Incitamento ao Bidencídio

 Incitamento ao Bidencídio

Duas coincidências: ofereceram-me o “Testamento poético de Pablo Neruda – Incitamento ao Nixoncídio e Louvor da Revolução Chilena” (com, sublinhe-se, brilhante tradução de Alexandre O’Neill), justamente na altura em que, exumado o corpo do poeta, se confirmou a sua morte por envenenamento, deitando por terra a teoria romântica da morte por desgosto, doze dias após o golpe militar de Pinochet, na casa de Isla Negra.

(Direitos reservados)

Um facto: serão raros os regimes nascidos de processos de tendência esquerdista que não tenham sido directa ou indirectamente afectados pela ingerência dos Estados Unidos da América (EUA). Foi assim, na maior parte dos países da América Latina. Foi assim em vários países americanos. Aconteceu também, como se sabe, na Europa, por meio da operação Gládio, com a Itália e Portugal, entre outros países. Quem não for autista, tenha coragem de recuperar, numa réstia de decência, o tempo anterior ao 25 de Novembro de 1975 e que culminou – é já uma opinião de um optimismo inabalável – nesse golpe “reparador” da democracia portuguesa.

Não me restam dúvidas – e poderei parecer arrogante ao afirmá-lo – em declarar que nenhum outro país, além dos EUA, teve uma política externa tão perniciosa ao longo do período histórico dos séculos XX e XXI. O nosso provincianismo é essa não percepção. É, repare-se, a própria política desportiva norte-americana quem determina que os atletas russos e bielorussos devem participar nos Jogos Olímpicos de Paris (2024), desde que sob bandeira neutra.

(Créditos fotográficos: Reuters – record.pt)

É o regime norte-americano quem demarca o que constitui aquilo que nomeia “eixo do mal”. São recentes as declarações de Antony Blinken a ameaçar a China sobre rearmamento da Rússia. A história do balonismo chinês é risível e apenas admite contornos sérios se nos perguntarmos que tipo de espionagem sistemática tem sido praticada pelos serviços de inteligência norte-americanos, ao longo de anos, sobre alvos como o Irão, a China, a Rússia, a Índia, o Paquistão, sem contar com outros incluídos na lista dessa organização terrorista que dá pelo nome de Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

E a pergunta impõe-se: que autoridade moral tem e terá o regime norte-americano sobre o que se produza em matéria geo-estratégica e militar, depois de dezenas de aldeias dizimadas por napalm ou de duas bombas atómicas largadas num país do Pacífico? Que autoridade moral tem o regime norte-americano para reduzir a Rússia a um estado pária, num momento em que aquele mesmo regime instiga o negócio da guerra, prefere ignorar toda a eventualidade de paz e lucra às expensas da emergência do seu gás liquefeito pela Europa?

(www.brasil247.com)

Não é possível resumir este rosário de indecência e de hipocrisia em poucas linhas, mas, se recordarmos a sabotagem do Nord Stream (leia-se Seymour Hersh), se atentarmos à pressão para que a Rússia (afinal, essa gente que travou Napoleão e Hitler) seja excluída da ordem europeia, se atentarmos à manipulação diária dos órgãos de comunicação de massas, não será abuso acentuar a ideia de que os EUA têm uma implicação hegemónica exclusiva à escala global, condenando a Europa ao seguidismo impotente e humilhando estados menores – além de que o G7, amplamente controlado pela influência estado-unidense, ameaçou impor sanções aos países que providenciarem apoio militar à Rússia.

Seymour Hersh (Créditos fotográficos: Divulgação – brasil247.com)

Por cá, continua a haver gente, nessa linha, a denegrir a Rússia com a mentalidade adolescente de que o país perdeu as delícias da McDonalds e da Coca-cola e a inflacção atingiu ali valores inesperados, facto desmentido pelo próprio Josep Borrell, ao admitir que o produto interno bruto (PIB) russo surge muito acima do esperado, sustentado por receitas extraordinariamente altas, provindas do petróleo e do gás. Ora, dizem a imprensa e relatórios independentes que os EUA não constituem, na actualidade, um país atractivo para ali residirem elites de qualquer ponto do Mundo, que no Reino Unido aumentou significativamente o número de indivíduos a recorrerem a bancos alimentares (em que se incluem professores; ver os resultados do Independent Food Aid Network com o The Observer), que as vagas de sem-abrigo nos EUA aumentaram (foi mesmo desmantelado um acampamento de sem-abrigo a poucas centenas de metros da Casa Branca e estima-se em 600 mil o número de sem-abrigo na maior economia do Mundo). Isso não invalida os níveis de pobreza que sempre existiram na Rússia, mas que nenhuma propaganda alguma vez escondeu, sob o lema de “sonho russo”.

Apesar de medidas aprovadas com vista à criação de centros de acolhimento, Los Angeles tem tido milhares de sem-abrigo e os proprietários de imobiliário têm oferecido resistência à sua construção. (Créditos fotográficos: LA Times – abrilabril.pt, Novembro de 2019)

Entretanto, o jornalismo português que cobre esta guerra e sabe como ela é uma guerra de percepções pela qual se ludibriam os patetas, aderiu, quase na totalidade, à linha de defesa e de combate ucraniana, servindo-se, precisamente dos idiotas de serviço, entre comentadores afamados na SIC e jornalistas que impedem majores-generais de tecer os seus juízos e previsões (como aconteceu já a Carlos Branco, na CNN).

