Hábitos de leitura na infância: “Quando crescer quero ser leitor”
Escritores, educadores e pais refletem sobre a arte de ensinar a gostar de ler. A subvalorização da língua no ensino e a ameaça da era digital intensificam a preocupação pelo afastamento das crianças da leitura.
Era uma vez três crianças a brincar num parque numa manhã soalheira. Uma no baloiço, outra na caixa de areia e a terceira, sozinha, lia um livro: “A Cegonha Maquinista”, de José António Franco. “Como se a natureza estivesse a celebrar a amizade e a harmonia entre espécies tão diferentes”, lia baixinho. A história podia começar assim, ou de mil outras formas.
O livro é, para uma criança, uma porta para o mundo, que se expande e transfigura, podendo assumir todas as formas e tamanhos. Através das palavras, das imagens e das rimas, o jogo da leitura faz-se pela primazia do olhar, da criatividade e da memória. Terá o gosto pelo livro por parte dos mais novos vindo a perder-se? A menina que lia no parque naquela manhã soalheira acha que não.
No ano passado (ou seja, em 2023), de acordo com a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, os livros mais vendidos foram de literatura infantil e juvenil. À frente dos de não-ficção e dos de ficção, os livros para jovens representaram 33,9% do mercado livreiro. Esta não era uma realidade há uns anos. Tem-se vindo a desenvolver um trabalho complexo nas escolas, infantários e bibliotecas, no sentido de sensibilizar para a importância da leitura desde tenra idade. Hoje, a introdução do livro a uma criança parece mais consciente.
Andreia Pereira, mãe de Amália, de 19 meses, revela: “É muito importante, para mim, que a minha filha desenvolva o gosto pelos livros e é minha função estimulá-la nesse sentido”. A bebé ainda não sabe ler, mas já se mostra curiosa pelos textos. No infantário, o “cantinho da leitura” é um espaço sagrado para os pequeninos, onde existe “uma estante de fácil acesso aos miúdos para poderem ir buscar os livros e trazer para ler”, refere. Segundo a mãe de Amália, isto é algo que replicam em casa, numa tentativa de dar liberdade à criança para descobrir as suas preferências e desenvolver uma relação individual com o livro.
Andreia Pereira fez ainda referência à Biblioteca Infantil/Ludoteca na Casa da Cultura de Coimbra, na Rua Pedro Monteiro, um lugar onde o acesso direto dos pequenos aos livros é privilegiado. Cor não falta nesta Ludoteca, que conta histórias com os desenhos nas paredes, nos armários e na bata cor-de-rosa da senhora bibliotecária. Com mesinhas por toda a sala, este é um espaço onde os mais novos se podem sentar a ler um livro, ouvir um conto, visitar uma exposição ou assistir a um espetáculo, numa autêntica comunhão entre a palavra e o sonho, em tamanho pequeno.
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A palavra como super-heroína
José António Franco, poeta e ficcionista, tem “muitos anos de experiência com crianças”, conta. O também professor descreve-se como um “outsider”, que vai às escolas fazer oficinas de leitura, oferecer formações a educadores e bibliotecários e desenvolver estudos no âmbito das Ciências da Educação.
Em 1997, o seu livro “A Poesia como Estratégia” foi premiado pelo Instituto de Inovação Educacional, no âmbito do Concurso Experiências Inovadoras no Ensino, o qual alerta para a necessidade de reconciliar a pedagogia e o texto poético. Na ótica de José António Franco, “a poesia também se aprende, é uma maneira de tornar a língua um exercício de prazer e, ao mesmo tempo, formador de discursos”. Para o escritor, a literatura “devia ser uma aliada essencial da vida dos pequeninos, ao incentivar o exercício da magia do olhar”.
Já Alice Cardoso, educadora de infância que se tem dedicado à atividade da escrita para crianças, é uma forte defensora da ideia de que “as histórias têm de valer mais do que o próprio texto escrito”. Com base na sua experiência em sala de aula, revela que tem sido preocupação de muitos pais e professores estimular o gosto pela leitura, desde cedo. “O interesse pelo livro nunca desapareceu, no entanto, é algo que precisa de ser trabalhado”, reitera. Através da articulação com outras áreas de conteúdo, “é importante fazer as crianças sentirem que a leitura não está só ali no abrir e no fechar do livro”.
Entre as obras que tem publicado, Alice Cardoso incorpora outras formas de abordar o livro para atrair os pequenos leitores. É o caso da coleção “Antares”, lançada em 2014, que traz um CD na última folha, com música e leitura expressiva. “Se fizer um texto e o transformar num espetáculo, com dança, música e teatro, quando as crianças leem o livro, já o sentem e começam a relacionar com o momento”, declara. À luz do trabalho que tem feito nas escolas, a educadora apercebe-se de que, neste momento, a promoção da leitura passa também pela inclusão dos “futuros escritores” na produção das histórias. Assim, além de desenvolver a componente cognitiva, “as crianças estão a avivar o seu espírito crítico e criativo”, explica.
