Justiça: o que não se lê no mapa (12)* 

 Justiça: o que não se lê no mapa (12)* 

(© VJS – sinalAberto)

João Paulo Dias: “Temos uma tradição municipalista e um Estado centralista”

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Ao reconhecer que a problemática da distribuição geográfica dos serviços públicos tem diferentes dimensões, o investigador João Paulo Dias começa por considerar uma das que, a seu ver, “não esteve presente na discussão” do novo mapa judiciário e que, para si, é muito importante: “A dimensão da organização do território no contexto de Estado.”

“Temos uma tradição municipalista e temos um Estado centralista. E, assim, não temos o intermédio que é a regionalização”, declara o sociólogo e investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (UC).

“O que quero ressaltar, aqui, é que os tribunais também fazem parte dos serviços do Estado que contribuem para a coesão territorial, tendo uma função efectiva de fazer justiça em nome do povo”, circunscreve João Paulo Dias, doutorado em Sociologia do Direito pela Faculdade de Economia da UC.

Por sua vez, o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto, destaca que a “questão central do novo mapa judiciário é um erro político clamoroso, que assenta só em perspectivas economicistas”. “Pensaram que iam poupar. A troika, pelo contrário, onde não cortava ou onde dizia para não cortar era no sistema da Justiça. Porque o sistema judiciário tem de funcionar bem, sobretudo, quando há restrições graves a outros níveis da economia”, assinala o advogado.

Embora não garanta que o novo mapa judiciário tivesse a finalidade de favorecer os juízes, Marinho e Pinto perfilha a ideia de que “a magistratura o apoiou, porque lhe interessava”. “Foi um mapa feito por pessoas que não têm uma visão de Portugal. Este país, para essas pessoas, é Lisboa. E não conhecem mais nada a norte de Sacavém nem a sul da Marateca. São pessoas que viveram sempre ali, em Lisboa, nos bares, nos cafés e nas pastelarias. Não têm uma visão para o país!”, censura.

(© VJS – sinalAberto)

Entrevistado pelo sinalAberto, no âmbito do dossiê “Justiça: o que não se lê no mapa”, o sociólogo João Paulo Dias dá-nos a conhecer o seu ponto de vista sobre a governação e a organização judiciária, relevando as condições de trabalho no sistema judicial.

“A parte do Estado que dirime os conflitos na sociedade e que tem um lado simbólico” manifesta a sua pertinência pelo “lado prático”, sabendo-se que “a justiça não funciona de uma forma isolada, mas articulada com outros serviços do próprio Estado”, interpreta o ex-director-executivo do CES (entre 2011 e 2020) e membro do Observatório Permanente da Justiça (OPJ/CES), desde 1996, onde coordenou, integrou e colaborou em múltiplos estudos nacionais e internacionais sobre as questões do acesso ao direito e à justiça, entre outras.

Considerando oEnsaio para a reorganização da estrutura judiciária, publicado em Janeiro de 2012, pela Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) e a reforma implementada a 1 de Setembro de 2014, ao abrigo da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, a que se seguiu o encerramento de duas dezenas de tribunais, o sociólogo João Paulo Dias admite que, de facto, foi criada “uma organização dos serviços jurídicos do Estado – ou seja, dos tribunais – que não bate certo com nenhum outro serviço do Estado”. Explicitando, este docente no Programa de Doutoramento em “Sociology of the State, Law and Justice” (na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra – FEUC/CES) diz que o, então, novo mapa judiciário foi estabelecido “à parte e à margem da organização territorial dos serviços do Estado”. Por conseguinte, “não coincide com as competências territoriais das delegações da Segurança Social, dos serviços de Saúde, das Finanças e de todo um conjunto de serviços com os quais os tribunais lidam diariamente”.

Cidade do Porto. (Créditos fotográficos: Alex Vasey – Unsplash)

Na perspectiva do sociólogo e co-coordenador do Barómetro das Estratégias Nacionais Anticorrupção (no OPJ/CES), uma das situações que “é, logo, levantada e realçada, porque, na mesma comarca territorial – por exemplo, os tribunais de primeira instância, dos quais estamos a falar e onde está a grande massa dos processos (enquanto tribunais judiciais, atendendo a que os tribunais administrativos têm uma outra lógica) –, também não bate certo a sua distribuição geográfica”.

“Assim, na área geográfica de um mesmo tribunal, pode-se lidar com competências territoriais, por exemplo, de dois ou três serviços de Finanças. Isso gera, naturalmente, entropias e confusões, contribuindo para o Estado labiríntico, como diria o falecido Fernando Ruivo”, observa João Paulo Dias, recordando esse docente da FEUC e, igualmente, pesquisador do CES, que desenvolveu uma grande investigação sobre o Poder Local e o que chamava de “Estado labiríntico”, tendo em conta a “forma como é preciso circular dentro do Estado”.

“Na área geográfica de um mesmo tribunal, pode-se lidar com competências territoriais, por exemplo, de dois ou três serviços de Finanças. Isso gera, naturalmente, entropias e confusões, contribuindo para o Estado labiríntico, como diria o falecido Fernando Ruivo”

Na obra “O Estado Labiríntico – O poder relacional entre poderes local e central em Portugal”, Fernando Ruivo constata que, “paralelamente ao movimento de desterritorialização, corre um outro movimento de sentido e consequências inversas”.

Fernando Ruivo (Direitos reservados)

“Trata-se da reterritorialização, isto é, da procura da construção de imagens, do caminho para a identidade do território. Por outras palavras, apesar das tendências unificadoras e globalizadoras em determinadas áreas da vida social, cada unidade espacial – nação, região, local – contrapõe-lhes um conjunto de especificidades e um conglomerado de características que marcam as diferenças e revelam determinada individualidade, a qual se vem a reflectir particularmente no que toca à tendência para o crescimento das manifestações de localização do político”, menciona o autor, na introdução do livro publicado em 2000, tido como uma referência no domínio da Sociologia dos Poderes Locais e da cultura política territorial em Portugal.

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Sem a noção dos limites de cada serviço estatal

Com efeito, o investigador João Paulo Dias confirma que “as pessoas estão à procura de resolver os seus problemas e que, na maior parte das vezes, não têm noção dos limites territoriais de cada serviço do Estado”.

“Esta dimensão não foi devidamente abordada, mas parece-me que é geradora de entropias e de ineficiências no sistema, como é realçado no trabalho que estamos a fazer [em Junho de 2021] sobre condições de trabalho nos tribunais”, reitera o investigador do CES, a propósito do impacto das condições de trabalho na qualidade da justiça, procurando analisar – quer através de inquéritos quer de entrevistas – a opinião dos funcionários (sobretudo, oficiais de justiça) e dos técnicos informáticos, entre outros, bem como dos juízes e dos magistrados do Ministério Público (MP).

