Impressões sobre “Os Míseros – Prantos, Lamentos, Loas e Pregões + S.N.S.”

 Impressões sobre “Os Míseros – Prantos, Lamentos, Loas e Pregões + S.N.S.”

Os actores Fábio Costa e Beatriz Antunes são Adão e Eva em “Os Míseros”, com cenas de Gil Vicente e Henrique Manuel Bento Fialho. (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

Em 1504, Gil Vicente apresentou o “Auto de S. Martinho” à Rainha D. Leonor, na Igreja de Nossa Sr.ª do Pópulo. Foi, precisamente, no adro desta igreja que o Teatro da Rainha, companhia residente nas Caldas da Rainha, estreou, a 19 de Julho, o espectáculo “Os Míseros”, composto por uma primeira parte com personagens vicentinas, “Prantos, Lamentos, Loas e Pregões”, e uma segunda parte com peça inédita de Henrique Manuel Bento Fialho, intitulada “S.N.S.”. Eis o pretexto para uma troca de impressões entre o encenador Fernando Mora Ramos e eu próprio, enquanto autor de “Os Míseros – Prantos, Lamentos, Loas e Pregões + S.N.S”, que esteve em cena até ontem (domingo, até 23 de Julho).

Fernando Mora Ramos (FMR) – Começando pelo meio, o tema. E falamos de tema nesse desejo de definir fronteiras, o que, nestas paragens do trabalho do sentido, nem sempre é possível, os processos associativos saltam-nas. É a pobreza, sendo a solidariedade, sendo a exclusão, as exclusões – agora, quando se fala das inclusões, para melhor excluir –, isto é, como uma sociedade olha para os seus desgraçados mais oprimidos, os que, nos limites da sobrevivência, conhecem a fome e o frio, são escorraçados, são marginais, perseguidos, sabendo que os mecanismos da sua integração são sempre formas de exclusão, armazenamentos. Na montagem vicentina isso é claro: do pobre à Feiticeira perseguida, ao camponês sem colheita, aos moços famintos, etc. Na tua, Henrique, são todos fugidos…

Isto, é claro. Não obrigava o “S.N.S.” a perseguir o auto senão como citação inesperada e disparada para outras paragens, como acontece e lá está na figura de Martinho, que, por antonomásia, poderia ser o pobre. Neste caso, por opção ideológica de alguém que quer viver na absoluta pobreza de meios e na máxima riqueza de comunhão espiritual com a Natureza. O mercado, obviamente, não larga ninguém, nem mesmo a quem não lhe chega. E leva-lhes tudo aquilo de que não necessita em cima do que necessita.

Henrique Fialho (HF sinalAberto) – Para começo de conversa não está mal. Vamos, então, ao tema, que dizes ser a pobreza. Na montagem das cenas vicentinas isso é claro, pelas características das personagens seleccionadas. A Parda, o Mortinheira, Genebra Pereira (de um modo menos evidente, apesar do desemprego), nos moços Apariço e Ordonho, culminando no Pobre do “Auto de S. Martinho”. Em “S.N.S.” não é tão óbvio que o tema seja a pobreza, pelo menos a material. Desde logo, porque o princípio orientador da escrita foi uma indagação da “caridade cristã”, presente tanto no “S. Martinho” como no “Livro do Compromisso”, que me serviram de base e a partir da qual levantei voo na tentativa de responder a uma dúvida: qual o lugar da “caridade cristã” nos dias de hoje?

Mafalda Taveira no papel de Maria Parda. (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

Devo dizer, desde já, que me repugna o conceito de “caridade”, conquanto se me torne obrigatório analisá-lo à luz do seu tempo, aquele de Gil Vicente, que, sendo diferente do nosso, tinha dele um entendimento próximo da “solidariedade” concebida pela Revolução Francesa. Prefiro a solidariedade e a fraternidade à caridade. Dito isto, o tema em “S.N.S.” será mais o das razões da pobreza do que a pobreza, em si mesma. E essas razões, na peça, são apontadas a partir das opções egoístas e individualistas das personagens. Martinho fugiu da civilização, as Martas fugiram da família para estarem uma com a outra, o Negacionista fugiu daquilo a que chama ditadura sanitária. O único que não foge, porque é o que sempre foi, apesar dos anos terem passado, é Caronte.