Tanto no processo de construção de uma história, como na sua apresentação às crianças, José António Franco sublinha que “a maneira como se diz, fala e se trata a palavra é essencial”. De acordo com o autor, ler um conto implica “veicular uma ideia a uma criança”, pela exposição ou explicação dos significados. “A língua é um aguçador de raciocínios, aprender a falar ensina também a pensar”, pelo que “é fundamental fazer exercícios de memória e fomentar o raciocínio criativo; isso cria e intensifica um laço muito especial com o livro”, defende o escritor. Desta forma, “é fácil chegar aos miúdos, eles adoram”, acentua.
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Os futuros leitores, escritores e educadores
Com os olhos a brilhar, ajudado pela esposa, que estava sentada ao seu lado e não deixava escapar nenhum pormenor, José António Franco contou diferentes histórias de interações que teve com crianças: “No outro dia, estava aqui no café e apareceu uma menina de dois anos, nossa amiga. Foi a primeira a receber o meu livro, ‘A Cegonha Maquinista’, acabado de sair. Passado um bocado estava agarrada à mãe a pedir-lhe para ela lhe ler a história. Foi delicioso!” Estes momentos são versos soltos de uma vida apaixonada que tem vindo a escrever ao longo dos anos. “Ao chegar aos miúdos, sinto que estou a criar um possível leitor, mas, sobretudo, um possível falante e pensador, que respeita a língua e tem honestidade intelectual”, reconhece.
O poeta considera que “a parte magistral sempre foi primária” na sua carreira, pela forma fascinada com que “partilha com jovens a escrita, a beleza estética, aquilo que faz, mas, sobretudo, aquilo que outros fazem”. Assim como Alice Cardoso, o escritor conta as diferentes peripécias vividas com os mais novos de sorriso no rosto, a soltar gargalhadas enquanto imita a voz da Maria, do Manuel e da Carlota. Ambos se recordam do nome de todos os alunos, muitos dos quais serviram de inspiração a histórias e a poemas que estão, hoje, nas montras das livrarias. É o caso da personagem “Elana”, inspirada numa aluna de Alice Cardoso, que “na aula de ballet era um autêntico desastre, mas na natação era a melhor”. Segundo a educadora, “muitas vezes, a realidade cria histórias”.
Ambos os escritores testemunham o facto de serem bastante influenciados pelo contacto que vão tendo com os mais novos. A criança “é a mesma de há 40 anos”, afirma José António Franco, no entanto, “tem de ser pensada dentro da sua época”, ressalva Alice Cardoso. “Escrever para crianças não é uma coisa fácil, para mim é um gosto”, confessa o poeta. “É importante que as crianças, quando leem, preencham a curiosidade, criem mundo”, e, para isso, acredita que “a relação com as palavras deve ser sedutora e não esvazie”.
A escola é descrita tanto pelos professores, como por Andreia Pereira, como um espaço de promoção de todas as potencialidades dos jovens, que deve ser feito de forma individual e atenta. “É preciso ver que a escola tem o seu trabalho e isso implica suprir as falhas que a família não consegue prever”, salienta José António Franco. “Em ambientes familiares com graus de iliteracia elevados, onde não existe, além da fatura da GALP ou da EDP, mais nenhum documento escrito, a escola tem de intervir”, alerta. Isto é possível se “a instituição valorizar o modo como se aprende, pela formação dos professores, e como se olha para o objeto estético”, reforça.
Alice Cardoso corrobora esta ideia, ao atribuir à escola o papel “de introduzir as crianças à leitura e de fazê-las gostar dos livros através de todas as áreas de conteúdo”. A par disso, a escola deve, através do livro, “transformar o percurso dos jovens pela ação, sensibilizando-os para valores sociais como a educação ambiental ou a desigualdade de género”.
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Um livro ou tablet antes de dormir?
Com a era digital a estrangular a linguagem e a ameaçar a extinção do livro, existe uma preocupação ainda maior em preservar o gosto pela leitura. Alice Cardoso expressa que “as crianças estão muito habituadas a estarem com o telemóvel nas redes sociais, mas, quando algo lhes chama a atenção e as faz sentirem-se bem, elas têm momentos muito bons”.
Também Andreia Pereira tem tido esta preocupação: “O meu papel, enquanto mãe, é de que haja um equilíbrio. Quero que a minha filha leia, que viaje através dos livros, moderando os estímulos digitais que nos aparecem de todo o lado.”
José António Franco pensa que “a ‘SMSzação’ da linguagem torna o falante mais pobre, reduz o código da língua a relações conflituosas”. Assim, “quando a aprendizagem do domínio da língua é tão limitada, corre-se o risco de não se conseguir imaginar os mundos que uma descrição pode provocar”.
Preocupado com as próximas gerações, este professor revela que tem pensado em alternativas para contradizer o retrocesso que as novas tecnologias têm implicado, algumas das quais passam pela “introdução da leitura em oficinas, com poetas como Eugénio de Andrade ou Herberto Helder, pela valorização da escrita como magistério da cidadania e pela força do fruir da língua”.
Esta história termina com um final feliz, mas apreensivo. José António Franco enfatiza a importância de promover uma discussão sobre a subvalorização da literatura nas escolas e das bibliotecas nos municípios e nos programas culturais das instituições. Para a criança que lia no parque, o livro é o fruto do esforço que estes escritores, pais e educadores têm feito no sentido da celebração do conhecimento, da língua e do sonho.
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29/01/2024