Jean Wyllys: “Quem viveu 24 anos sob uma ditadura militar não poderia ignorar um vírus como Bolsonaro”

Político, intelectual, professor, jornalista, escritor, ativista, cidadão do mundo. Hoje, aos 46 anos, Jean Wyllys é sobretudo um exilado, apartado do seu país, da sua família e de uma atividade política intensa, íntegra e – principalmente a partir de 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil – extremamente perigosa. Acossado por reiteradas ameaças de morte (num grau de violência raramente visto contra pessoas públicas após a redemocratização, em 1985), ele se viu obrigado a deixar para trás o país e um mandato de deputado federal pelo PSol, partido de esquerda brasileiro.
Vivendo atualmente em Boston (EUA), onde é professor visitante do ALARI Hutchins Center da Universidade de Harvard, Jean exilou-se do Brasil, mas o Brasil permanece nele. Vê com desassossego a escalada autoritária do presidente de extrema-direita em meio a uma pandemia que já matou milhares de pessoas no país, desvelando um governo sem norte. “O governo fascista tem se esforçado para esconder os cadáveres, apagando os números dos documentos públicos”, denuncia. E acrescenta: “Essa gente não quer diálogo, quer a guerra.”

Nascido na pequena Alagoinhas, no interior do estado da Bahia, Jean Wyllys é vítima de preconceito desde a infância. Gay sem medo de ser feliz, tornou-se conhecido nacionalmente em 2005, ao vencer o reality show Big Brother Brasil, exibido pela Rede Globo, emissora líder de audiência no país, colocando em pauta e amplificando o debate sobre a causa LGBTQ+. Poderia ter despontado para o anonimato, como outros participantes do programa, mas encontrou seu habitat na política, consagrando-se como um dos mais atuantes deputados federais do Brasil.
Lúcido, ferino e combativo, mas sem perder a ternura jamais, Jean discorre nesta entrevista – concedida por e-mail ao Sinal Aberto – sobre os mais diversos temas. Da crise causada pela Covid-19 (“a pandemia é também consequência da ascensão da extrema-direita”) aos riscos à democracia trazidos a reboque pelo impeachment de Dilma Rousseff (“essa fissura no tecido democrático permitiu a infecção fascista”). Do momento em que tomou as rédeas do próprio destino (“eu despertei um dia e tive consciência das injustiças deste mundo”) às leituras que o motivam (“estou revisitando os tijolos de que sou feito para me manter forte e de pé”). Confira a seguir.
SINALABERTO – Estamos a pouco mais de dois anos das próximas eleições presidenciais. Os políticos de centro parecem cada vez menos expressivos. A direita, extrema-direita ou centro-direita está fragmentada, com embates ferrenhos entre o presidente Jair Bolsonaro e os governadores Wilson Witzel (Rio de Janeiro) e João Doria Jr (São Paulo). No espectro oposto, não se ensaia qualquer aproximação entre as lideranças mais relevantes: Lula, Ciro Gomes, Marina Silva. Como você enxerga esse cenário ainda nebuloso? Faria alguma projeção do que pode acontecer em 2022?
JEAN WYLLYS – O breu do presente nos impede de ver ou mesmo de entrever por uma nesga de claridade o futuro. A Covid-19 tem ceifado muitas vidas e o Brasil se tornou o epicentro da pandemia. O governo fascista tem se esforçado para esconder os cadáveres, apagando os números dos documentos públicos. Aliás, os militares presentes neste governo autoritário e antidemocrático trouxeram essa prática de dar sumiço ou tornar invisíveis corpos da época da Ditadura Militar. Diante desse horror político que é também um horror econômico – vide as políticas neoliberais do ministro Paulo Guedes, que aprofundaram ainda mais as desigualdades social, racial e de gênero, aumentando o número de desempregados e famintos e tirando direitos das trabalhadoras e trabalhadores – os movimentos negro, LGBTQ+, indígena e de trabalhadores sem-teto e sem-te rra estão reagindo como podem e dentro das limitações trazidas pela necessidade de isolamento social às violências do governo fascista de Jair Bolsonaro. Em meio a situação tão complexa, fica difícil falar do futuro.

