que se encontram as respostas para aquilo que eu acho que não está bem. Esse era o plano e foi esse o contexto em que cheguei a manifestar-me disponível para avançar.
sA — Neste momento ser candidato está fora de questão?
GQ — Completamente.
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09/12/2020