Deixa-me lembrar o que diz uma das Martas, a dado momento: “Ninguém nasce só nesta terra. Temos mãe, temos pai.” Ora, foi precisamente da família que ela fugiu. Para estar com a outra. Todas estas opções, que representam diferentes modos de individualismo e, por arrasto, de egoísmo, são, grosso modo, a razão mais profunda da pobreza, pois fazem sobrepor conveniências meramente individuais às necessidades colectivas, sociais, do todo.

Beatriz Antunes no papel de Genebra Pereira. (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

FMR – A questão a que queria chegar é a seguinte: como te veio Caronte, de que paridura, mesmo sabendo da ligação com os diabos vicentinos (Martinho é outro assunto, já lá estava, no Auto)? Muda de pele e de tempo… Uns séculos depois, o solidário Martinho converte-se no tipo que se isola, pois crê que a sociedade da partilha – e da caridade – não fazem sentido e que as metrópoles são lugares destrutivos dos seres.

HF De onde vem Caronte? Vem do Gil Vicente, que apanhei na escola. Vem do “Auto da Barca do Inferno”. Ocorreu-me que podia ser interessante explorar a caridade de Martinho, isolando-o da civilização. Passaram 500 anos. Quem vão ser os santos do futuro? Isolar Martinho numa ilha pode significar muita coisa. Desde logo, que deixou de haver lugar para a caridade nas sociedades modernas. Isto não é verdade. As bichas para a sopa dos pobres são intermináveis. Assim sendo, talvez signifique, antes, que não há lugar para a santidade nas sociedades modernas. Isto já me parece mais verdadeiro. Não há santos.

FMR – O que me importa aqui é o seguinte: são forças, superam a noção convencional da personagem na escrita, reúnem em si múltiplas vozes.  Enquanto Caronte, que é a voz do autor, o porta-voz do comércio, um traficante, o humor negro e cínico, de modo eficaz, desenvolve uma desumanidade, desconhece o afecto, ganha força sistémica – não faz sentido olhá-lo como um carácter –, Martinho é também um complexo, é a figura arcaica do regresso à Natureza, em tempos já da sua extinção. Lembremos o Antropoceno, como agora dizem, o sujeito anti-social, mas também o tipo que nega isso e é capaz de se redescobrir na relação com terceiros ou de socializar. Um solitário socialista, de algum modo, enquanto é um utopista sem utopia a concretizar, pois o todo não lhe permite ser margem.

Em Johan August Strindberg, de uma certa época, há a categoria da guerra de cérebros. Não é o caso, mas há uma oposição Martinho/Caronte que é, na realidade, um antagonismo. Não há anti-utopista mais eficaz que o capitalismo. Destrói e engole tudo o que o supera. Caronte é um seu rosto. É conhecida a sua capacidade de converter em marca rendível, de recuperar – diz-se – tudo o que se lhe opõe e antagoniza. Necessita dos seus contrários, ogre que é, para, engolindo-os e regurgitando-os, se eternizar como “força do mal”, fábrica global do fluxo do lucro privado. Caronte não é o complexo militar-industrial, para falar de um complexo de forças… Mas é um ser compósito. O que te diz esta minha deriva?  

HF Metendo Martinho numa ilha, surgiu-me, de imediato, a hipótese de essa ilha ser uma Ilha Afortunada ou a Utopia, mas transformando-se no exacto oposto disso. Como aprecio as zonas intermédias, isto é, as zonas ambíguas, menos lógicas e óbvias, foi por associação imediata que o limbo de Dante se impôs. E com ele Caronte, de que guardei a principal característica, a avareza, acrescentando-lhe outras. Tinha de ser omnisciente, uma espécie de deus da ilha, é uma figura clássica, o tempo é o seu domínio. E tempo é dinheiro, conhece os trilhos da morte.

Não é por acaso, obviamente, que Caronte se refere em tom depreciativo a Rousseau, o Jean-Jacques. Ele é o exacto oposto desses valores que inspiraram a Revolução Francesa, os da Igualdade, da Liberdade e da Fraternidade, independentemente do que se seguiu. É o mercado e as suas flutuações, palavra que joga tão bem com a barca em que se movimenta. Martinho é um renunciante, desistiu da civilização, da santidade, da caridade.