CES Sofia, na Rua da Sofia (antigo Colégio da Graça), em Coimbra. (© VJS – sinalAberto)

Questionado sobre se o mapa judiciário imposto pela ex-ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz favoreceu os juízes e os magistrados do MP, João Paulo Dias admite essa possibilidade. “Nessa altura, disse-se e discutiu-se no espaço público que os juízes estariam mais favoráveis à reorganização, porque ficariam mais concentrados e não tão isolados nas zonas recônditas do país. Os magistrados do Ministério Público também beneficiaram”, supõe o investigador do CES, notando que “isso teve uma outra dimensão da negociação política inerente à revisão dos estatutos dos magistrados judiciais e dos do Ministério Público, com a promessa da revalorização profissional”, atendendo à, então, “escassez de quadros intermédios”.

“Estive num congresso do Ministério Público, quase no final do mandato da ministra Paula Teixeira da Cruz, em que, ao contrário da voz defendida pelo sindicato, ainda estavam na expectativa de que a referida revisão dos estatutos fosse aprovada até ao fim da legislatura”, recorda João Paulo Dias, referindo-se ao XIX Governo Constitucional, que vigorou entre 21 de Junho de 2011 e 30 de Outubro de 2015, liderado pelo social-democrata Pedro Passos Coelho, sendo Paulo Portas o vice-primeiro-ministro.

João Paulo Dias, investigador do CES/OPJ. (© VJS – sinalAberto)

“Eu disse que isso não iria acontecer, porque tinha impactos financeiros. Assim, adiariam até à última, porque ainda cá estava a troika [designação atribuída à equipa composta pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Central Europeu e pela Comissão Europeia, a qual se manteve em Portugal até 17 de Maio de 2014, dias depois de Passos Coelho ter anunciado a saída limpa de Portugal do programa de resgate financeiro]. No entanto, respondiam-me que não seria assim, porque a negociação estava mais ou menos fechada”, relembra o investigador do CES, sublinhando que, como tinha previsto, tal não aconteceu. Só no XXI Governo Constitucional – após o governo da coligação Portugal à Frente (PaF), com maioria relativa, não ter conseguido apoio parlamentar maioritário para entrar em funções –, chefiado pelo socialista António Costa, “é que foi aprovada essa revisão, possibilitando a reclassificação e as subidas de muita gente, com impacto financeiro”.

Na obra “Por caminhos das(s) reforma(s) da Justiça”, da autoria de João Pedroso, Catarina Trincão e João Paulo Dias, editada em 2003 (mas que, na sua essência, constitui o texto de um relatório de um projecto de investigação do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, concluído em 2001, como esclarecem os autores), nas “últimas décadas ocorreu em diversas sociedades, designadamente em Portugal, uma ruptura que deu origem a uma crise da justiça, decorrente […] do crescimento da demanda judicial e da sua ‘colonização’ pela cobrança de dívidas tanto na jurisdição cível (acções declarativas e executivas) como na penal (cheques sem provisão) que é acompanhada nas zonas urbanas pelo crescimento do crime de furto e de roubo, em regra relacionado com o consumo de estupefacientes”. Os mesmos autores prosseguem: “A par de algum protagonismo dos Tribunais (crimes de ‘colarinho branco’) o seu desempenho é, assim, abafado e banalizado por uma explosão de litigiosidade ‘rotineira’ e por uma insuficiência de recursos para responder a este aumento da procura.”

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Aumenta procura dos tribunais pelas empresas

Ao reconhecerem que esta situação de ruptura “é comum à generalidade dos denominados países desenvolvidos” e que também “é originada essencialmente […] num crescimento explosivo da procura dos tribunais pelas empresas que, como litigantes frequentes, demandam, em regra, cidadãos consumidores, que não pagam atempadamente os bens e serviços que adquirem”. De modo consequente, para “evitar a ruptura dos sistemas judiciais, os diversos Governos têm promovido uma pluralidade de reformas”, sobretudo da administração judicial, registam João Pedroso, Catarina Trincão e João Paulo Dias, que – com base na análise comparada e nos estudos da sociologia da administração da justiça – enquadram as aludidas reformas em quatro tipos.

Como caracterizam estes autores, o “primeiro tipo de reformas é defendido, em regra, pelos profissionais e a solução reside no aumento quantitativo dos recursos”. Ou seja, “mais tribunais”, “mais juízes”, “mais funcionários”. Porém, “tem como obstáculo a incapacidade financeira do Estado para alargar indefinidamente o orçamento da justiça”.

Por sua vez, o “segundo tipo é essencialmente defendido pelos cientistas sociais, administradores e políticos, para os quais a solução é uma reforma ‘tecnocrática e gestionária’, que consiste numa melhor gestão dos recursos, o que envolverá alterações na divisão do trabalho judicial, a delegação do trabalho de rotina e um processo judicial mais expedito”. No entanto, estas “soluções tendem a ser inviabilizadas por magistrados e advogados, mais preocupados com a eventual perda do controlo da actividade judicial”, observam os autores desta obra editada em 2003.

Juízo de Proximidade de Armamar. (© VJS – sinalAberto)

Já o terceiro modelo reformista “aposta na reforma da ‘inovação e tecnologia’, na concepção e gestão do sistema judicial, apetrechando-o com sofisticadas inovações técnicas, que vão do processamento automático dos dados ao uso generalizado da tecnologia do vídeo, das técnicas de planeamento de longo prazo à elaboração de módulos de cadeias de decisão”.

Por fim, o quarto tipo de reformas distingue-se pela elaboração de “alternativas” ao modelo formal e profissionalizado que, como verificam os autores, “tem dominado a administração da justiça”.

Como clarificam João Pedroso, Catarina Trincão e João Paulo Dias, “é imperativo efectuar a ponderação entre as três dimensões em que a justiça assenta, a procura de uma decisão justa, o custo e o tempo decorrido”. Contudo, a estes factores “acresce” o facto de a “justiça ser um serviço público e, como tal, sujeito a restrições orçamentais, o que torna a sua qualidade directamente dependente dos recursos existentes”. Escreviam, então, que o modelo a seguir estaria, pois, dependente dos recursos financeiros disponíveis no país e que deveria “fundar-se numa solução de compromisso, não só entre as três dimensões referidas, mas atendendo também às efectivas necessidades da comunidade e do mercado no seu enquadramento” temporal.

Ao retomarmos a entrevista com João Paulo Dias, este investigador do CES salienta que “as coisas estão todas interligadas”. “Na altura, a negociação levou a que a então ministra da Justiça [a social-democrata Paula Teixeira da Cruz] lançasse umas cenouras para os magistrados judiciais e para os magistrados do Ministério Público, para ter o seu apoio na aprovação da lei”, comenta, referindo-se à Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto). “Naturalmente, depois também se jogou com os outros princípios que o mapa defendia: maior especialização, maior concentração e melhor capacidade de gestão”, remata o sociólogo.