Em primeiro lugar, deveria haver quem dissesse a essa gente algumas verdades. Primeira: não é possível vencer a Rússia – é um povo que fez ajoelhar a Wehrmacht e que espera o que for preciso, com uma paciência chinesa; quando a Rússia tiver de ser derrotada, o Mundo será derrotado com ela.

Segunda: o joguete à frente dos destinos de Kiev, e que sacrificou o seu povo, é não mais do que um ditador como muitos outros, que pactuou com forças neonazis e, na sua visão sumamente democrática, ilegalizou acima de uma dezena de partidos políticos.

Onze partidos foram suspensos em março ao abrigo da lei marcial, e são agora proibidos pela justiça ucraniana por “atentarem contra a soberania do país”. (Créditos fotográficos: SOPA Images – expresso.pt/internacional)

Terceira: as narrativas apaixonadas e a apelar ao sentimentalismo menos inocente, como as que, todos os dias, nos são relatadas, por exemplo, pelo correspondente da RTP, António Mateus (um dos jornalistas ocidentais com ordens estritas dos respectivos órgãos-editores para darem uma orientação pré-estabelecida às suas reportagens), a assinar uma espécie de folhetim de guerra sob a estratégia ideológica da generalização (métodos dedutivo e indutivo profundamente aplicados), podem ser contrapostas com relatos da barbárie das forças armadas ucranianas no Donbass (o bairro de Kuybyshev, a escola de Yenakiyevo, etc.), sobre áreas residenciais, incluindo escolas, zonas comerciais, restaurantes e parques infantis.

Foi assim, por exemplo, que se teve conhecimento das duas meninas de Gorlovka (reportagem irrepreensível de Bruno de Carvalho), atingidas num parque infantil (uma, de sete anos, morreu no local; a outra, Polina, perdeu um braço e uma perna, matéria mais do que suficiente para o jornalismo sensacionalista explorar, se fosse o caso).

(Créditos fotográficos: Sergey Dolzhenko/EPA – observador.pt)

As cidades mais bombardeadas pelas forças ucranianas são Donetsk, Gorlovka, Makeevka e Yasinovataya. Para além disso, ficámos cientes de que o exército ucraniano força homens a uma sistemática “mobilização regular” (algo que apenas era atribuível aos Russos), diante dos gritos das suas mulheres e usando métodos de torção. E ficámos a saber ainda que os soldados ucranianos executam soldados russos capturados e desarmados, além de amarrarem homens a postes, sob acusação de colaboracionismo com forças pró-russas, estando tudo registado. Hipócritas, oportunistas e falsos moralistas? Mais, muito mais. Mas as percepções, como o jornalismo as produz, são outras.

Quarta: a força aérea russa entregou mais de 20 toneladas de carga humanitária à Síria e equipas russas de ajuda humanitária actuaram na Turquia – alguém deu conta do assunto?

Quinta: apenas desembaraçados da teimosia norte-americana em armar a Ucrânia será possível chegar a um processo de paz. Não se trata de sensatez nem de medo, mas da ordem inversa.

Mísseis HIMARS (Créditos fotográficos: dw.com)

Para lá dos assomos dos idiotas que crêem ver na Ucrânia o baluarte de uma democracia, o preço dos mísseis Javelin e HIMARS, dos canhões Howitzer e dos tanques Leopard 2 fala, a todos os níveis, mais alto, porque a razão, por si só, não é eficaz. E isso, Deus nos livre, tem tudo para acabar mal.

A condecoração de Zelensky com o Grande-Colar da Ordem da Liberdade não pode ser vista senão como o resultado de uma desgraça colectiva nacional, que é a do topete e da ignorância. Aliás, aproveitando a indigência geral: “O controlo e a gestão dos media é um factor decisivo para a OTAN ganhar uma guerra.” Não sou eu quem o diz. É dos livros.

São raríssimos os órgãos de comunicação fiáveis e pluralistas. Ninguém sabe, ao certo, como sobrevivem, no meio desta fumaça de desinformação.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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09/03/2023

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António Jacinto Pascoal

António Jacinto Pascoal (nasceu no ano de 1967, em Coimbra) é mestre em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, especializando-se nas obras poéticas de Nicolás Guillén e José Craveirinha. Estreou-se, em 1991, com «Pátria ou Amor» (Prémio da Associação Académica de Coimbra, prefaciado por Agustina Bessa-Luís). Ensaísta, poeta e contista, surge editado em variadíssimas antologias poéticas, é prefaciador de antologias e autores diversos, e traduziu a obra poética da chilena Violeta Parra. Publicou «Os Dias Reunidos» (1998), «A Contratempo» (2000), «Terceiro Livro» (2003), «No Meio do Mundo» (2005), «As Palavras da Tribo» (2005), «Cello Concerto» (2006), «Pátria ou Amor» (2011) e «As Sete Últimas Palavras» (2017), bem como «Mover-se o Fogo» (2018). Poemas seus estão traduzidos em Inglês e em Finlandês. Em 2018, editou o álbum fotográfico «Banda Euterpe de Portalegre – A Visão do Som». O conto «Os Joelhos do meu Pai» foi primeiramente editado na antologia «Contos da Língua Toda» (em 2018).

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