Atiro-te agora a bola. No email que me enviaste, aludindo, pela primeira vez, a hipótese de espectáculo que pudesse articular o “Auto de S. Martinho” com o “Compromisso”, estava implícita a ideia de um manifesto em prol do serviço público. Como é que evoluíste dessa ideia para uma montagem que aparenta ser muito mais uma denúncia das misérias sociais?

FMR – O que me despertou para a escolha vicentina, as figuras que encadeei, foram os sem-abrigo. Choca-me ver pessoas sem telha, casas de cartão nas entradas laterais de teatro, como no Teatro Nacional São João e no D. Maria II. Seriam bons albergues. Lá dentro veludos, cá fora pedra, como diz Mortinheira, chove pedrisco na realidade dos desgraçados. Com isso, raivo eu. Também eu tenho aversão a essa caridade. No Martinho, fazemos o contrário. Primeiro, o pobre é coral, ganha uma força inesperada. Segundo, desta feita, não se conforma, “conforme-se ele comigo” (o Senhor, pois!), como se essa frase fosse o leitmotiv da primeira parte. O pobre, sem nome, como os pobres, já os miseráveis caçadores de farelos têm nome, Ordonho e Apariço, nomes intencionados, nesta versão torna-se incómodo. É agressivo.

Fábio Costa e Vítor de Sousa são Apariço e Ordonho. (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

O que tentei foi mostrar uma capacidade de agredir. Este pobre não se conforma com a sua pobreza, chega a berrar aos céus. Não só não se conforma como propõe uma espécie de suicídio, de eutanásia, diríamos. Leve-me a morte e deixa as donzelas em paz, o pobre questiona Deus, que o impede de morrer, não valendo a pena viver em sofrimento sem remédio. Como no diálogo de mortos de Johannes von Saaz, em “O lavrador da Boémia”, esse não aceita a morte da esposa, rebela-se contra a omnipotência de Deus, estamos em séculos de poder absoluto da Igreja, no pobre a um passo da vinda da pior Inquisição. 

E o “Auto de São Martinho” é, pela primeira vez em Portugal, lido em chave herege. Já o tínhamos apontado antes, mas não como nesta versão. O final do auto, a fila dos cegos de Bruegel (aludindo à pintura do artista do Renascimento flamengo Pieter Bruegel, o Velho, intitulada “A Parábola dos Cegos”), é uma bofetada nesta sociedade. O público, representa-a, interessa-nos incendiar propósitos de dissidência numa sociedade amorfa em que o protesto é, ele mesmo, parte do esquema e em que nada já aponta a uma revolução radical, indo às raízes dos problemas e não os tratando sempre como coisa adiada. Como se pode piorar, quando vemos uma sociedade cada vez mais capaz de riqueza? Distribuição? Oligarquias.

HF No entanto, há uma origem mitológica para essa narrativa da miséria. Começas pela expulsão de Adão e de Eva do Paraíso, com uma tríade de diabos a perverter a obra de Deus.

FMR – Agrada-me a ideia de figura, o corpo do actor entra na equação desde o começo da invenção. Nas gravuras dos autos isso vai claro, as imperfeições e as precisões dos actuantes são a carne do dispositivo cénico como um todo animado – há aqueles que jogam a presença e um “a si mesmos”; e outros mais capazes de metamorfose. Essa ideia do instrumento e do sujeito na pessoa interessa-me, isso aposta inteligência nas possibilidades imaginativas da escrita. Essa via nos antípodas do mimetismo – estás sempre a ouvir “isso não existe”, “na realidade não há nada assim”, “onde é que se viu uma criatura com uma cauda na testa?” – puxa-me para as escritas, o que não significa que não goste de cenas hiper-realistas, como Ella, por exemplo, em que uma cabeça e um comportamento dissidentes são esquadrinhados até ao pentelho. 

Ao definir um tema aqui, não procedo senão por metodologia. Há que pegar no complexo – e o objecto cénico é-o, este, de modo que vai além do inesperado, não há controllers do sentido, há intuições que tentam ser inteligentes e como sondas num real que é mais obscuro que límpido, como esse fundo do mar em que se perde a vista e se caminha por ouvido, através de sondas. Podíamos dizer que é a precariedade da existência em função, até, de catástrofes naturais, a condenação de cada um ao seu limite, à sua pele. As individualidades são, aqui, em Vicente, quase proezas. É linda a relação dos moços de esporas entre eles, amizade. Parda, por exemplo, que fala muito das amigas, é uma alegoria. Ela é o corpo de uma sede dependente que nos fala da fome e até da peste. Podemos ler isso no Mortinheira, sem colheita que o alimente e a terceiros, na Feiticeira a quem proibiram “obras pias”. Ela dá consultas de psicologia, expondo-se.  Enfim, os temas são os da quebra de fronteiras. 