Mas, em minha avaliação, faz-se necessário, com urgência, um diálogo entre Marina Silva, Ciro Gomes, Fernando Henrique Cardoso e Lula. E Lula! Lula e PT não podem ser excluídos de nenhuma iniciativa em defesa da democracia pelo simples fato de que foram nos governos petistas que mais respiramos ares democráticos. Se os egos destas lideranças não permitirem o diálogo, então que outras lideranças iniciem o diálogo, sobretudo as lideranças femininas. Vou repetir algo que eu já disse em duas entrevistas: se os esquerdo-machos brancos não conseguem dialogar porque fazem política medi ndo o ta manho do pau, então que as mulheres assumam mais uma vez a tarefa de unir as esquerdas, como ocorreu no Ele Não [movimento de resistência ao então candidato Jair Bolsonaro no período anterior às eleições de 2018].
Que as parlamentares do PT, do PCdoB, do PSOL, do PDT e do Podemos iniciem um fórum, um espaço de diálogo, um grupo de WhatsApp que seja, mas comecem, e convidem outras mulheres que não são parlamentares, mas são lideranças. Elas seguramente conseguirão construir esse espaço de diálogo que poderá salvar o país do fascismo em 2022 pela via institucional.
O fascismo como doença política
SA – A democracia corre risco no Brasil?
JW – A democracia no Brasil está em risco desde o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff, a presidenta democraticamente eleita. Foi esta fissura no tecido democrático que permitiu a infecção fascista que levou a democracia para essa espécie de UTI, onde ela está em coma, com infecção generalizada, mas ainda com alguma chance de recuperação. Uso a doença como metáfora, nos moldes de Susan Sontag, porque acho mesmo que o fascismo seja uma doença política ou um adoecimento da política.
Para tirar o PT do poder, o vírus Bolsonaro não teria se replicado e se convertido neste câncer quase em metástase que ora ameaça matar a democracia brasileira
SA – Costumo dizer que o Brasil se desmantelou de vez quando assistiu passivamente a um deputado federal louvar um torturador em praça pública, sem ser preso ou processado por isso. Nesse mesmo dia, você, numa reação instintiva, cuspiu nesse deputado, que hoje é o presidente do Brasil. Que tipo de aprendizado esse episódio lhe trouxe? A ideia de um diálogo civilizado entre campos ideológicos opostos passou a ser algo impensável com a ascensão da extrema-direita?

JW –Você tem toda razão. A fissura no tecido da democracia causada pelo golpe de 2016 foi coroada com a apologia à tortura feita por um deputado fascista que, como um retrovírus, hospedou-se por décadas no corpo da democracia e, utilizando seus próprios recursos, replicou-se, causando uma infecção a princípio silenciosa, mas cujos evidentes sintomas foram ignorados por um sistema político em estado de negação em relação à sua fragilidade. Quem viveu 24 anos sob uma ditadura militar – só para falar da última das ditaduras militares que golpearam o Brasil – não poderia ignorar um vírus como Bolsonaro. Naquela noite de 17 de abril de 2016, o vírus deu sinal de que estava ativo e de que já havia debilitado a imunidade do corpo democrático. Por isso, ele se sentiu tão à vontade par a dedica r seu voto na sessão do golpe ao torturador Brilhante Ustra. Os partidos de direita, autoridades do poder Judiciário, entre as quais membros do STF, os imorais da Operação Lava Jato e a imprensa comercial, notadamente as Organizações Globo, Veja, Estadão, Folha de S.Paulo, Jovem Pan, SBT, Record e Bandeirantes, mas também seus sabujos nas retransmissoras e jornais de segundo escalão – todos cúmplices no golpe de 2016 – baixaram as defesas da democracia, sobretudo corrompendo o Estado de Direito com a Lava Jato, e criaram as condições ideais para que o vírus Bolsonaro se replicasse em suas milícias e seus sicários, nas máfias constituídas por pastores neopentecostais e seus fundamentalistas religiosos, nos grileiros e donos de garimpo ilegais e nas hostes de brancos imbecis e fascistas de classe média. Não fosse essa aliança e ntre set ores da elite política e econômica brasileira com as organizações criminosas para derrubar o governo Dilma, já que não conseguiam vencer o PT em eleições limpas; não fosse este grande “acordo nacional com Supremo, com tudo” – para citar o escroque Romero Jucá, curiosamente poupado de qualquer punição por parte dos imorais da Lava Jato – para tirar o PT do poder, o vírus Bolsonaro não teria se replicado e se convertido neste câncer quase em metástase que ora ameaça matar a democracia brasileira. Que poderia eu fazer naquela noite tenebrosa de 17 de abril após ouvir, do cara que acabava de dedicar seu voto a um torturador que enfiava ratos em vaginas de mulheres e colocava grávidas em gaiolas com cobra dentro, insultos homofóbicos contra mim? Que poderia eu fazer em relação a esse cara que há oito anos me submetia a uma tortura psicológica por meio do bullying e da difamação com fake news sob o silêncio homofóbico sorridente até mesmo de setores da esquerda? Não havia gesto mais eloquente e simbólico do que cuspir na cara desse fascista desprezível. E foi o que eu fiz, como uma reação absolutamente humana e espontânea à violência desproporcional contra mim. Essa gente não quer diálogo, quer a guerra, porque sua subjetividade é feita só de pulsão de morte.
