Humanidade(s) em tempo de pandemia
Celebrei o meu aniversário em confinamento e sozinha. Depois, feliz.
À data, estava há cerca de dez dias em quarentena voluntária e a tentar não sucumbir da decisão.
Já com a conversa do isolamento, fui enganada: “faço muito mais em casa”, “o tempo rende mais”, “trabalho mais”…
Não me lixem. O isolamento cumpre-se. Como uma obrigação. Mas mói.
A quarentena? Também se cumpre. Mas dói, **da-se.
No dia do meu aniversário, estava a (tele)trabalhar. Ainda bem.
Ignorei o total de meia dúzia de contactos que recebi, para dividir o horário útil entre completar o meu trabalho, primeiro; depois, trocar boas conversas com quem se tivesse lembrado de mim no meio da turbulência do mundo.
No entretanto, fui feliz: Por cima do fervilhar das minhas teclas, a trabalhar, ouvi várias vezes bater à porta.
Nesse dia, pela janela ou pelo postigo da entrada, de bolo a prendas, recebi um pouco de tudo. Sobretudo sorrisos.
Emocionei-me, claro. Tudo o que de muito bom ou muito mau que há no mundo toca-me profundamente e de forma particular: então, desidrato. Para compensar, choro.
Tenho mais dedos nas mãos do que amigos. Ter contado com o carinho deles – sem jantar marcado, em época de confinamento e a cumprir quarentena – soube-me a mais do que à Amizade a que me habituaram. Sozinha e feliz, fui tocada pela Humanidade.
Ainda ébria com este aniversário transcendente, quando chegou a minha vez de desconfinar, abdiquei de alguns assuntos corriqueiros que deixei por tratar devido à quarentena para estar com uma grande amiga.
Fora os pequenos prazeres da vida, que partilhamos, há um fosso entre mim e ela. Porque somos abismalmente diferentes. E rimo-nos muito disso.
Já lhe disse que, mesmo que estejamos a conversar lado a lado, eu imagino sempre esse buraco entre nós. Vejo-me sentada, com pés descalços a boiar no fosso, tal como a ela. Só que ela senta-se do lado de lá, depois do buraco que eu não posso saltar ou deixaria de ser eu. Morria.
Ela não me devolve uma história mirabolante destas. Mas também não se recusa a sentar-se comigo, com os pés para o fosso. Simplesmente, continua a conversar.
É assim que a defino, pela sua Humanidade. O que me deixa feliz com o mundo e com o facto de ela fazer parte do meu também.
Há tanto tempo longe, não só uma da outra mas também da vida, este reencontro foi marcado pelas habituais gargalhadas de compararmos o que temos ambas que fazer mas que, claro, cumprimos diferentemente.
O mundo pulula e agora as rotinas fazem-se de teletrabalho e máscaras e álcool gel… As nossas rotinas também, mas cada uma cumpre a sua, como se lhe apraz. Não pululamos com a vida porque respeitamos este fosso que acaba por nos unir. Não vamos cair, queremos continuar sentadas, a conversar.
E foi no deambular pelo nosso quotidiano, de regras comuns mas que vivemos diferentemente, que retomei um assunto que me assombra particularmente.
Recordei-lhe da falta de Humanidade que é não receber sequer um aceno, quando respeitamos a etiqueta de fazer um cumprimento cordial.
Esta é uma experiência pela qual a minha amiga nunca passou – ainda bem.
É que, ao longo do tempo, é como passar do isolamento à quarentena. Mas em condições involuntárias. E, porra, se não mói. E se não dói.
O que determina uma resposta vazia, quando se entra num qualquer espaço e se ouve “bom dia”? Só pode ser aquela vontade de chegar àquele sentimento que se tem de que somos mais humanos por ultrapassarmos os nossos instintos…
Ou o instinto mais básico não é responder “bom dia”, também? Até quando não conhecemos as pessoas.
“É a Humanidade”, respondeu a minha amiga. E encolheu os ombros.
Não. A minha não é.