Incomunicabilidade

 Incomunicabilidade

(© Big Brother Célébrités)

(*)

Quando os comerciais das empresas de telecomunicação a operar em Portugal tentam vender-me um novo pacote de Internet, televisão e voz (com mais velocidade, mais canais, mais tempo para chamadas e mais mensagens de texto), eu esquivo-me dizendo que aderiria ao novo contrato se este oferecesse, como extra, duas ou três horas a mais por dia.

Entre os mais de trezentos canais de televisão a que já posso aceder, um – que descobri há pouco tempo – vigia, quase em permanência, uma casa onde estão voluntariamente enclausurados, em convívio, homens e mulheres tidos como sendo pessoas famosas. Caí lá recentemente, quando o foco da emissão era uma senhora famosa, sentada num banco de exterior, a fumar e a sacudir a cinza do cigarro para todo o lado, raramente para um cinzeiro.

Também lá estava um futebolista a manifestar apreensão pela possível opinião que o público pudesse estar a formar dele. Este atleta outrora famoso resolveu gravar uma mensagem de vídeo a pedir que o público o não nomeie para ser expulso da casa. Deduz-se que o público pode, provavelmente com uma chamada telefónica, expulsar um dos famosos residentes.

(www.nit.pt)

Naquele canal da vida que passa na casa vigiada, vi também uma outra senhora em exercício de marcha num desses tapetes de ginásio e ouvi, em directo, o desabafo da senhora famosa que fuma: “A gente sai daqui maluca. Isto é terapia. Aqui em casa, é terapia. Lavar louça. Falar sozinha. Correr vinte quilómetros depois de não ter dormido.”

Um senhor que transporta, possivelmente por castigo, dois cartazes ligados entre si, um nas costas e o outro no peito, entrou em cena, logo seguido de uma terceira senhora que vai direita ao frigorífico para retirar uma garrafa, parecida com as garrafas de litro e meio dos refrigerantes, emborcando o que esta continha.

O futebolista disse que o vídeo que ele queria gravar não estava a sair como ele gostaria. Vários famosos bocejaram. Reparei que nem todos punham a mão na boca quando bocejavam. Transparecia um tédio generalizado na casa quando tocou uma sirene, era meio-dia em ponto, e eu mudei de canal surpreendido e envergonhado por ter estado mais de duas horas a olhar para aquela casa.

(maissemanario.pt)

Na surpresa, desconfio que estes programas de entretenimento favorecem e consolidam uma civilização do espectáculo em que, mais facilmente, cresce a desinformação e a iliteracia mediática que a alimenta.

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(*) Artigo no âmbito do programa “Cultura, Ciência e Tecnologia na Imprensa”, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa.

10/10/2022

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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