HF E o problema da caridade cristã?

FMR – Excelente arremesso, o teu, rigoroso. Indagar a caridade cristã não seria a propósito, apesar das sopas dos pobres, das fábricas sociais de bairro para indigentes, verdadeiramente estatuídas para conforto dos mercadófilos liberais e dos solidários. Há quem o faça sem pensar que os pobrezinhos têm o papel de ser pobrezinhos e nenhum outro. Que seria do mundo sem os pobrezinhos? Sem a fome e sem o frio, coisas que dizem querer erradicar em partes do mundo, há séculos e décadas, uma mentira monstruosa.

HF Que seria do mundo sem os pobrezinhos? Perguntas bem. Penso que essa é uma questão central. A chave para a compreensão de “Os Míseros” passa pelo modo como cada qual responde a uma pergunta dessas. Direi que os pobrezinhos são, desde sempre, uma extraordinária fonte de rendimento na indústria do consolo. São eles que justificam a esmola, o dízimo, a promessa. À erradicação da pobreza corresponderia o fim da religião, mas também da política e da economia. Os pobres fazem falta, são mão-de-obra barata. Os pobres fazem falta, fundamentam o Estado Social. Os pobres fazem falta, pretextam a misericórdia. Portanto, os pobres são um peso fundamental na balança que garante a um por cento da população os 80% da riqueza mundial.

FMR – Voltando à vaca fria: “Os Míseros, em Gil Vicente, são, como descobri no caminho – tinha mais a ideia da exposição agreste, da ferida a mostrar sem penso –, reivindicativos. Todas as figuras têm programa, são mais capazes do que pensava. Vicente é um génio e, ao construir figuras para o riso de terceiros, põe em cena a verdade dos primeiros que descreve. Isso surpreendeu-me em pleno voo.

HF Descuido dramatúrgico?

FMR – Talvez, mas também o prazer da cabotagem. Detesto a ideia de espectáculo, de algo que se impõe pelo poder da tecnologia, decibéis a mais, vídeos por cima e por baixo, etc. A rarefacção, no uso desses meios, e o protagonismo das falas e dos corpos precários em presença dão uma força ao que fazemos que é contrária das estéticas publicitárias do escândalo e do choque pelo choque, gerando essas emoções de que falas no “S.N.S.”, enquanto êxtases de adrenalina psíquica no nada, como se fôssemos, nós mesmos, consumidos pelo excesso espectacular, engolidos até à náusea. O teatro é grego, o espectáculo é romano. 

E estas coisas colam com o “S.N.S.”. Estranho objecto, o teu! Inesperado, o que só me pode agradar e desafiar. E creio que fui alargando propósitos teus, aprofundando hipóteses, caminhando dentro do que sugeres, radicalizando sentidos. É isso encenar. E fica clara – já estava na cena final – a ideia de que estamos todos no mesmo barco sem rumo e que, de facto, não há anjos. A crítica da indiferença é fundamental, do conformismo.

HF Quero reforçar isso mesmo. O facto de a encenação aprofundar e alargar propósitos implícitos no texto. Não falo já da própria concepção do texto, que foi sofrendo adaptações sobre as primeiras leituras de mesa dos “Prantos, Lamentos, Loas e Pregões”. Ainda antes, o aprofundamento da oposição entre Martinho e Caronte a partir da linguagem de cada um, que sugeriste num dos muitos emails trocados. Caronte, que era originalmente um imparável motor noticiário, ganhou redobrado sentido com a encenação, ao colocar-se o impulso noticioso ao serviço de uma multinacional com nome de rio avernal. Em Inglês, respeitando a mais básica retórica do marketing na actualidade. E não podemos perder de vista que Caronte lida com a morte. É um comerciante de mortos que ascende ao mesmo plano dos diabos, no primeiro painel. “Vai ficar tudo bem!”, diz ele, antes de sair de cena. A própria ilha, naquele cenário em tons pop, progressivamente convertida em caos, lixeira e ruído, ganhou uma consistência que primitivamente repousava na ideia de paraíso perdido. Deixou de ser o paraíso perdido, o qual Martinho ambicionava, para passar a ser, na linguagem de Caronte, o pardieiro em que estamos todos metidos. Para já, é o que temos pela frente.