Não há na história do Brasil classes sociais mais corruptas e egoístas do que os ricos e a classe média branca e cafona
SA – Na sua opinião, a ruptura institucional que desaguou na eleição de Jair Bolsonaro se dá em 2016, com a deposição de Dilma Rousseff? Ou é um processo que vinha sendo maturado desde 2013, com as grandes manifestações pelo país?
JW – Ainda que o vírus da extrema-direita tenha começado a se replicar em 2013, nas ruas e, principalmente, nas redes sociais, aproveitando as jornadas de junho, sua virulência se fez notar com o golpe de 2016 contra Dilma Rousseff. Desde 2013, eu venho acompanhando, numa espécie de etnografia online dolorosa, esse processo de ascensão da extrema-direita no Brasil por meio das mídias sociais e abusando da desinformação, que inclui a produção e circulação de fake news, calúnias, injúrias e teorias conspiratórias contra lideranças políticas das esquerdas, intelectuais e artistas. E digo etnografia dolorosa porque eu não era só um observador a fazer registros etnográficos para entender o que estava se passando: eu era a vítima principal dessa extrema-direita. O know-how e o material que minha equipe e eu principalmente adquiri-os nesses dez anos de corpo a corpo com a extrema-direita nas redes sociais não cabem num doutorado.
Uma “cantilena mentirosa e diabólica”
SA – Cobra-se muito uma autocrítica por parte da esquerda brasileira. Como parte dessa esquerda, embora não pertencente ao partido hegemônico, você faria alguma autocrítica? Onde a esquerda errou, se é que errou?

JW – A cobrança de que a esquerda faça uma autocrítica pelo golpe baixo que sofreu por parte de plutocratas “liberais” e oligarcas que se uniram a organizações criminosas para derrubar uma presidenta eleita em eleições livres e limpas tem tanta moral e legitimidade quanto a cobrança de que os pais de um adolescente negro assassinado por um segurança privado de uma loja de grife num shopping explicassem o que seu filho estava fazendo num shopping de ricos. Ou é tão legítima e moral quanto exigir de uma mulher estuprada que faça autocrítica em relação à roupa que estava usando no momento em que foi estuprada. Ou seja, trata-se de um artifício perverso de jogar nas costas das vítimas a responsabilidade pela violência que elas sofreram e sofrem. Artifício usado há muito tempo por canalhas.
Surpreende-me setore s da esquerda e jornalistas inteligentes e honestos caírem nessa armadilha. Se alguém deve alguma autocrítica é essa elite usurária e racista que não admitiu ver o PT fazer o mínimo pelos pobres e pelos negros. E lamento que muitos negros e pobres sejam alienados e ingratos em relação a tudo de bom que os governos do PT lhes trouxeram, e tenham embarcado nessa cantilena mentirosa e diabólica da elite e da classe média de que o PT é um partido corrupto. Não há na história do Brasil classes sociais mais corruptas e egoístas do que os ricos e a classe média branca e cafona. Por isso, rechaço de maneira veemente essa cantilena. Depois que os banqueiros, o mercado financeiro – esse cassino de apostadores –, a FIESP, a FIERJ, os plutocratas e corruptos do PSDB e do DEM, os neoliberais de sapatênis do Partido Novo, os ecocidas do agroneg&oa cute;cio e os vendilhões dos templos neopentecostais fizerem autocrítica em relação a seus erros – para não dizer crimes – históricos, aí e só aí eles poderão ter alguma moral para exigir autocrítica por parte da esquerda.
SA – Portugal tem dado um exemplo interessante às esquerdas de todo o mundo, através da bem-sucedida aliança que atende pelo nome de Geringonça. Você acredita que o Brasil tem condições de seguir exemplo semelhante?
JW – Acho que sim, desde que, como já expliquei, as lideranças deixem seus egos de lado, sejam justas e generosas umas com as outras, e desde que as mulheres, por fora, iniciem esse diálogo com a ajuda dos movimentos LGBTQ+, negro e ambientalista, que também precisam ser mais generosos e bem-informados para não gastarem energia com “cancelamentos” e outros linchamentos dos seus próprios pares.