João Paulo Dias repara: “Se formos para a questão do modelo de gestão, já se levantam muitos problemas.” (© VJS – sinalAberto)

João Paulo Dias esclarece, a este respeito, que, “por si só”, não tem “nada contra” os “princípios que foram vendidos com a reforma então foi aprovada e implementada”. “Até são elogiáveis, não são? E muita gente que, agora, estamos a entrevistar e que inquirimos [no contexto das pesquisas do CES] declara que houve melhorias no funcionamento da Justiça e na celeridade dos processos, porque houve uma maior especialização e uma maior concentração, ao nível do país”, expressa. “Porém, ainda não chegámos ao ponto de análise de pormenor vendo as diferenças pelas comarcas, embora se perceba que há umas comarcas que aparecem sempre com melhores resultados e outras com piores resultados. É preciso fazer os cruzamentos necessários”, fundamenta o investigador, afirmando: “A opinião que estamos a encontrar por parte dos profissionais dos tribunais é positiva, em termos de impactos.”

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Modelo de gestão problemático

Todavia, João Paulo Dias repara: “Se formos para a questão do modelo de gestão, já se levantam muitos problemas. Ou seja, foi constituído um conselho de gestão para cada tribunal ou para cada comarca, para melhorar também as condições dos tribunais e dos serviços que são proporcionados, garantindo, de facto, que a área territorial é coberta, de alguma forma, por tribunal ou por secção [juízo] de proximidade, em que garantem haver, pelo menos, um funcionário para interagir e receber os atendimentos. Aí, as coisas foram complementadas e, nalguns casos em que se justifique, existe [a possibilidade de] deslocação dos juízes ou dos magistrados do Ministério Público. Isso, sempre que necessário ou com uma base regular, uma ou duas vezes por semana, não se justificando mais.”

Ao prosseguir a sua reflexão, o investigador do CES considera que “o sistema foi corrigindo e adaptando-se à realidade do volume processual”. Como escreve João Paulo Dias (em co-autoria com João Pedroso e Catarina Trincão), no livro “Por caminhos da(s) reforma(s) da Justiça” (publicado em 2003), até à crise do Estado-Providência, nos anos setenta do século XX, “a sociedade estruturou-se à volta do Estado e pretendia-se que a resolução de litígios fosse uma reserva dos tribunais judiciais”. Mas, como averiguam estes autores, “por um lado, o sistema judicial nunca teve o monopólio de resolução de litígios nas nossas sociedades”, explicando, em nota de rodapé, que, apesar da centralidade dos tribunais judiciais, “sempre subsistiram nas sociedades contemporâneas forma[s] de regulação de litígios na família, na vizinhança, nas relações laborais, nos negócios e nas estruturas comunitárias”.

“A sociedade estruturou-se à volta do Estado e pretendia-se que a resolução de litígios fosse uma reserva dos tribunais judiciais”

Por outro lado, constatam os aludidos autores que “a urbanização e o desenvolvimento da sociedade de consumo trouxeram para dentro dos tribunais a denominada […] explosão de litigação”. Porém, o modelo judicial de resolução de litígios, “com o seu formalismo, custo e distância dos cidadãos, não se adapta a esta sociedade mais consumista, com mais litígios de massa, mas também mais descentralizada, que pede mais participação dos cidadãos e em que procura mais autonomia na relação com as estruturas estaduais”.

“Perante esta evolução da sociedade e a necessidade de desenvolver um novo modelo de resolução de litígios”, os mesmos autores (que examinam o pensamento de Jean-Pierre Bonafé-Schmitt, o qual reflectiu sobre as alternativas ao modelo judicial) constatam que “o Estado começou a recorrer a outros meios de resolução de litígios que não os tribunais, designadamente a mediação, a conciliação e a arbitragem”. Paralelamente a estas iniciativas do Estado, os citados autores notam que se desenvolveram “também diversas experiências de base comunitária a partir da associação de vítimas, de consumidores, de grupos de vizinhos, etc.” Desse modo, o “movimento de reformas de administração da justiça de natureza informal ou desjudicializadora revela uma permanente ambivalência”.

Uma outra dimensão que o nosso entrevistado considera, igualmente, “importante, quando estamos a falar de justiça, é a dimensão simbólica e política”. “A dimensão política e a dimensão simbólica são diferentes, mas, às vezes, misturam-se”, considera o nosso entrevistado que, entre outras funções, é revisor da Revista de Ciências e Políticas Públicas e da Revista de Comunicação e Sociedade.

O Tribunal Judicial de Boticas reabriu no dia 2 de Janeiro de 2017, como
Secção de Proximidade, após o encerramento em setembro de 2014.
(© VJS – sinalAberto)

No que concerne à problemática da coesão territorial, João Paulo Dias diz-nos: “Nós vimos o que aconteceu com os tribunais, tal como aconteceu com as estações de correio dos CTT e também com os serviços da Segurança Social ou das Finanças. Aqui, há uma outra lógica de discussão, que se tem sempre de uma forma parcelar e que não se tem de uma forma integrada.” Por isso, este investigador do CES questiona: “Qual é o mapa territorial dos serviços do Estado?”

“Os tribunais estão aí e são dos mais importantes pela função simbólica. Constituindo o terceiro poder – sem pensarmos em qualquer hierarquia – são órgãos de soberania e, portanto, devem ter distribuição territorial equilibrada, para garantir que todos os cidadãos tenham acesso aos serviços de Justiça”, manifesta o sociólogo. “A reorganização [judiciária] levantou, de facto, alguns problemas face a uma base ou uma herança que já tinha muitas décadas, embora com alterações”, relembra, adiantando: “Mas tinha muitas décadas de estabilidade, com a não criação de mais tribunais ou do seu não desaparecimento. Das 233 comarcas que existiam, se não me engano, passou a haver 23 comarcas no território nacional, mesmo que se tivesse mantido a maior parte dos edifícios ocupados por serviços dos tribunais. Isso foi uma outra falácia!”

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Mapa judiciário dividido em 23 comarcas

Em consequência do sistema judiciário estabelecido na Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, desde 1 de Setembro de 2014, o território português está dividido em 23 comarcas (Açores, Aveiro, Beja, Braga, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Évora, Faro, Guarda, Leiria, Lisboa, Lisboa Norte, Lisboa Oeste, Madeira, Portalegre, Porto, Porto Este, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo, Vila Real e Viseu), com as sedes e as áreas de competência territorial, por norma, coincidentes com as dos distritos administrativos, cuja composição foi prevista no Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março.

Recorde-se, igualmente, no contexto dos artigos 33.º e 81.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que em cada uma dessas circunscrições existe um tribunal judicial de primeira instância — o tribunal de comarca —, o qual se desdobra em juízos, que se designam pela competência e pelo nome do município em que estão instalados, e que podem ser de competência especializada – podendo também ser criados os seguintes: central cível; local cível; central criminal; local criminal; local de pequena criminalidade; instrução criminal; família e menores; trabalho; comércio; execução) –, de competência genérica e de proximidade.

