Janela escancarada

 Janela escancarada

(br.freepik.com)

Tudo começa numa casa, a da avó Guilhermina, lá em Angola. Eu percebo. As casas das avós são colo onde podemos adormecer tranquilos e ser aquilo que quisermos. Eu também sonhei muito no colo da minha avó e, em Angola, acredito que se sonhe ainda mais. A cor, o cheiro, a ginga dos canucos que parecem não ter makas.

Abrindo o novo disco de Ana Moura, abre-se também uma janela. Acho que a avó Guilhermina olha para o mundo dessa janela e, de repente, vejo-me debruçada ao lado dela. Atrás da renda branca bordada aparece também a minha avó. Ela sempre gostou de rendas e de escancarar janelas para olhar o mundo.

(genius.com)

É dessa janela que contemplamos um mundo novo, um mundo em que acreditamos. Um mundo onde ritmos africanos se confundem com o fado, como hoje o conhecemos – um cruzamento com vestígios do passado, do presente e do futuro, todos juntos ao mesmo tempo. É, e que eu morra aqui, seca que nem passa de uva, se estou a inventar.

Se a tudo isto juntarmos a sonoridade eletrónica e efeitos na voz, fica tudo perdido? Acho que não. Afinal de contas, podemos reinventar o nosso estilo aos 40 anos, como fez Ana Moura e como nós gostaríamos de fazer, se a vida ainda nos permitisse, no colo das nossas avós.

O que importa é seguirmos os conselhos das andorinhas. Elas sabem voar as linhas da liberdade. E nós podemos voar tão alto, unidos na diversidade, na diferença, no desconhecido. 

Ana Moura no Super Bock em Stock. (Créditos fotográficos: Nuno Fox – expresso.pt)

Esta obra é prova disso. Além de unir diferentes musicalidades, une pessoas tão diferentes. Talvez, necessariamente à lógica, uma característica implicasse a outra, mas às vezes isso passa despercebido. Desta janela, ouve-se fado, fandango e misturam-se ritmos de semba, kizomba e kuduro.

A música e as letras expressam-se em diversas cores e géneros, tal como as pessoas, e a beleza dessa diferença permite-nos alargar o horizonte da imaginação e das possibilidades. Enfim, a liberdade de ser-se quem se é. Acho que é esse o poder da música e também era o poder que a minha avó tinha em mim.

É obrigatório ouvir este disco sem julgamentos, porque devemos morrer do amor que há em nós. E, para morrermos assim, dessa forma tão linda, temos de abrir a janela. Quem diz janela, diz peito – assim, escancarado, aberto ao mundo.

26/12/2022

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Inês Antunes

Nota biográfica em nome próprio: Nasci em 1990, tenho sardas e passei grande parte da minha adolescência a ler Saramago e a ouvir Pink Floyd. Estudei Jornalismo, Comunicação e Marketing Digital. Nunca quis ter apenas uma profissão, mas sempre soube que queria escrever. E tirar fotografias. E ter uma banda.

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