Há o risco de a pandemia aprofundar o capitalismo de vigilância e aguçar os ódios sem os quais a extrema-direita não se cria
SA – Os efeitos da pandemia causada pela Covid-19 podem provocar a ascensão do populismo de extrema-direita? Ou é um cenário momentâneo, que tende a desaparecer?
JW – Na verdade, a pandemia é também consequência da ascensão da extrema-direita. Graças aos negacionistas, incompetentes e anti-intelectuais de governos de extrema-direita, a Covid-19 se tornou uma pandemia. Basta ver que os epicentros dela são o Brasil, os Estados Unidos e o Reino Unido, governados por imbecis supremacistas e contrários à ciência, que se elegeram e fazem gestão à base de desinformação, que inclui fake news, teorias da conspiração e injúrias. Há o risco de a pandemia aprofundar o capitalismo de vigilância e aguçar os ódios sem os quais a extrema-direita não se cria. Mas eu sou otimista. Acredito que os milhões de cadáveres da Covid-19 e o aumento da pobreza gerados pela incompetência da extrema-direita farão as maiorias saírem do transe do ódio e da burrice motivada.
Os fantasmas da homofobia
SA – Como gay e ativista da causa LGBTQ+, que diferenças entre o Brasil e a Europa você percebe no seu cotidiano? Como as causas ditas identitárias são vistas aí e por que no Brasil elas avançam de forma tão lenta?
JW – Na Europa ocidental, a comunidade LGBTQ+ goza de mais liberdades e direitos que no Brasil e no restante da América Latina, apesar das conquistas que fizemos aí. Mas, mesmo com mais liberdades e direitos, esta comunidade sabe que os fantasmas da homofobia estão sempre prontos pra reencarnar em líderes fundamentalistas religiosos e autoritários de extrema-direita. Então, ela nunca baixa a guarda e não deve baixar. Eu estive em Barcelona para me encontrar com a prefeita Ada Colau no mesmo dia em que o Centro LGBTQ+ no bairro do Raval sofreu um vandalismo: quebraram suas vidraças e escreveram um insulto homofóbico em sua fachada. À noite, centenas de milhares de pessoas, não só LGBTs, lotaram as ruas da cidade para exigir identificação e punição dos agressores. Estavam entre elas os muçulmanos do Raval, pois a comunidade LGBTQ+ catalã tinha co nsciência de que os agressores pretendiam culpar os muçulmanos e estimular a islamofobia. A comunidade LGBTQ+ no Brasil goza de menos liberdades e recursos que a da Europa Ocidental. Não é fácil ser ativista no Brasil, ainda mais ativista negro e/ou LGBTQ+. Sofre-se muitas violências, eu que o diga. Mas, por outro lado, às vezes acho que tem ativistas que gastam mais energias com tretas de divas pop, ataques aos pares e “cancelamentos” do que com formação de consciência e aliança.
Há ainda em mim aquela criança ferida. E o adulto que me tornei, todo o saber que adquiri e todo o poder que conquistei foi para curar a ferida da — e proteger a — criança que fui e que está em mim
SA – Numa entrevista ao programa do jornalista Pedro Bial, exibida ano passado na Rede Globo, você fez um comovente relato do dia em que percebeu que havia algo de “diferente” no seu jeito de ser, ao ir a uma padaria. De lá para cá, foram muitas outras ofensas e agressões de todo tipo, incluindo a mais recente indústria de fake news. Restou algo daquela criança em você? Foi preciso criar uma carapaça para suportar as pancadas? Como aquela criança gay do interior da Bahia e esse adulto gay cidadão do mundo lidaram e lidam com esses desafios?
JW – Sim, há ainda em mim aquela criança ferida. E o adulto que me tornei, todo o saber que adquiri e todo o poder que conquistei foi para curar a ferida da – e proteger a – criança que fui e que está em mim. E para curar as feridas das – e proteger as – crianças que estão em outros adultos LGBTQ+. O adulto que me tornei em função da homofobia que me vitima até hoje e que me obrigou a deixar meu país existe para levar aquela criança ao orgulho, para tirá-la da vergonha. E para levar ao orgulho e proteger outros LGBTQ+, crianças ou adultos. Eu despertei um dia e tive consciência das injustiças deste mundo. Entendi que se eu não fizesse nada, não tomasse as rédeas do meu destino e me reconstruísse à minha maneira, com orgulho de mim e de minha maneira de amar e desejar, eu iria repetir o destino imperfeito ao qual a sociedade racista e homofóbica submete LGBTQ e negros, principalmente os mais pobres. Despertei e interrompi o ciclo, e iniciei a difícil tarefa de despertar outros oprimidos.
