José Pinto (1929-2024)
Assisti, entre muitos, à despedida do actor e amigo José Pinto, no dia 17 de Fevereiro (sábado), no cemitério de Santa Marinha, em Vila Nova de Gaia.
Na oportunidade de abraçar a sua filha, disse-lhe aquilo que todos nós, que o conhecíamos, lhe teriam dito: o reconhecimento de, como filha abnegada, se dedicou ao seu pai, durante a vida e, sobretudo, nos últimos anos da sua existência.
Partiu, calmamente e em casa, com a serenidade e a modéstia que sempre o identificaram. José Pinto foi um actor tranquilo, metódico, agarrado à sua excelente figura e postura cénica, bem como a uma voz muito particular e a uma bonomia biunívoca entre o palco e a convivência com os seus colegas de teatro.
Conheci o José Pinto no ano de 1975, quando cheguei ao Porto para dirigir artisticamente o TEP (Teatro Experimental do Porto), ainda nesse momento sediado no belo “Teatro de Bolso (ou de Algibeira)” António Pedro, na rua do Ateneu Comercial do Porto.
Nessa altura, o José Pinto podia ter sido, perfeitamente, pela sua idade e pela minha (23 anos por cumprir), o meu pai. Nada disso impediu que o nosso relacionamento tivesse sido o melhor, incluindo um irrepreensível profissionalismo, que, então, nos ligou num período de três anos e, mais tarde, em outros reencontros.
Nessa época, o TEP contava com um reduzido número de actores. Entre os seniores, estavam o José Pinto, o Diamantino Silvestre e a Fernanda Gonçalves. O mais novo de todos, o Jorge Pinto, nasceu, como eu, no ano de 1952.
Para a realização do meu primeiro espectáculo profissional, “Brecht- 2” – que integrou duas peças de Bertold Brecht (BB): “A Excepção e a Regra” e “O Mendigo e o Cão Morto” –, tive de procurar novos actores que surgiram de uma escola teatral iniciada logo à minha chegada. Assim se incorporaram, mais tarde, os actores Emília Silvestre e João Paulo Costa, ambos surgidos dessa, então, recente escola de Teatro.
No espetáculo de BB, a primeira e mais curta delas era “O Mendigo e o Cão Morto” (escrita em 1919-1920). Um belo diálogo brechtiano que quase raia o absurdo. Foi uma das primeiras encenações mundiais, de uma peça muito pouco referenciada e encenada.
Nela, José Pinto interpretava o papel de Imperador, um rei vencedor numa batalha sobre uma cidade destruída que, com soberba, pergunta a um mendigo: “IMPERADOR– No momento em que vou celebrar o meu triunfo sobre o meu mais importante inimigo, quando o país mistura o meu nome com o fumo negro do incenso, há um mendigo sentado diante da minha porta, fedendo a miséria. Mas, com tantos acontecimentos importantes, pode-se conversar sobre o Nada. Os soldados retrocedem. Homem, você sabe por que os sinos dobram?”
Ao qual o mendigo responde, serenamente: “MENDIGO – Sim. Porque o meu cão morreu…
IMPERADOR – Isso foi insolência?
MENDIGO – Não. Foi por velhice…”
E, assim, continua um diálogo entre o poder e a realidade, dominado pela incomensurável medida da distância que separa as duas figuras antagónicas. No cenário, havia apenas dois actores separados do público por uma tela semitransparente com unidades de luz muito reduzidas, criando um clima de abstração e de intemporalidade, uma encenação muito marcada por um ambiente quase cinematográfico. Paolo Chiarini fala da influência do cinema em Brecht na sua obra sobre este autor.
Anos mais tarde, Adolf Himmel, saudoso amigo e director do Goethe-Institut do Porto, disse-me que foi uma das mais belas encenações de BB, em Portugal, que ele tinha visto. Relato isto sem vaidade, apenas para lembrar, também aqui, um homem que foi um dinamizador das Letras e da Cultura alemã, no Porto. Com o seu apoio, posteriormente, encenei uma adaptação dos irmãos Grimm para o Teatro Art’Imagem, “À Procura do Medo” (“João Sem Medo”), com tradução de Ilse Losa.