Instalações do CES, na Rua da Sofia, em Coimbra. (© VJS – sinalAberto)

Em Agosto de 2002, o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ) – no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra – concluía o estudo “Os tribunais e o território: um contributo para o debate sobre a reforma da organização judiciária em Portugal”, de acordo com o programa de investigação então contratualizado com o Ministério da Justiça, e sob a direcção científica de Boaventura de Sousa Santos, no qual participaram João Pedroso e Conceição Gomes (ambos como coordenadores), bem como Catarina Trincão, João Paulo Dias e Jorge Almeida, tendo a equipa de investigação sido constituída por Pedro Abreu, Salomé Gouveia, Sara Araújo e Taciana Peão Lopes.

No texto introdutório, os autores esclarecerem que o relatório de investigação que, nessa altura, apresentavam se tratava de “um ensaio exploratório, com o objectivo de identificar as questões, as tensões e as soluções em debate relativamente à organização judiciária em Portugal”, pretendendo-se “construir uma proposta para o debate sobre a dignificação da relação entre a justiça e o território e enunciar uma agenda de investigação sócio-jurídica” que ajudasse a aprofundar o conhecimento sobre o tema. Com efeito, assim “se qualificaria o nível da argumentação e permitiria, no futuro, aos operadores judiciários e ao poder político clarificar as suas posições e tomar decisões mais fundamentadas e mais participadas pelos actores profissionais, pelos cidadãos e pelos investigadores nas diversas áreas das ciências sociais, num sentido amplo (sociologia do direito e das organizações, direito, ciência política, economia)”.

Logo no início do primeiro capítulo deste relatório, em que se analisa as funções dos tribunais e territórios judiciários entre os modelos de concentração e o de proximidade da justiça aos cidadãos, se afirma que os tribunais são “um dos pilares fundadores do Estado de direito moderno, um órgão de soberania a par com o poder legislativo e o poder executivo”. Todavia, nas sociedades contemporâneas (com referência a 2002), “os tribunais têm vindo a ser duramente criticados, particularmente em Itália, França, Portugal e Espanha, entre outras razões, pela sua ineficácia, inacessibilidade, morosidade, custos, selectividade e concentração na resolução de alguns litígios” (sic).

Como constatavam os investigadores, esta “situação de ruptura é comum à generalidade dos denominados países desenvolvidos e é originada essencialmente a partir dos anos oitenta/noventa, no crescimento explosivo da procura dos tribunais pelas empresas que, como litigantes frequentes, pretendem cobrar os seus créditos”. Por isso, para “evitar essa ruptura dos sistemas judiciais, os diversos governos têm promovido uma pluralidade de reformas da administração judicial” que os autores do mesmo relatório agrupam em quatro tipos: a) o de aumento quantitativo dos recursos afectos aos tribunais; b) o “tecnocrático e gestionário”; c) o de inovação e tecnologia; d) e o de desenvolvimento de meios alternativos, substitutivos ou complementares de resolução de litígios.

Edifício onde se localiza o Juízo de Proximidade de Castelo de Vide, na Rua Sequeira Sameiro. (© VJS – sinalAberto)

Para os responsáveis deste estudo, a “reforma da carta judiciária, ou seja, da organização territorial dos tribunais, será necessariamente tributária destes quatro tipos de reformas e encontra-se dependente do desempenho das funções dos tribunais e de uma multiplicidade de factores, designadamente de natureza política (cobertura integral do território e maior ou menor proximidade às populações), conexos com o desenvolvimento económico e social (relação entre oferta/procura potencial e a efectiva, características dos litígios judicializados e seus mobilizadores, crescimento económico e evolução demográfica), a cultura jurídica (efectividade do direito e hierarquização e especialização dos tribunais) e a própria pirâmide de resolução de litígios ou de administração da justiça” (sic).

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A construção de um novo mapa judiciário é “complexa”

Como notavam os investigadores do CES/OPJ, a “construção de um novo mapa judiciário é, assim, complexa e deve ter como objectivos […] o reforço da independência, da eficácia e eficiência do sistema judicial e do acesso dos cidadãos [ao] direito, aos tribunais e a outras instâncias de resolução de litígios”.

A respeito das funções dos tribunais, verificam que, nas sociedades contemporâneas, desempenham diferentes tipos de funções, distinguindo as três principais: funções instrumentais, funções políticas e funções simbólicas. E passam a caracterizá-las: “Em sociedades complexas e funcionalmente diferenciadas[,] as funções instrumentais são as que são especificamente atribuídas a um dado campo de actuação social e que se dizem cumpridas quando o referido campo opera eficazmente dentro dos seus limites funcionais. As funções políticas são aquelas através das quais os campos sectoriais de actuação social contribuem para a manutenção do sistema político. Finalmente, as funções simbólicas, são o conjunto das orientações sociais com que os diferentes campos de actuação social contribuem para a manutenção ou destruição do sistema social no seu conjunto.”

Ainda no primeiro capítulo do dito relatório, reconhece-se que é, em grande medida, “através do conjunto das funções instrumentais que os tribunais exercem também as funções políticas e as funções simbólicas”. “Quanto às funções políticas, elas decorrem desde logo do facto de os tribunais serem um dos órgãos de soberania. Mais do que interagir com o sistema político são parte integrante dele. Há, pois, apenas que identificar as funções políticas especificamente confiadas aos tribunais”, sublinham os investigadores, frisando que a função de controlo social “é uma função eminentemente política, quer pela repressão que exerce, quer pelo modo selectivo como o faz”.

“Os tribunais estão aí e são dos mais importantes pela função
simbólica. Constituindo o terceiro poder – sem pensarmos em
qualquer hierarquia – são órgãos de soberania e, portanto, devem ter
distribuição territorial equilibrada, para garantir que todos os cidadãos
tenham acesso aos serviços de Justiça”, manifesta o sociólogo João
Paulo Dias. (© VJS – sinalAberto)

Dizem os investigadores do CES/OPJ, no relatório apresentado em Agosto de 2002, que é, sobretudo, “na resolução de litígios que os tribunais criam intersticialmente o direito e é também aí que se exerce a função de controle social mediante a afirmação de uma normatividade que deixa de depender da vontade das partes a partir do momento em que estas decidem submeter-se a ela (sempre que têm a possibilidade de decidir o contrário)”.

No desenvolvimento da sua reflexão conjunta, os autores do aludido “ensaio exploratório” do OPJ informam que as funções políticas dos tribunais não se esgotam no controlo social. “A mobilização dos tribunais pelos cidadãos nos domínios cível, laboral, administrativo, etc., implica sempre a consciência de direitos e a afirmação da capacidade para os reivindicar e neste sentido é uma forma de exercício da cidadania e da participação política”, consideram. “É, por esta razão, que as assimetrias sociais, económicas, culturais na capacidade para mobilizar os tribunais, pondo uma questão de justiça social, põem simultaneamente a questão das condições de exercício da cidadania”, argumentam, confirmando que a “visibilidade social e política da acessibilidade, do custo e da morosidade da justiça, enquanto temas de debate público, deriva da capacidade ou incapacidade integradora do sistema político que por elas se explicita”.