SA – As ameaças a você e sua família diminuíram nos últimos meses?
JW – Sim, mas ainda assim eu não baixo a guarda. Os fascistas ainda estão empoderados no Brasil.
A língua portuguesa como paixão colonizadora
SA – Quais são seus projetos no exterior? De que forma você exerce, dentro do possível, uma atividade política e cidadã longe do seu país?
JW – Eu sou um intelectual público, jornalista e escritor. Vivo de meus textos e conferências, online ou não. Tenho feito aquarelas; o desenho é uma paixão antiga. Sou um pesquisador com bolsa da Universidade de Harvard e da OSIFE. Vou inaugurar em breve meu site. É assim que eu vivo.
SA – Você está longe do Brasil desde janeiro do ano passado e provavelmente está tendo pouco contato com o nosso idioma. Como diria Caetano Veloso, sente falta de roçar a língua na língua de Luís de Camões? Que outras perdas – sensoriais, afetivas, políticas – o exílio lhe impôs?
JW – O fato de ser escritor e jornalista e seguir atuando na esfera pública brasileira por meio da internet me permitiu não me apartar de minha língua que eu amo, embora ela seja herança de uma colonização violenta e racista. A língua portuguesa é a parte do colonizador em mim que eu amo. É minha contradição fundamental e insuperável, porque não haveria esta minha subjetividade sem essa língua. As outras perdas sensoriais são as festas de largo, o estar-junto com amigos e familiares nessas festas que são só nossas.
Somos cordiais, sim. No sentido de que agimos pelas cordas do coração. E pelas cordas do coração também podem correr o ódio, mesmo que este ameace explodir antes da hora essa bomba-relógio que carregamos dentro de nós
SA – Voltando a Caetano (que sempre nos serve de farol), ele canta em Nu com a Minha Música: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”. Essa canção foi composta na remota década de 1980, numa realidade bastante distinta da atual. Hoje, em 2020, você enxerga alguma trilha clara para o país?

JW – Curioso você trazer esse trecho de Nu com a Minha Música, que eu citei ano passado em um post no Facebook. Sim, eu vejo uma trilha clara para o Brasil apesar da dor imposta pelo fascismo. Por causa das heranças culturais ameríndia e africana, o Brasil tem uma capacidade admirável e renovável de escapar dos abismos em que políticos e oficiais militares racistas, autocratas e plutocratas costumam jogá-lo. Não será diferente dessa vez. Como diz o poeta Paulo César Pinheiro, “as pragas e as ervas daninhas, as armas e os homens do mal vão desparecer nas cinzas de um Carnaval”.
SA – Algumas leituras específicas têm chamado a sua atenção? E canções, filmes ou outras manifestações artísticas?
JW – Eu tenho relido autores que descreveram este momento antes mesmo de ele acontecer, porque os estúpidos dentre nós são muito óbvios e repetitivos em sua histórica ameaça às civilizações, à diversidade humana e às liberdades. Estou relendo José Saramago, Machado de Assis, Susan Sontag, Margareth Atwood, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Michael Cunningham, Hannah Arendt, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Roland Barthes, Karl Marx, Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo, Marcel Proust, Judith Butler, Paul Preciado, Sam Bourcier, Clarice Lispector, Toni Morrison, Angela Davis, James Baldwin, James Green, Silviano Santiago, João Silvério Trevisan… são muitos! Estou revisitando os tijolos de que sou feito para me manter forte e de pé quando a tempestade passar e o novo mundo nascer.
Os múltiplos sentidos de cordialidade
SA – Karl Marx ou John Maynard Keynes? Qual desses pensadores faz mais a sua cabeça?
JW – Que pergunta! Marx, claro! (risos)
SA – Nós, brasileiros, deixamos definitivamente de ser homens cordiais, para usar a definição cunhada por Sérgio Buarque de Holanda? Ou nunca fomos?
JW – Somos cordiais, sim. No sentido de que agimos pelas cordas do coração. E pelas cordas do coração também podem correr o ódio, mesmo que este ameace explodir antes da hora essa bomba-relógio que carregamos dentro de nós. Embora a palavra cordialidade seja tomada pela maioria em seu sentido positivo, de cortês, afável, amável, cordial é também alguém que age pela emoção política do ódio.
SA – Você pretende voltar a viver no Brasil?
JW – Paulo, querido, claro que sim. Um dia eu volto, quem sabe.
SA – Ao ouvir uma palavra tão particularmente lusófona como “saudade”, qual a primeira coisa que lhe vem à mente?
JW – Minha mãe.