No ano seguinte (ou seja, 1976), foi apresentado “O Soldado e o General”, com texto e encenação da minha autoria, que teve um belo dispositivo cénico do escultor José Rodrigues, espectáculo que esteve na Venezuela, no âmbito de um Festival Internacional de Teatro, em Caracas, dedicado ao III Mundo, fomos convidados pela organização ITT e apoiados pela Fundação Calouste Gulbenkian. No regresso, ainda estivemos em Lisboa, no agora extinto Teatro da Cornucópia e o meu texto seria representado na Suécia pelo Teater 9, companhia que não sei se ainda existe.
Mais tarde, José Pinto seria o Sr. Argante, na peça de Molière “As Artimanhas de Scapino”, espectáculo delicioso, com um belo cenário e figurinos de José Rodrigues. Guardo belas recordações desta encenação. Estivemos em Faro, em Viseu e em outras cidades. E José Pinto contracenava com uma das minhas belas memórias de actores: o actor Luís Monte Empina. Ele era o avarento Geronte e a célebre cena do saco ficará, para sempre, na minha memória.
Depois da minha saída do TEP, reencontrei-me com o José Pinto, numa outra peça de Molière “O Medico à Força”. Foi também o rei, o pai do príncipe Leôncio em “Leôncio e Lena”, de GeorgBüchner. E o Perlimplim, em “Amor de Perlimplim com Belisa no seu Jardim”,numa bela e poética versão vertida para Português pelo poeta Eugénio de Andrade. “[…] numa espécie de transfusão de sangue perdida, que é sempre o trabalho do tradutor”, verteu para Português as castelhanas palavras do andaluz das “luas, navalhas, cavalos e olivais”. Todas estas últimas peças foram encenadas no TEP.
No ainda recente sábado (17 de Fevereiro), quando o seu corpo desceu à terra, houve palmas e lágrimas. Há poucas semanas, eu tinha publicado, neste espaço do sinalAberto, o artigo “Os nossos queridos actores […]”. O José Pinto ocupa um lugar de destaque entre eles. Os meus actores, os quais me acompanharão sempre enquanto estiver aqui, para os recordar.
Descansa em paz, José Pinto!
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Nota:
José Pinto começou a carreira artística nos grupos de amadores, tendo trabalhado no Grupo do Sporting Candalense, entre 1959 e 1967. No ano seguinte, junta-se ao TEP. O primeiro espectáculo do TEP em que participa, segundo a mesma lista, é “Gorgónio”, de Tulio Pinelli, logo em 1962. Enquanto amador, constou no elenco de várias peças, durante a década de 1960, como “O Auto da Alma”, de Gil Vicente, e “O Tio Simplício”, de Almeida Garrett. A sua ligação ao TEP, entretanto reforçada, estende-se por dezenas de peças nas décadas seguintes. “Bodas de Sangue”, de Lorca, em 1970; e “A Casa de Bernarda Alba”, do mesmo autor espanhol. Dois anos depois, a peça “Vítimas do Dever”, de Ionesco. E, ainda antes do 25 de Abril de 1974, a peça “Woyzeck”, de Büchner, em Março de 1974.
Foi engenheiro electrotécnico de profissão, empregado pela Anglo-Portuguese Telephone Company/TLP.
Participou como actor em produções do Teatro Nacional São João e do Teatro do Bolhão, da Seiva Trupe e do desaparecido Teatro da Cornucópia, em Lisboa.
Em 1993, já com mais de 60 anos, Manoel de Oliveira convida-o para o filme “Vale Abraão”.
Os anos 1990 serão, sobretudo, de afirmação para José Pinto como actor de cinema, participando em filmes como “Jaime”, de António-Pedro Vasconcelos, “Peixe Lua”, de José Álvaro Morais, “O Delfim”, de Fernando Lopes, e “Coisa Ruim”, de Tiago Guedes e Frederico Serra, entre muitos outros.
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04/03/2024