Fábio Costa como Caronte, em “S.N.S.” (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

FMR – Pois, a tua ilha não poderia ser a de Thomas Morus, tão geométrica e perfeita. Ela é a-utópica, digamos. E vai-se enchendo de lixo, pela ocupação selvagem que sofre. O que mobiliza, finalmente, uma sociabilidade possível acaba por se determinar pela doença. Então, as miúdas são enfermeiras. Elas que não viam mais do que os auto-retratos ou selfies nos seus ecrãs de bolso – uma missa de imagens também – para alimento desse vazio, a tempo inteiro. A morte do telemóvel em cena e o seu ressuscitar para a cena final – enfim, usado num uso adequado – é um prodígio cénico.

HF Aqui perto de casa, dormia, há dias, um casal no átrio de um edifício abandonado. Há semanas, dois indivíduos dormem num carro estacionado, junto de uma habitação social com fogos devolutos. Não é preciso irmos para Lisboa ou para o Porto: a miséria está patente no nosso bairro, assim como as contradições, os paradoxos e as assimetrias. Porque dormem num carro ou no átrio de um edifício estas pessoas, quando ao lado delas há habitação abandonada? O que podemos fazer? Desviar o olhar como o Martinho de “S.N.S.”? Entreter o olhar, como as Martas? Pregar aos peixes, como o Negacionista?

João Costa como Martinho, em “S.N.S.” (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

FMR – Hoje, essa indiferença e esse conformismo sediados num narcisismo acéfalo e num individualismo tribal – vejam-se as famílias: os seus são sempre os melhores, são publicitados, elogiados, fofinhados – constroem a indiferença e mesmo o desprezo, como sistema. Além dos fechamentos que bem mostras no teu texto, cada um metido no seu horizonte… Afinal, um beco, mais do que um caminho possível. É o fim das possibilidades pelo lado também do alcance mental, da submissão ideológica aos ditames de todo o tipo de unilateralidades, sejam as da alienação mais comum, sejam as religiões mais fechadas, cegas.     

Portanto, o que nos levou para uma lógica mais agressiva e menos de “expostação” – inventei, porque “exposição” não me serve, aqui – foi o caminho posterior aos textos, com certeza também os actores e actrizes. Potencialmente, autores por vias ínvias e subterrâneas, por intuições extraordinárias bem fertilizadas na medida do possível. É esse o meu papel, também. Está a dar-me um grande prazer fazer este espectáculo. E, obviamente, não fazia nenhuma ideia onde pararia, como não faço acerca de onde chegará. Vamos ver! 

HF Se o “conforme-se ele comigo”, de Mortinheira, pode ser o leitmotiv do primeiro painel de “Os Míseros”, então em “S.N.S.” talvez essa ideia de que não há inocentes seja o motivo condutor. Somos todos culpados de tudo e de todos. É uma citação de Fiódor Dostoiévski, perscrutada por Emmanuel Levinas, em “Ética e Infinito”. Já agora, Levinas diz que somos culpados, não por uma qualquer falta que tenhamos cometido, mas pela responsabilidade que é estar ligado ao mundo. Esta noção de interdependência, fundamental no funcionamento de uma sociedade, é o que parece faltar à solidariedade, neste tempo que é o nosso, reflectido nos inocentes a que uma das miúdas aponta o dedo, no final.

Fábio Costa é o pobre do Auto de S. Martinho. (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

FMR – O “S.N.S.” está lá, seja como for, no “Compromisso” citado, indirectamente, no “Auto de S. Martinho”, em que surge com uma extensão, como se toda a sociedade pudesse ter resposta num regime semelhante. O que se chamaria a tal regime? Democracia contra mercado, pelo menos este, que serve apenas os interesses do financismo, das oligarquias, do narcotráfico, da riqueza concentrada em um por cento dos humanos. Nada mais desumano que este capitalismo. Que teremos pela frente?

