Há novidades na frente da legislação da Saúde

 Há novidades na frente da legislação da Saúde

Luis Melendez (Unsplash)

Não é a mesma coisa a referência ao reforço do Serviço Nacional de Saúde (SNS), tanto no financiamento como no recrutamento de profissionais, e a exigência da fixação da organização e das regras de funcionamento daquele serviço público. Compreende-se que são duas mensagens distintas e que, politicamente, o significado de uma é mais bem captado pelos destinatários das respectivas bases de apoio daqueles partidos do que a que se refere a um normativo. Contudo, neste caso, trata-se de passar do geral para o particular. Trata-se de estabelecer o modelo de continente para o conteúdo que lhe deve dizer respeito. Sem este exercício, o risco de o conteúdo se perder para outros continentes é sempre elevado.  

Não se trata de mais um diploma. Trata-se do conjunto articulado de disposições que, depois de aprovada a Lei de Bases da Saúde, se tornou indispensável para traçar o roteiro das mudanças que são necessárias realizar para habilitar o SNS a cumprir a sua missão nos próximos anos, em que as realidades sociodemográfica e epidemiológica se alteraram consideravelmente, e em que a oferta de cuidados de saúde sofreu uma considerável alteração, à custa da presença do sector privado. Desde 1993, quando passou a existir a primeira Lei de Bases da Saúde, até aos dias de hoje, a população idosa aumentou e com ela a esperança de vida, a natalidade diminuiu, as doenças crónicas começaram a surgir em idades mais jovens, os hábitos de vida sofreram uma transformação indesejável, de que a obesidade é um dos sintomas; a carga de doença, sobretudo, nos velhos é das mais elevadas da União Europeia, traduzida numa esperança de vida com doença de 65%; a capacidade tecnológica instalada é mais sofisticada e os profissionais de saúde (especialmente, médicos e enfermeiros) têm vindo a escassear no SNS, fruto dos baixos salários, da obsolescência de muitos serviços e de modelos de gestão desadequados; o acesso aos cuidados prestados pelos serviços públicos tem vindo a sofrer constantes atrasos, mau grado a existência de tempos de resposta recomendados para as diversas prestações; o cansaço tomou conta do exercício profissional e uma descrença na capacidade de recuperação do SNS começou a espalhar-se, com a consequente desmotivação e desinteresse por um elevado número dos quase 130 mil profissionais que nele exercem funções. 

Quando passou a existir a primeira Lei de Bases da Saúde, até aos dias de hoje, a população idosa aumentou e com ela a esperança de vida, a natalidade diminuiu, as doenças crónicas começaram a surgir em idades mais jovens, os hábitos de vida sofreram uma transformação indesejável

Esta descrição não significa que o SNS já tenha deixado de constituir o principal e mais importante pilar do sistema de saúde do país. Continua a ser nele que se encontram todas as respostas para todos os problemas de saúde. Continua a ser nele que a população confia quando adoece. Continua a ser ele que oferece formação pós-graduada e onde a investigação científica encontra as melhores condições para ser realizada. Observa-se é que este Serviço que cobre todo o território nacional, querendo garantir o acesso a toda a população, não se tem adaptado progressivamente às condições que se foram alterando, em consequência, principalmente, das flutuações políticas verificadas ao longo dos seus mais de quarenta anos. Entre avanços e recuos, o resultado, passados estes anos, foi a estagnação.  

No que diz respeito ao Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (ESNS), o Governo já tem um documento preparado, mas tanto podia vir a merecer a atenção do Conselho de Ministros agora como num dia destes. Sabemos como tais processos se desenrolam. Cabe à oportunidade política determinar o momento em que muitas das decisões são tomadas. Contudo, não deixando de constituir uma decisão importante, ela só se tornará emblemática se os termos da versão final do documento forem ao encontro do que é necessário fazer para mudar o padrão de funcionamento actualmente em vigor. Porque é diferente termos uma construção em regime de condomínio fechado do que uma construção em que cada um tem o direito a ter a palavra. Porque também é diferente os recursos existentes, agora e no futuro, estarem preferencialmente direccionados para reagirem à procura, do que estarem habilitados para, também, intervirem nas respectivas comunidades com a capacidade para alterar hábitos comprovadamente nocivos para a saúde individual e colectiva. 

É verdade que os sedimentos que se foram acumulando no SNS, traduzidos por uma cultura em que a receita médica é a parte tangível da quase totalidade do retorno que os contribuintes obtêm do pagamento dos seus impostos, exige um quase exercício de arqueologia de maneira a separar o que é para preservar do que é para ficar na memória dos que nele viveram. Quem adopta a divisa “o nosso SNS” não estará certamente a defender um eufemismo. Essa divisa tem implicações no plano da apropriação colectiva do conceito, implicando que aquele instrumento não representa uma finalidade, mas o suporte material onde se realizam múltiplas transacções; entre o suporte e a comunidade e entre a comunidade e o suporte, tendo por finalidade a manutenção tanto da saúde percebida como da saúde medida. 