“A mobilização dos tribunais pelos cidadãos nos domínios cível, laboral, administrativo, etc., implica sempre a consciência de direitos e a afirmação da capacidade para os reivindicar”

Ainda recorrendo ao mesmo estudo, lemos que as “funções simbólicas são mais amplas que as políticas porque comprometem todo o sistema social”. Isso porque, como escrevem os investigadores do CES/OPJ, os “sistemas sociais assentam em práticas de socialização que fixam valores e orientações a valores distribuindo uns e outras pelos diferentes espaços estruturais de relações sociais (família, produção, mercado, comunidade, cidadania, mundo) segundo as especificidades destes, elas próprias fixadas por critérios de especialização funcional socialmente dominantes”. Na realidade, tanto as funções instrumentais como as funções políticas “têm dimensões simbólicas que serão mais significativas nuns casos do que noutros”.

Antes de analisarem a construção de uma nova relação entre o judicial e o não judicial, os autores do relatório que estamos a seguir neste trabalho jornalístico afiançam que “a maior eficácia simbólica dos tribunais deriva do próprio garantismo processual, da igualdade formal, dos direitos processuais, da imparcialidade, da possibilidade de recurso”. Assim, em termos simbólicos, “o direito processual é tão substantivo quanto o direito substantivo”. “Daí também que a perda de eficácia processual por via da inacessibilidade, da morosidade, do custo ou da impunidade afecte a credibilidade simbólica da tutela judicial”, justificam, apontando que isto “não significa que haja uma relação linear entre a eficácia do desempenho instrumental e político e a eficácia simbólica”.

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Razões da construção dos territórios judiciais

“Num Estado em geral opaco ou pouco transparente, um deficiente desempenho instrumental dos tribunais pode não afectar a sua eficácia simbólica, sobretudo se alguns casos exemplares de bom desempenho instrumental forem alimentando a comunicação social e se o fizerem de molde que a visibilidade dos tribunais fique reduzida a essas zonas de atenção pública”, sustentam os mencionados autores.

Ao ter em conta as razões da construção dos territórios judiciais (isto é, da competência territorial de um tribunal comum, especializado ou de competência específica), a mesma equipa de investigadores do CES/OPJ (da qual fez parte o nosso entrevistado João Paulo Dias), recorda (em 2002) que a justiça portuguesa – tal como a francesa, por exemplo – se caracteriza pela concentração e pela delegação, “o que permite a cobertura integra dos territórios nacionais através da primeira instância”, com as comarcas, como células matrizes da organização judiciária em Portugal.

Juízo de Proximidade de Ferreira do Zêzere. (© VJS – sinalAberto)

Tal como sucedeu em França, no nosso país, foram confrontadas as razões económicas e a “irracionalidade económica das comarcas sem processos”, tentando-se optimizar, sob o “ponto de vista quantitativo, a actividade das várias jurisdições, o que se justifica em razão da necessidade de reduzir o chamado ‘désert judiciaire’ (existência de jurisdições sem processos) e de ajustar a organização do território às transformações económicas, demográficas e dos meios de comunicação da sociedade”.

Os investigadores do CES/OPJ, a título de exemplo, prestam atenção ao movimento
processual relativo à justiça cível das 10 comarcas que tiveram menos processos
entrados, em todo o país, no ano 2000. Segundo os mesmos autores, estas comarcas
“não têm justificação de existência numa perspectiva de racionalidade económica, mas
poderão ter a favor da sua sobrevivência razões de natureza política e/ou social”. Por
sua vez, em comparação, “as 10 comarcas que tiveram mais processos cíveis entrados,
no mesmo ano de 2000, exigem uma organização judiciária adequada à sua dimensão e
ao tipo de litígios predominante”. (Fonte: Gabinete de Política Legislativa e Planeamento
do Ministério da Justiça)

Não esquecendo as razões institucionais nem as noções de “distância prestigiante” e de “banalização da proximidade”, o citado grupo de trabalho do CES/OPJ reflectiu sobre a distribuição territorial dos órgãos da justiça, apercebendo-se de que, “num espaço geográfico, não é independente do interesse dos profissionais do direito e das instituições com eles relacionadas”. “Logo, a concentração das instituições judiciárias é do interesse da maioria dos profissionais envolvidos”, asseguram os investigadores.

Seguindo o autor francês Jacques Commaille, no seu texto ensaístico “Territoire judiciaire, territoire social pour une théorie sociologique de la justice” (de 1990), admite-se que uma “justiça de proximidade pode responder à aspiração do reconhecimento social dos magistrados pelos cidadãos, graças, precisamente, a uma certa proximidade e familiaridade”. Contudo, “a prioridade vai para a valorização da concentração com o recurso a argumentos que derivam da gestão concreta da carreira e da imagem da profissão”. A este respeito, Commaille escreve que, na História da magistratura, “são frequentes os testemunhos que vão contra a ideia da proximidade, por ela ser desprestigiante para a justiça como um todo”.

Como expõem os autores do estudo “Os tribunais e o território: um contributo para o debate sobre a reforma da organização judiciária em Portugal”, datado de Agosto de 2002, ainda no alcance das ideias avançadas (em 1990) por Jacques Commaille, resultantes da análise das várias razões que influenciam a construção de um modelo de organização judiciária, é notória “a presença constante de dois modelos que ora se complementam ora se opõem de forma mais radical”: o modelo de concentração e o modelo de justiça de proximidade.

Acerca dos territórios da justiça e os territórios do poder público, os investigadores do CES/OPJ manifestam que as políticas de organização judiciária são consideradas, “um pouco por todos os países, como um problema” e dizem que alguns autores americanos defendem “existir uma certa tensão entre, por um lado, uma concepção centralizada e hierarquizada da organização judiciária e, por outro lado, uma concepção mais sensível à base local”. De facto, observam que “a centralização do poder político continua a ser uma tendência, mas que a justiça local começa a ocupar uma posição cada vez mais forte”. E acrescentam que esta “tensão evidencia a existência de forças partidárias e de grupos de pressão que têm posições diferentes sobre a função da justiça”.

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“Ter em conta os problemas sociais”

Dessa maneira, ainda fundamentado na leitura do texto “La déstabilisation des territoires de justice” (inserido na edição n.º 42/43, da Revue Droit et Société, de 1999), o grupo de trabalho do CES/OPJ subscreve a ideia de que “falar em território, nos nossos dias, significa ter em conta os problemas sociais”. Nesse sentido, o “princípio da territorialidade comunga da concepção de espaço político caracterizado pela estabilidade das suas instituições, mas visa também definir um espaço dinâmico onde há que gerir os problemas públicos tendo em conta a diversidade de problemas, a contingência das soluções e as variações de ordem demográfica”.

(eurocid.mne.gov.pt)

Ainda no âmbito do capítulo sobre as funções dos tribunais e territórios judiciários, os autores deste estudo do OPJ, também cientes do fenómeno da globalização, entendem que a “justiça é cada vez mais interpelada a dotar a sociedade de instituições mais democratizadas e eficazes”. Por isso, advogam que a “justiça deverá ser cada vez mais organizada e deverá respeitar, dentro do espaço geográfico, os problemas que se lhe colocam e as realidades sócio-económicas multiformes” (sic).

