“It Doesn’t Matter. We Won.”

 “It Doesn’t Matter. We Won.”

(Crédito: Library of Congress)

“It Doesn’t Matter. We Won.” — ouvimos Trump dizer isto durante várias semanas, várias vezes por dia, num velocíssimo spot na TV, respondendo à pergunta de uma famosa jornalista norte-americana que o confrontava com as suas contradições. Trump a ser Trump. Trump a mostrar a sua queda para o autoritarismo e o fascismo.

Mas a verdade é que, para o bem e para o mal, trata-se apenas de Trump a ser um norte-americano vulgar e a veicular a ideologia que vem desde o antes da fundação do seu país: uma ideologia de raízes profundamente religiosas, mergulhada na ideia calvinista de eleição e de crescimento material, além de espiritual, que esses eleitos para aprender receberão do divino. Foi também isso que os “Pilgrim Fathers” trouxeram para o Novo Mundo.

Quantas vezes ouvimos em filmes de Hollywood o insulto “looser”? Em português soaria completamente estranho, senão até absurdo, convenhamos: “seu perdedor”! Mas é por isso que a história e a cultura de um país marcam indelevelmente a sua identidade e/ou a sua maneira de entender e de falar o mundo.

Que dizer também, por exemplo, da nossa forma portuguesa de falar de nós enquanto aventureiros e corajosos viajantes? São estes mitos que dão forma à nossa identidade — e cada país criou os seus (ainda não há muito tempo, um primeiro-ministro português falava das maravilhas de sair de Portugal!).

O “looser” é aquele a quem a oportunidade para aprender foi dada e, contudo, não o conseguiu fazer, razão para a sua miséria e/ou infelicidade.

Ainda me lembro, aqui há muitos anos atrás, jovem assistente do, então, Grupo de Estudos Anglo-Americanos na Faculdade de Letras de Coimbra, de ser incumbida de acompanhar o novo Adido Cultural norte-americano a uma inauguração de uma exposição fotográfica no Teatro Académico de Gil Vicente.

Havia, entre as fotos de cidades norte-americanas, várias imagens de gente sem-abrigo.

Primeiro, o Adido Cultural tentou convencer-me de que tinham sido aquelas pessoas “a decidir” viver daquele modo. E depois, com horror, ouvi-o pronunciar entredentes e com desprezo: “loosers!”

Demorei algum tempo, no meu percurso de americanista, a conseguir aceitar a palavra na boca de alguns amigos do outro lado do Atlântico, confesso (embora isso ainda hoje me irrite sobremaneira!). A leitura de The Narrative of Captivity and Restoration of Mrs. Mary Rowlandson, um texto do século XVII, pela mão de uma mulher da ainda colónia inglesa, ajudou.

Raptada pelos índios (que, hoje, já não querem ser chamados “nativos americanos”, simplesmente porque a “América” não é uma invenção sua), Mary Rowlandson viveu durante vários meses como sua escrava e só foi libertada porque as mulheres de Boston se juntaram para pagar o seu resgate, uma vez que o seu marido já não a queria por a considerar conspurcada.

Regressada à colónia, escreveu as memórias do que lhe acontecera, e esse texto, que depois se tornou extremamente popular, é, em tudo, revelador das bases calvinistas que haveriam de ficar por base da fundação dos E.U.A.

A forma quase sub-reptícia como Rowlandson se atreve a reconhecer alguns traços de humanidade nos seus raptores é praticamente ocultada (porque escrevia para a comunidade em que teria de voltar a viver) pelas repetidas observações de que tudo o que lhe tinha acontecido era a forma que Deus encontrara para que ela aprendesse, para que crescesse espiritualmente e, assim, tivesse direito a uma vida material próspera e segura.

Quase no final da narrativa, Mary Rowlandson escreve: “we are all gainers”.

Já no século XVIII, a doutrina do “destino manifesto” (Manifest Destiny) surge como corolário desta ideia: os E.U.A. têm agora como destino (divino) a liderança do mundo.

É por isto que não consigo deixar de sorrir quando ouço um/a americano/a falar negativamente da influência da religião em certos países.

E é por isto 
que temo que o facto de Trump ter vencido o Covid seja um factor a acrescentar ao nosso receio de que ele vença as próximas eleições.

A forma como tem falado do Covid como uma bênção que Deus lhe ofereceu para aprender, como repete incessantemente que “venceu” o vírus e como isso está subjacente à sua figura de líder devolve-nos, simplesmente, ao calvinismo que, ainda hoje, dá forma à ideologia americana.

A questão dos impostos por pagar não terá consequências de maior: afinal, ele é “anti-sistema” e isso até encaixa.

Mas talvez se as suas empresas com problemas falirem… ou se se provar que afinal não é assim tão rico e com tanto sucesso nos negócios… enfim, o mundo precisa que os norte-americanos o considerem um “looser”.

Quando isso acontecer, só temos de esperar que a ideologia americana funcione.


Graça Capinha (Americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”)

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Graça Capinha

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