Olga Konorenko (Unsplash)

Se considerarmos como boa esta perspectiva, então terá de haver a sua tradução prática, aquela que mais e melhor reproduza o conceito de “nosso SNS”. As condições para que isso se verifique decorrem de múltiplas vontades, sendo, por isso, um exercício complexo, recheado de incertezas e de obstáculos, que encontrará sempre pela frente as grilhetas do seu histórico. Contudo, se houver demonstração de empenho político e se, no plano das comunidades locais, se tornar perceptível que a solução reclama o investimento de todos e que os resultados a obter serão superiores e melhores do que os que já são conseguidos, toda a abordagem estará mais facilitada e o roteiro para lá chegar apresentar-se-á com menos riscos – essencialmente, aqueles que costumam ser gerados na fase embrionária dos projectos.   

Trata-se, concretamente, de alterar os dados da equação. Se o SNS tem sido a sua estrutura humana e a sua logística, as variações que se têm verificado na sociedade reclamam que o poder, até agora unipolar, seja distribuído por mais entidades, tornando-se multipolar e heterogéneo. Porém, é uma multipolaridade cooperativa e colaborativa, longe dos estereótipos concorrenciais muito em voga nos finais do século passado, e que se tornaram nos principais responsáveis de muita da decadência dos sistemas públicos de prestação de serviços. Em Portugal, estão bem identificados os momentos em que isso aconteceu: com a Lei de Bases da Saúde, de 1990, e com o Estatuto do SNS, em 1993.  É verdade que foram precisos vinte anos para que se começassem a sentir todos os efeitos do desinvestimento político e financeiro no SNS, em consequência da emergência do sector privado, que, com aquela legislação, viu abrirem-se-lhe as portas do cofre dos orçamentos de Estado e a defesa da sua superioridade. Foram os tempos em que a eficiência era a figura principal do elenco de objectivos dos sistemas públicos. Chegou mesmo a criar-se uma certa hegemonia do New Public Management, essa doutrina criada para dar um tom respeitável ao desmantelamento indolor de tudo quanto tivesse o carimbo de serviço público, da energia aos correios, do abastecimento de água aos serviços de saúde. 

Se houver demonstração de empenho político e se, no plano das comunidades locais, se tornar perceptível que a solução reclama o investimento de todos e que os resultados a obter serão superiores e melhores do que os que já são conseguidos, toda a abordagem estará mais facilitada e o roteiro para lá chegar apresentar-se-á com menos riscos

Sendo inquestionável que a organização e o funcionamento dos serviços públicos de saúde estão, há muito tempo, a precisar de “alterações estruturais”, como, ainda recentemente, diagnosticou o primeiro-ministro, essas alterações, para terem efeito sobre a saúde da população, porque é disso que devem tratar as alterações estruturais, exigem que se escolha quem as há-de protagonizar. Não basta enunciar uma intenção; é condição necessária ser acompanhada por todo o equipamento que a concretize. Quem e o que há-se ser somado aos serviços de saúde já existentes, para que a estrutura do SNS fique adaptada às necessidades de cada comunidade local? Parte da resposta pode estar na Base 9 da Lei de Bases da Saúde (LBS – Lei 95/2019, de 4 de Setembro). Porque, percorrendo o País de norte a sul e de leste a oeste, as necessidades vão variando consoante a estrutura etária da população, o seu grau de escolaridade, o rendimento disponível, a profissão, o emprego, os equipamentos sociais existentes, as variações em torno do padrão epidemiológico nacional, a carga de doença, a cobertura verificada dos serviços públicos de saúde e o acesso aos cuidados, entre outros. O que se torna indispensável fixar, daqui para diante, é que existe um SNS que cobre todo o território nacional, com princípios e orientações universais, mas que o modo como se concretiza a sua presença há-de decorrer das variações locais, sobretudo das expectativas das respectivas comunidades. Serão as particularidades locais que poderão fazer do SNS um serviço enraizado nas aspirações das comunidades. 

As alterações estruturais terão de significar que os actores locais passam a estar incluídos no perímetro do SNS, cujo raio de acção se deve ampliar consideravelmente, de modo que a preservação do bem-estar passe a constituir a regra da política de Saúde. É este movimento de porta aberta, a quem se considere habilitado a dar a sua contribuição permanente e activa, que poderá mudar as regras até agora vigentes. Se as condições políticas criadas, no período de 2015 a 2019, foram as mais favoráveis para que a Lei de Bases da Saúde fosse aprovada, o mandato governamental que agora termina tem igualmente todas as condições para que o ESNS faça vingar aquele formato de SNS.  

Não se pretende, nem se deve, ocultar os obstáculos que tal empreendimento poderá suscitar; mas, estes serão as reservas que a inovação sempre desencadeia, geralmente de carácter mais subjectivo do que substantivo. É o receio do desconhecido que acciona os mecanismos que estejam à mão, o principal dos quais é a defesa da sua inviabilidade. Daí que, a verificar-se tal operação, ela se deva rodear dos mecanismos que previnam turbulências que a possam comprometer; tanto no início como ao longo do processo do seu desenvolvimento, e sempre que algum acontecimento externo possa perturbar o seu andamento. A liderança e a condução política do empreendimento estão obrigadas a saber responder aos questionamentos que, inevitavelmente, se irão colocar. 

E, entre todas as respostas, aquela que poderá ser mais convincente e que mais adeptos poderá reunir é a que colocar, em alternativa, a pergunta: “Maior número de anos com doença ou maior número de anos saudável?” Tudo se vai jogar nesta escolha. 

07/12/2021

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Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

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