HF “O futuro a Deus pertence”, diz quem tem fé. Eu limito-me a constatar que o futuro, sendo incerto, tem qualquer coisa de previsível. Com a morte de Deus, decretada no final do século XIX, não morreram as igrejas, que são muitas e para todos os gostos. As igrejas, está estudado, sobrevivem da necessidade de resposta para a precariedade da existência. As pessoas acreditam em Deus porque morrem, sentem essa precariedade na sua condição existencial absurda. Mas também porque lhes falta conforto diante da desgraça. Procuram no céu o que não encontram na terra: consolo. Buscam o tal sentido da vida problematizado por um Martinho, que diz ser certa a morte, efémera a travessia, quando o mais lógico, num santo, era negar a morte pela afirmação da vida eterna.

FMR – Uma das coisas que mais me puxa nesta criação, e devemos mesmo dizer processo, são os seus dois tempos. Na primeira ficção, quinhentos. Na segunda, o início do segundo milénio. Um clássico e um contemporâneo em diálogo. E se damos com a actualidade do clássico – há uma pedra de toque para o medir, as reacções vivas nos ensaios – também encontramos a profundidade histórica do contemporâneo, o modo como as suas actualidades se fundam num antes que torna raiz o que vem à superfície. A superficialidade das meninas é tão posta entre aspas no ataque com que as desenhas que nos fala, sempre, do que está atrás e as molda naquela imago-dependência viral que nos assola. A filosofia de Martinho é bem ancorada no seu passadismo anacoreta fora do tempo, no apego a uma comunhão Natureza/eu e Cosmos, que converte a fuga da multidão na utopia de uma suspensão do tempo. O negacionista, a caricatura de um extremismo com que todos os dias nos confrontamos, e em relação ao qual a covid-19 funcionou como um revelador, no sentido dos químicos da fotografia analógica.

Vítor de Sousa, desempenha o papel de negacionista, em “S.N.S.” (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

Esta relação entre dois tempos é, para mim, axial, vem das lições de Bertolt Brecht sobre a adaptação dos clássicos e do modo como tentou refazê-los, a sua Antígona, por exemplo, metida no meio do nazismo quotidiano. Entendo que a profundidade dos clássicos está nesse tempo em que sobrevivem vivos, ao ponto de nos continuarem a dizer coisas; e sempre outras, em cada avanço da História. Essa ideia, de João Calvino, de que “é material ao que voltamos, sempre”, é muito clara. E lá voltamos para dizer coisas que diz e que ainda não foram ditas. Nesta “encena-versão” do Pobre, encontro isso. É um pobre empurrado pelo Mortinheira. Foi um texto que propulsou a encenação e a sua semântica processual. Aquele “conforme-se ele comigo” é um “grito do Ipiranga” existencial que professo em fé laica. Vivam as heresias!

HF O que mais me impressiona é o círculo que se cumpre entre o avistamento da morte, com Adão a anunciar ao Mundo a “senhora dos vermes”, e a última frase de “S.N.S.”, dita por uma das Martas: “Inocentes na terra, só os vermes.” Curiosamente, a actriz que diz isto é a mesma que faz de Eva. No fundo, a história da humanidade é a história da perda de inocência. Há muito me interrogo o que teria sido de nós, enquanto civilização, se o Deus do “Génesis”, em vez de dominar, nos tivesse mandado amar ou respeitar a Terra. A bênção é esta: “encham a terra e dominem-na.” As palavras têm, de facto, um poder tremendo. Imagina se, em vez do verbo “dominar”, estivesse o verbo “amar”, “respeitar”, “contemplar” ou qualquer outro que não passasse por esse exercício de poder implícito no acto de dominar.

FMR – Em HF, Mortinheira encontra-se com Marta 2 e com os indiferentes, os passivos consumistas, os narcisos, os entretidos, numa sociedade dos possíveis humanos em mãos próprias, que tomam o lugar da omnipresença divina. É a massa amorfa que é omnipresente, os alienados sorridentes e simpáticos, os encantados pela caca dauphin, o rebanho. O peso da indiferença é a montanha que impede a transformação e que alimenta o mesmo estado do mundo que é referido nos disparos de Caronte, traficante de almas que comercia vivos-mortos.

