Índios e “cowboys”

 Índios e “cowboys”

A História não é feita de atos isolados. Uma revolução, uma guerra ou uma lei ajudam a criar capítulos nos livros escolares, mas nada muda de um dia para o outro. Qualquer cultura é o resultado de séculos de pequenas mudanças em cadeia que nos trazem até ao presente e é por isso que é tão importante conhecer o passado: de muitas maneiras ainda o estamos a viver.

No caso dos Estados Unidos da América (EUA), o sentimento por detrás de uma multidão maioritariamente branca que se sente no direito de invadir o Capitólio porque não gostou do resultado das eleições não nasce de um dia para o outro, nem de uma década para a outra. Exemplos desta lógica estão espalhados por toda a história do país.

Por exemplo, a existência da doutrina do Destino Manifesto (“manifest destiny”), em que se considerava que o povo americano era excecional e tinha o direito divino de expandir o seu território e deslocar as nações Índias, resultou numa das grandes tragédias da humanidade: o Trilho das Lágrimas. Milhares de índios foram obrigados a abandonar as suas casas e mover-se cada vez mais para o interior bravio e pouco explorado. É um dos primeiros exemplos onde o capitalismo se aproveita de uma guerra e as empresas encarregues de ajudar com a mudança acabaram por dar poucas condições aos deslocados. Milhares morreram e os acordos assinados foram sendo alterados para dar cada vez mais território aos “civilizados”.

Outro é a guerra civil, que ficou na história como uma das grandes vitórias contra o racismo, mas o fim da escravatura não impediu que poucos anos depois muito voltasse à estaca zero e a segregação fosse uma realidade que durou até ao século XX. E ainda hoje existem, nos EUA, especialistas em gerrymandering, a “arte” de dividir zonas de voto de maneira a beneficiar parte da população — e limitar a restante no que diz respeito a um ato eleitoral. Por isso, mesmo com guerras e revoluções, as coisas não mudam de um dia para o outro. Contudo, o passado é só uma parte da questão. A outra são as pessoas e como veem o mundo.

Os problemas da sociedade são cruéis, complexos e complicados de resolver. Ninguém quer pobreza. Ninguém quer gente a passar fome. Contudo, perante um problema complexo, é mais fácil evitar a complexidade, focar-se nas diferenças e não nos problemas reais. Só assim se explica que partes tão representativas da população voltem a cair na armadilha do fascismo e do populismo.

O populismo traz respostas fáceis a problemas difíceis. É melhor culpar “os ciganos” ou “os drogados” que de assumir de frente os problemas de desigualdade. Não é que o sistema capitalista esteja feito para aproveitar-se das pessoas e beneficiar quem tem controlo do capital. A culpa é daqueles que andam a aproveitar-se do Rendimento de Inserção Social. Por estas observações de café, as pessoas começam a votar neste ou naquele porque ele “é que diz as verdades!”. Mas se há coisa que Trump provou é que os que dizem algumas verdades, são os primeiros a piorar tudo à sua volta.

Na senda do exemplo americano, é triste ver o ressurgir da extrema-direita (embora saibamos que é mais populista, não há nenhuma ideologia real detrás) em Portugal como Espanha. Particularmente no nosso país, em que se criou uma narrativa tão bonita à volta do 25 de Abril e da liberdade, é complicado entender o fascínio por tempos em que o país era mais pobre, mais fechado e mais burro.

Portugal tem uma relação duvidosa com a sua história, nem que seja por Salazar ainda ganhar concursos de popularidade. Pouco se fala da guerra colonial, das atrocidades dos tempos da ditadura. É mais fácil imaginar tempos áureos onde reinava a ordem e não havia défice. Tempos também em que não havia Serviço Nacional de Saúde e poucos direitos fundamentais estavam garantidos. Mas pode ser que um dia volte D. Sebastião.

As pessoas gostam de simplificar, mas há coisas que não são simples. Primeiro é preciso entender que agimos em função de uma cadeia que começou no passado. Depois lembrar-se que nada do temos está garantido. Por fim, agir: mudar a corrente da História cada dia nas nossas vidas — até porque a grande diferença entre índios e “cowboys” é a perspetiva. E, de caminho, não comprar banha de cobra ao primeiro que passa pela porta.

02/02/2021

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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