Ao retomarmos a entrevista com João Paulo Dias, o ex-director-executivo do CES declara que “a parte simbólica é muito importante”. Nessa conformidade, admite que os decisores políticos do Estado possam dizer: “Se calhar, gastamos mais dinheiro para manter esta componente simbólica.” “Sim, mas, por vezes, é importante gastar esse dinheiro para a pacificação [social] e para a coesão [territorial]”, insiste, na qualidade de membro do Observatório Permanente da Justiça.

Na óptica de João Paulo Dias, além da representação simbólica dos tribunais, há, efectivamente, “o sentimento de pertença a uma comunidade que tem os serviços acessíveis à população”. “E, sabendo que existe, a nível nacional, um grande desequilíbrio em termos populacionais, na sua distribuição territorial, mais importante é garantir que o Estado não contribui para o agravamento dessa desigualdade”, manifesta ao sinalAberto.

Relativamente à desertificação do denominado “interior”, o sociólogo do CES diz que isso se deve ao facto de termos “um país concentrado numa faixa territorial de cerca de trinta quilómetros”. E, por consequência, julga “muito importante o papel dos tribunais, bem como o das estações dos correios, a par do dos serviços da Segurança Social ou das Finanças”, para alterar a actual situação, que tende a agravar-se em muitas regiões do território nacional. “Não podemos desligar esta realidade do debate”, avisa João Paulo Dias, realçando o aspecto simbólico junto das comunidades, o qual requer a presença dos magistrados nos tribunais, para que não se perca esse “poder simbólico da Justiça e das magistraturas”.

“Sabendo que existe, a nível nacional, um grande desequilíbrio em termos populacionais, na sua distribuição territorial, mais importante é garantir que o Estado não contribui para o agravamento dessa desigualdade”

“Agora, com a virtualização da Justiça e de muitos outros serviços, existe algum receio. E não sei se infundado ou não, dado que estamos numa fase de transição entre os prós e os contras. Podemos levantar pistas, mas este processo de fazer julgamentos em salas de audiência virtuais, de inquirições por meio do aplicativo WhatsApp, da plataforma Zoom ou do WebEx [que combina o compartilhamento da área de trabalho via navegador na Internet com videoconferência e vídeo, como meio mais utilizado em tribunal com as pessoas à distância], ainda não está a andar muito depressa”, comenta o investigador do CES/OPJ.

O sociólogo João Paulo Dias julga “muito importante o papel dos
tribunais, bem como o das estações dos correios, a par do dos serviços
da Segurança Social ou das Finanças”, para alterar a actual situação,
que tende a agravar-se em muitas regiões do território nacional.
(© VJS – sinalAberto)

“Para algumas áreas jurídicas mais sensíveis, como a do Crime, julgo que tem havido algum cuidado por parte do sistema, porque, com as vítimas à distância, nem sempre sabemos se elas estão a ser coagidas, devido à virtualização da Justiça”, expõe, exemplificando: “Podem ter alguém atrás ou na porta ao lado a ameaçá-las.” “Há, aqui, questões sensíveis perante as quais as magistraturas procuram lidar de forma criativa, no contexto das instruções genéricas para a utilização de várias plataformas que, sobretudo durante a pandemia da covid-19, foram permitidas pelo regime do estado de excepção [alteração fundamental da ordem constitucional, de vigência transitória] e do estado de calamidade”, repara João Paulo Dias.

“Isto foi fazendo caminho e as pessoas foram-se habituando a trabalhar, de certa forma, a este nível. Porém, levantam-se várias questões, para o futuro, sobre a transformação do poder judicial em algo muito mais volátil. Se calhar, com as novas gerações, terá sempre o mesmo poder que tinha no que respeita ao significado simbólico. Hoje, nas gerações mais antigas, em zonas mais recônditas, talvez se perca esse poder ou essa função. Mas, isso é algo que estará em discussão, igualmente, com esta questão do mapa organizacional”, interpreta o sociólogo do CES, particularizando: “Podemos estar a cinco ou a dez anos de o mapa [judiciário] não fazer qualquer sentido, com a virtualização de muitos procedimentos.”

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Iliteracia no contexto das novas tecnologias

Quanto há iliteracia no contexto das novas tecnologias da informação e comunicação, o nosso entrevistado pensa que constitui, em parte, uma “forma de discriminação actual”. Por isso, importa saber como é que o Estado está a impor uma eventual info-exclusão ou desigualdade digital. “O Estado está a ser um actor e promotor de uma forma dupla. Por um lado, estimula a virtualização e o acesso aos serviços digitais – de facto, em comparação internacional, Portugal, na área da Justiça e noutros serviços, está muito à frente da média. Por outro, ao mesmo tempo, está a determinar quase obrigatoriedades – realmente, não é uma obrigatoriedade, porque ninguém pode ser obrigado, quando não tem esse equipamento. Todavia, [o cidadão] acaba por ser discriminado, se o não fizer. O que já se verifica, de modo positivo, quando submetemos a nossa declaração do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares [IRS] na plataforma das Finanças, com a possibilidade de receber mais cedo o reembolso, se a ele tivermos direito. Portanto, há mecanismos de discriminação positiva, sabendo-se que existem muitas pessoas que não têm acesso à Internet. No sistema da Educação, durante os períodos de pandemia, também se observou esse impacto e ainda certas necessidades [neste domínio]”, relembra João Paulo Dias.

“Agora, o Estado está a avançar sem garantir que esses sectores que já tinham mecanismos de discriminação associados, sem acautelar – creio – todas as garantias para que possa haver mecanismos de inclusão”, supõe este membro do Observatório Permanente da Justiça, anotando: “E nos tribunais também temos a mesma coisa. Há uma evolução muito grande, mais ainda temos uma Justiça as duas velocidades.”

Juízo de Proximidade de Fornos de Algodres. (© VJS – sinalAberto)

Isso porque, a seu ver, existirão “áreas da Justiça ou tribunais que dependem dos protagonistas ou dos actores que estão no terreno”. “Alguns magistrados trabalham, na totalidade, virtualmente e digitalmente, enquanto outros ainda forçam os funcionários a imprimirem todos os processos, porque só funcionam com papel”, explicita o sociólogo, criticando: “A alternativa também não está assim tão desenvolvida, em termos de ser prático trabalhar com milhares de documentos de formato digital. Só para referir que a questão do mapa judiciário se relaciona, um bocadinho, com isto tudo e com a transformação que está a ocorrer ao mesmo tempo em que foi implementada a reforma.”

Indagado sobre se se verifica alguma contaminação da justiça pela política, João Paulo Dias transmite ao sinalAberto que relativamente aos processos, “já nas últimas décadas, tem havido ambivalência e, mesmo, uma discussão académica sobre a politização da justiça ou acerca da judicialização da política”.

