Há mais de 70 anos, na Feira de São João, em Évora

 Há mais de 70 anos, na Feira de São João, em Évora

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Noutro sector da feira, os louceiros da Aldeia do Mato, estendiam cantareira com belos barros vermelhos de um vidrado inconfundível. Um deles percorria as ruas da cidade, mesmo fora do tempo da feira, apregoando e vendendo “mel… água-mel… e loiça”, arrastando um burricalho carregado até mais não.

Ao lado, em continuidade, estendiam-se os alguidares e os cântaros da Flor da Rosa, trabalho de um oleiro a quem o meu pai comprou um “migalheiro” onde passei a guardar a minha “milhaduras”.

Bonitas e muito procuradas eram as cantarinhas de Estremoz, em barro de um vermelho bastante vivo, muito fino, alisado, quase brilhante, ou em belas alusões a troncos de sobreiro. Davam à água um sabor e uma frescura muito apreciados e, por isso, tinham clientela garantida. Junto delas, não faltavam os tradicionais bonecos, evocando os trabalhos e ocupações do dia-a-dia das gentes.

Ruas decoradas durante a Feira de São João (Rossio de São Brás). (Créditos fotográficos: David Freitas – Data da fotografia: 1960 – Propriedade: Arquivo Fotográfico CME –viverevora.blogspot.com)

Mais adiante, estendiam-se pelo chão os pratos e demais loiça pintada do Redondo. Mas, o meu encanto eram as cantarinhas de Nisa, decoradas com minúsculas pedrinhas de quartzo branco, embutidas nas peças saídas da roda do oleiro. Tais decorações eram feitas por raparigas, seguindo um risco previamente desenhado, onde se colocavam as ditas pedrinhas a intervalos regulares e que depois empurravam com a unha do indicador, cravando-as no barro ainda húmido.

Máquinas em exposição no “stand” da Morseman na Feira de São João (Rossio de São Brás). (Créditos fotográficos: Marcolino Silva. Data da fotografia: 1960. Propriedade: Arquivo Fotográfico CME – viverevora.blogspot.com)

Neste mesmo sector do Rossio, numa certa ligação funcional aos nossos oleiros, armavam-se as barracas das loiças brancas. Aqui, estendiam-se, em grandes quantidades, as faianças de Sacavém e até as do Porto, da fábrica de Massarelos, que se disputavam no chamado modelo “Estátua”, mas conhecidas entre nós por loiça de “Cavalinho”. Era a loiça fina das famílias remediadas da cidade. Não tão fina como a de porcelana, mas, mesmo assim, era mais “chique” do que a tradicional e local loiça de barro vermelho, ainda em uso nos montes.

Évora, um aspecto da Feira de S. João, em Évora. (Créditos fotográficos: Edição Gama Freixo, colecção popular. Data da fotografia: 1950/60 – traje-antigo-alentejo.blogspot.com)

Ao lado, a loiça de Aveiro, também ela de faiança branca com lindas decorações estampadas, tinha grande procura. Era daqui a tigela da açorda da minha infância.

– Quanto custa esta saladeira? – Perguntava a minha mãe, que precisava de substituir uma há muito em uso lá em casa, “esboqueirada” e de vidrado já muito estalado e penetrado pela gordura do azeite.

– Seis mil reis (seis escudos, o que equivale, hoje, a 0,03 euros) – respondia-lhe a tendeira, vestida de negro, das saias ao lenço, descalça e de aspecto pouco cuidado.

– Quatro mil réis! – Propunha-lhe a minha mãe, experiente nesta arte de comprar na feira. E, como que nos instruindo para a vida, dizia-nos, baixinho, meio virada para trás – Nunca se lhes dá o que nos pede.

– Não posso, senhora! Empatei muito dinheiro para trazer toda essa loiça e tive muita quebra no transporte. – E acrescentava: – Morreu-me o marido e tenho esta ranchada de filhos para criar.

Louça de barro do Redondo. (lifecooler.com)

Dizendo isto, apontava para quatro crianças, ainda pequenas, seminuas e sujas dos pezitos à cabeça, de cabelinhos lisos, desalinhados e muito louros.

–  Cinco e quinhentos! – Contrapunha a louceira.

– Pelos cinco mil réis, levo-a!

– Seja! – Acedia a mulher, dando ares de se render.

Pagos os cinco escudos e recebida a saladeira, bem embrulhada num papel de jornal, seguíamos para o outro lado da “rua”, onde, sob um enorme toldo, em estrados escalonados, improvisados com pranchas de madeira, se exibiam os vidros.

Eram copos às centenas, de todos os tamanhos e modelos, jarros, garrafas e muitos outros objectos de vidro. Uns de uso e outros para decoração, vinham, que eu me lembre, dos vidreiros de Lisboa e da Marinha Grande. Lisos, com desenhos em relevo, pintados, incolores ou de vidro corado, era só escolher.

A mãe precisava de copos e ali havia muita variedade, para todos os gostos e o preço era sempre mais em conta do que na cidade. O pai dava a sua opinião e pagava.

Carrossel na Feira de S. João, em Évora. (Créditos fotográficos: Eduardo Nogueira – negativo incorporado em Maio de 2018, proveniente do espólio entregue por Luís Martinho, na sequência da compra da Colecção Inácio Martinho – Data da fotografia: década de 1930-1960, produção – Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora – arqm.cm-evora.pt)

As compras na feira eram aquisições consideradas extraordinárias, fora do estipulado nas contas do governo da casa, onde era a mãe que tareava os gastos.

Para mim, o mais novo dos cinco filhos, estas compras eram fastidiosas e só serviam para atrasar e diminuir o tempo que gostaria de ocupar com o que me desse mais prazer. Os brinquedos, os carrosséis, o circo e os carrinhos de choque e outras diversões eram coisas boas e que só tinha de ano a ano.

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21/12/2023

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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