HF É também por isso que gosto tanto do Mortinheira. Quando, sem perceber a quem Deus possa ter saído tão tençoeiro, diz “conforme-se ele comigo”. Tem uma força tremenda esta personagem, que, no seu gesto blasfemo, podia igualmente encontrar parceiro no Martinho, de costas voltadas para a civilização, se não houvesse em Martinho uma réstia de interesse pelo que se passa no Mundo. Mas Parda, ao fazer o seu enterro, por exemplo, também liga com os últimos desejos nas personagens de “S.N.S.” – embora, aqui, sem testamento, o registo é outro, que eu diria de “lamento cínico”. Por “cínico” entendo essa ironia capaz de reduzir ao absurdo as verdades absolutas. Há que reabilitar o cinismo, fazer-lhe o elogio, o cinismo de Diógenes, de Crates, de Hiparquia, que a historiografia oficial transformou em anedota. Pois claro, eles riam dos axiomas, desmontavam a verdade com o riso, punham em xeque os deuses, tal como o grande Mortinheira.

FMR – Agrada-me esta misturada de tempos e o deambular, nas duas ficções, pelo mesmo domínio dos tempos históricos, referências centrais de outras possibilidades que também surgem pela referência a outras culturas: o índio em Martinho, uma blague que de cómica torna muito vivo o seu regresso; e a Feiticeira, por exemplo, uma cultura mezinheira e outros feitos telepáticos – a hipnose é uma terapia – que dão estranhos resultados, como aparecer um diabo em cuecas… 

HF Concordo em pleno contigo, no modo como ligas o clássico e o contemporâneo. Eu diria que no clássico repousa a hipótese de futuro, enquanto no contemporâneo vêm à tona as raízes do passado. “S.N.S.” sobrevive dessa intertextualidade em que se apoia, não para fundamentar o que pretende dizer, mas por consciência de que o moderno está intimamente ligado ao antigo.

A genialidade de autores como Gil Vicente verifica-se, precisamente, na sua extraordinária actualidade. Não me refiro apenas aos temas, às personagens-tipo, aos enredos. Há coisas de época que fazem sentido de outra maneira, outras já não farão assim tanto. Mas sublinho, por exemplo, e para citar o excelente ensaio que Óscar Lopes lhe dedicou e tu me deste a ler, o modo como, em Vicente, o absurdo é sondado, o nonsense, a alucinação, o sonho, o caos de citações, a enumeração caótica, são recursos colocados ao serviço do significado. Muita gente pensa que foi o surrealismo que inventou estas coisas, talvez por ignorar que estas coisas já estavam todas em Vicente, como, de certa forma, também se encontram em Dante, em Vergílio e em Homero.

Outro aspecto importante, e gostava de te ouvir sobre isso, é a possibilidade de um equilíbrio entre uma “arte erudita” e uma “arte popular”. Isto tudo entre aspas, pois se há coisa que detesto é o rótulo que reduz o que é complexo a algo fácil. Vicente escrevia para a corte, ainda que não se eximindo, de um modo muito inteligente, de satirizá-la. Para quem trabalhamos nós, hoje? Quem é a nossa corte?

HF Que públicos, hoje? Não teremos alternativa à pequena burguesia universal. O consumo homogeneizou as classes. Num desejo padronizado, tudo é o mesmo, a contrafacção e a marca, de modo que tudo rola em torno da integração num massivo em que as pessoas se reconhecem como pertencendo a um mesmo meio, pela roupa, pelos penteados, pelas tatuagens. Sempre up to date, cada vez mais pós-modernos, usando símbolos aparentes de outras culturas, o que lhes retira veneno próprio: o protesto. O estilo fora de sítio é, aqui, a assunção do corpo como montra publicitante. E, nesse massivo, colhemos um sector que ainda não desistiu do presencial, de um modo de estar em assembleia diante de outros que nos contam qualquer coisa e que mantém dimensões de câmara e uma pulsão crítica, um inesperado, diria. Uma sala de seiscentos espectadores, evidentemente, não é uma sala de 60, mas está muito longe de ser uma redução à escala de uma “sala” de sessenta mil.  