“Num país pequeno como Portugal, e olhando para os protagonistas desde 1974, a circulação entre magistraturas e a política – e vice-versa – é frequente. Portanto, é impossível que um magistrado que venha a ser ministro da Justiça ou secretário de Estado e, depois, regresse à magistratura não esteja contaminado pela política. Ou ao contrário, com magistrados que enveredam na política. Temos vários casos. Isso tem ocorrido com alguma frequência e levantado questões sobre a fuga de informações, etc.”, comprova o investigador do CES, lembrando “ainda recentes processos mediáticos que envolveram actores políticos e actores judiciais, os quais tiveram impacto negativo na justiça”.

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A voracidade mediática dos grandes processos

“Mas esses processos são regulares e irão continuar a ocorrer. A nossa surpresa foi que só passámos a ter esses grandes processos, no final dos anos 80 e mais nos anos 90, relacionados com os fundos europeus”, relembra João Paulo Dias, exemplificando: “Tivemos, então, vários grandes processos: o Processo UGT [recorde-se que a central sindical União Geral de Trabalhadores foi acusada de ter obtido mais-valias da formação para se financiar; nesse sentido, teria recorrido a subcontratações, com pessoas e entidades consideradas “cúmplices”], a par do caso do Fax de Macau”. Como escreveu Ana Sá Lopes, na edição de 7 de Janeiro de 2017, do jornal Sol: “O caso do fax de Macau leva à queda do Governador do território, Carlos Melancia, grande amigo de Mário Soares, acusado de corrupção – acabaria mais tarde por ser absolvido numa estranha decisão judicial onde foram condenados os corruptores[,] mas não foram descobertos os corrompidos. Melancia é obrigado a demitir-se depois de uma reunião em Belém com o Presidente Soares.” 

O sociólogo do CES/OPJ recorda também o que se passou com a gestão de fundos europeus. Como regista a organização Transparência Internacional, o Organismo Europeu de Luta Antifraude percebeu infracções penais e financeiras na atribuição de fundos europeus à empresa Tecnoforma, que teve Pedro Passos Coelho como consultor e administrador e Miguel Relvas como facilitador público de encaminhamento de negócios, entre outros megaprocessos.

Palácio da Justiça de Coimbra. Este edifício foi uma casa religiosa da Ordem Dominicana com o nome de Colégio de São Tomás e, enquanto residência privada dos Condes do Ameal, foi também conhecido como Palácio Ameal. (© VJS – sinalAberto)

“Isso começou a envolver diversos protagonistas – actores políticos, actores sindicais e actores económicos e grandes empresários – cujos casos foram conhecidos. E esse procedimento é saudável, significando que a Justiça está a funcionar em alguma coisa. A dificuldade que, depois, nós temos é ao nível da qualidade da investigação em criminalidade complexa com resultados que levem à condenação. Estamos a falar de 0,01% dos processos, mas marcam bastante a imagem da Justiça”, argumenta o investigador do CES e membro do OPJ. “Se nós formos ver o tempo médio dos processos na área do crime – atendendo ao grande volume da criminalidade corrente ou rotineira –, aí, a Justiça funciona ao nível das melhores da Europa ou, mesmo, do Mundo”, certifica o sociólogo.

“Como nos outros países, quando chegam processos muito complexos e de grande dimensão, o sistema não está preparado para funcionar de uma forma rotineira. Tem havido cá processos que classificamos – tal como salientou Boaventura de Sousa Santos, há uns anos  [mais propriamente em 2005, no texto ensaístico “A justiça em Portugal: diagnósticos e terapêuticas”, na qualidade de director do CES e do Observatório Permanente da Justiça] – de justiça dramática”, menciona João Paulo Dias.

No aludido estudo, Boaventura de Sousa Santos principia com a ideia de que, nas “últimas décadas, e em resultado de diferentes factores, alterou-se profundamente o contexto sócio-político do desempenho das funções judiciais, traduzido na emergência de situações de tensão institucional entre o sistema político e o sistema judicial, e no aumento do protagonismo social e político dos tribunais”. “É hoje [em 2005] visível que os tribunais não estavam preparados para os desafios decorrentes destas transformações”, frisa o director do OPJ.

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“Crise de credibilidade e de legitimidade”

No mesmo texto, o também catedrático (actualmente, jubilado) da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra esclarece que, em “boa parte por esta razão”, a “crise da justiça” e as “reformas para lhe fazer face têm estado, nos últimos anos, no centro do debate social e político”. “Recentemente [considerando a data de publicação do artigo], o reconhecimento da ineficiência das reformas para combater os bloqueios do sistema judicial conduziu à ideia de que a solução para os problemas da justiça, em especial para a chamada ‘crise de credibilidade e de legitimidade’, passam por um Pacto da Justiça que envolva as diferentes forças políticas e os agentes judiciais (magistrados judiciais e do Ministério Público, advogados, funcionários)”, prossegue o autor.

Nessa altura, Boaventura de Sousa Santos não só concordava com esta ideia como a considerava “uma via fundamental para a resolução da crise da justiça”. O director do OPJ alegava que a “celebração deste Pacto levanta, contudo, várias questões, para as quais é necessário encontrar resposta”. “São elas: em que consiste o Pacto? Qual o diagnóstico que lhe está subjacente? Qual a terapêutica proposta?”, avançava o dirigente do CES/OPJ.

Mais à frente, Boaventura de Sousa Santos escreve: “Hoje [no ano de 2005], em Portugal, por razões diferentes das prevalecentes noutros países, vivemos um momento muito forte de justiça dramática. O caso ‘Casa Pia’ e os casos que o antecederam deram uma visibilidade sem precedentes aos tribunais. Quem há dez anos se lembraria do nome de um magistrado?”

A seu ver, a “privatização da comunicação social, em meados da década de 90 do século passado, permitiu a transformação do drama judiciário num drama televisivo”. Nestas circunstâncias, constata que sempre que “a dramatização ocorre, o diagnóstico prevalece”. Em tal quadro dramático, o académico conimbricense supõe que são “os decisores políticos, os analistas, os comentadores quem molda a opinião pública sobre os problemas da justiça e sobre as suas soluções”.

No entender de Boaventura de Sousa Santos, a “privatização da comunicação social, em meados da década de 90 do século passado, permitiu a transformação do drama judiciário num drama televisivo”. (Créditos fotográficos: Matt C – Unsplash)

O citado autor salienta que, à luz da investigação e do diagnóstico do Observatório Permanente da Justiça, a ineficiência, a morosidade, a inacessibilidade e o desperdício são os quatro grandes problemas da justiça portuguesa, os quais “revelam uma grande ‘resistência’ a serem resolvidos”.