Esta questão de termos caminhado para uma democracia de massas em nome da democracia tem sido fatal. Com o massivo, vai-se a democracia, pois esta não é a mesma única reconhecida oportunidade para todos e a ditadura de uma falsa igualdade, além das diferenças e das assimetrias de raiz. Com o massivo, atingimos um novo analfabetismo em expansão crescente e um gosto que, multiplicado pelos likes mecânicos da simpatia, é sempre para-viral. O viral virou meta ansiada, é um negócio. Mostrar a coxa a dialogar com esse destino de aviário que colhe a massa, tudo embrulhado num glamour pimba, coloridíssimo e arrojado, pedaço de carne bem exposto, nada a ver com a nudez sem nenhumas aspas.

HF Então para que democracia devíamos caminhar?

FMR – A questão de fundo é: o que é que se distingue? No domínio da língua, na consciência dos paladares, no conhecimento das formas, na percepção de que na realidade se move um presente sem saída? Quem lê o que lê? E lê o quê? Já o Mário Barradas falava do nivelar por baixo como o desastre da democracia e, então, as tais elites – quais? – são integradas por gente que não lê nem pensa, que leva tudo pensado em pack’s de pronto a pensar; e só assim sobe na vida. Os níveis de exigência crítica são nulos. E o que fazemos é o contrário disso.

Somos o PT, o partido de todas as causas, o do Teatro. Pois, somos constantemente, há milénios, um duplo reconstruído ficcionalmente do real, espelhando-o de modo enviesado, não mimético – a mimese cega é acrítica. Em nós, todas as diferenças e todas as semelhanças são parte; o íntimo e o político. Somos o lugar de todas as possibilidades de reler os reais nas suas diversidades e antagonismos, no obscuro e no excessivamente posto à luz que cega. Do Ésquilo, de “Prometeu Agrilhoado”, ao Strindberg, da “Dança da Morte”, do “Auto da Índia” a “Playhouse”, de Martim Crimp, textos que acasalam gente em épocas separadas no tempo, mas que referem um destino entre paredes que tem algo semelhante, somos trans-históricos e heterotópicos.

HF Falas do que somos. Eu tinha perguntado para quem somos. Quem é a nossa corte?

FMR – Na realidade, somos sempre uma entidade à margem, a figura que nos tem é o bobo da corte – não diz ele as verdades? –, o parvo vicentino – não diz ele os disparates esclarecedores?, o tal nonsense que desmonta verdades definitivas? – o clown Valentim, com o seu absurdo tão agressivo – na “Comunhão Solene” a criancinha com o fato de marujo não tem já trinta anos, como agora, que saem da casa paterna aos 34 anos (a média). Também Beckett a fazer de Krapp, falando do homem lixo, esse arrogante narciso, esta Parda que trabalhamos, esta Feiticeira, este Mortinheira, estes diabos tão escritos como estatutos sociais, como poderes em relação pré-estabelecida, nada de novo. E este Caronte, estas Martas, este Martinho – com quem muitos sonham, ao sonharem esse desejo de solidão, na Natureza, longe da pressão urbano-social massiva, do lixo crescente (não foi assim que estivemos classificados no ranking? – nem sei porque não nos apelidaram de “merda”). Pois, eu gostaria de ter na sala os correspondentes destes que estão na cena, sabendo que estes da cena não são assim tão excepcionais que só à cena pertençam. Na cena, isso sim, aparecem com a sua verdadeira face, ao contrário do jogo de aparências que o quotidiano promove, como naquele beijo que surge no fim do monólogo da Marta 2. 

Beatriz Antunes e Mafalda Taveira são as Martas, em “S.N.S.” (© Margarida Araújo – Teatro da Rainha)

Quem serão os espectadores? Uma misturada de gente da chamada classe média a quem as necessidades intelectuais ainda tocam, bem como o prazer de conhecer; pessoas ainda não engolidas pela dimensão omnipotente dos fenómenos virtuais e espectacularizados pela multiplicidade infinita dos ecrãs, das imagens e das bandas sonoras, numa simbiose absoluta, imperial. Vivemos no império do ecrã, com os pés num chão que desconhecemos cada vez mais, pois dele nos afastamos cada vez mais.

.

24/07/2023

Siga-nos:
fb-share-icon

Henrique Manuel Fialho

Está representado em diversas antologias de poesia e conto publicadas em Portugal, no Brasil, em Espanha e em Marrocos, tendo colaborado igualmente com textos ensaísticos, poemas e ficções incluídos em variadíssimas publicações colectivas.

Outros artigos

Share
Instagram