Ainda a respeito da “justiça dramática” em Portugal, Boaventura de Sousa Santos enuncia vários casos: “O chamado caso ‘Casa Pia’ é, neste momento [no ano de 2005], o caso mais dramático. Mas tivemos outros, como os casos ‘Moderna’, ‘Partex’, ‘Melancia’, ‘Vale e Azevedo’, ‘Setúbal Connection’, ‘Aveiro Connection’, ‘FP-25 de Abril’, ou os casos de corrupção associados ao Fundo Social Europeu.” “São estes os casos que trouxeram a justiça para a ribalta mediática e são eles também que dominam o diagnóstico político”, expressa o director OPJ.

Voltando à conversa com João Paulo Dias, este sociólogo do CES subscreve Boaventura Sousa Santos, explicitando: “São esses casos – cinco, 10, 15 ou 20 casos num milhão, por ano – que constituem uma disfunção para o sistema. E o sistema não tem, por vezes, os [necessários] mecanismos de qualidade. Mas deveria ter, porque, sob o ponto de vista económico, há um retorno que justifica um investimento maior nessa área de especialização, para o sistema possuir a capacidade de lidar com grandes processos.”

Em tom crítico, o nosso entrevistado manifesta que não é com poucos recursos nem com “pouca gente especializada” que se conseguem resultados “na investigação das áreas complexas”. “Hoje, sabemos que a criminalidade complexa e financeira é um mundo muito difícil de investigar”, insiste João Paulo Dias, sublinhando que, na perspectiva economicista, “é um bom investimento para o Estado apostar na capacitação do sistema judicial para pesquisar a criminalidade complexa, porque vai reaver [esses custos] através dos impostos ou do congelamento de bens”.

Não é com poucos recursos nem com “pouca gente especializada” que se conseguem resultados “na investigação das áreas complexas”

No que concerne à reforma do mapa judiciário, este membro do OPJ circunscreve-a a “preocupações economicistas”. “Ninguém faz uma reforma destas – à qual chamaram a reforma do século – sem dinheiro. E Portugal fê-lo! Como é que podem querer resultados, a curto e a médio prazo, quando a única coisa que se fez foi uma reorganização de cosmética, na minha opinião?”, reflecte o sociólogo. “Porquê?”, interroga, anotando que “90% a 95% dos casos decorrem nos mesmos edifícios, com a reorganização de alguns serviços e a capa de um tribunal central, cujo conselho de gestão foi descapitalizado de competências”.

“Não se pode fazer omeletas sem ovos! E o Estado centralista não largou mão, porque isso tinha custos e consequências políticas, a nível da descentralização da gestão dos tribunais. Aí, estamos a tocar numa coisa que é a independência da Justiça, que se garante de uma forma externa e interna. De uma forma interna, no modo como o poder legislativo tem capacidade ou não de aprovar leis que possam limitar a independência dos tribunais. Temos um sistema relativamente equilibrado, em que a independência da Justiça está relativamente garantida”, explicita João Paulo Dias.

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A “fraude” de uma “reforma sem meios”

Para este investigador do CES/OPJ, “a outra forma de limitar a Justiça é através dos meios que se disponibilizam”, argumentando: “A Justiça pode ser independente, mas, se não tiver meios para isso, dificilmente consegue executar as suas funções. Fez-se uma reforma sem meios. E, por isso, digo que há, aí, uma fraude, ao fazer-se e ao manter-se uma reforma sem dinheiro. Na altura em que foi feita, quis-se poupar dinheiro e mostrar à troika que se estava a fazer uma grande poupança. Na prática, não foi assim tão grande a poupança que deve ter havido…”

“Não se pode fazer omeletas sem ovos! E o Estado centralista não
largou mão, porque isso tinha custos e consequências políticas, a nível
da descentralização da gestão dos tribunais”, realça João Paulo Dias.
(© VJS – sinalAberto)

Em entrevista ao Jornal de Negócios (14.05.2014), a então ministra (Paula Teixeira da Cruz) disse que a primeira actuação do Ministério da Justiça em relação à troika foi “apresentar-lhe o seu próprio programa e, face ao memorando, demonstrar que não era possível fazer uma reforma eficaz sem uma visão sistémica”. A governante acrescentou que a grande preocupação era a acção executiva, explicando: “Para resolver realmente este problema, tinha de mexer na a[c]ção declarativa para que o sistema fosse harmónico e para que daqui a uns anos não surgissem novos problemas”.

A este propósito, no Dia do Advogado de 2012, cuja sessão solene decorreu a 19 de Maio, em Lisboa, o então bastonário da Ordem dos Advogados mostrou-se preocupado com o facto de os “dirigentes do País só falarem em dinheiro, como multiplicá-lo, nem que seja à custa dos mais desumanos sacrifícios impostos às pessoas”. “Quem não tiver dinheiro, não tem direitos”, expressava António Marinho e Pinto.

Por sua vez, a 14 de Janeiro de 2013, o então presidente do Tribunal de Contas, Guilherme de Oliveira Martins, ao intervir numa conferência sobre a Lei dos Compromissos e a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (um sector à espera de soluções consistentes, como acontece também no da Justiça), realizada na Reitoria da Universidade de Lisboa, declarava: “É indispensável que percebamos que qualquer alteração feita em Portugal deve ser feita por portugueses e tendo em conta os órgãos de soberania. Não é bom que a política portuguesa seja feita a partir de economistas visitantes.” (In DN, 14.01.2013)

“E, depois, não se fez a reforma com pés e cabeça, incluindo tronco e membros! Eu diria que ficou, ali, a meia barriga. Porquê? Mudou-se o modelo de gestão, agregaram-se as comarcas, manteve-se a ocupação dos edifícios com serviços mais especializados e distribuídos com diferentes categorias: justiça de proximidade, de secções e, ainda, tribunal central de primeira instância. Contudo, na prática, o sistema continuou a funcionar nos mesmos moldes no que se refere à distribuição territorial, com excepção das comarcas que acabaram por ser encerradas”, critica, por sua vez, João Paulo Dias, apesar de o aludido novo mapa judiciário visar uma ampla reorganização do sistema judiciário português, considerando três objectivos primordiais: alargar a base territorial das circunscrições judiciais, instalar jurisdições especializadas a nível nacional e implementar um outro modelo de gestão das comarcas.

Juízo de Proximidade de Mação – Palácio da Justiça, na Avenida Eng. Adelino Amaro da Costa. (© VJS – sinalAberto)

Com a regulamentação da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), através da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, cada uma das 23 novas comarcas subdivide-se em instâncias centrais e locais. Neste contexto de mudança, foram extintos 20 tribunais, com a alegação de que apresentavam um reduzido volume processual (inferior a 250 processos por ano), a par das precárias condições rodoviárias e da escassez de transportes para as respectivas populações, atendendo ao seu suposto volume processual diminuto e que, assim, não justificavam a conversão para secções de proximidade.

Para o investigador João Paulo Dias, não eram, de facto, essas 20 pequenas comarcas que estavam a causar a perda de dinheiro no Ministério da Justiça. “Foi, sim, uma medida para a troika ver!”, comenta, recordando: “Nós – eu e a minha colega Conceição Gomes, do Observatório Permanente da Justiça –, no final dos anos 90, fomos visitar o País Basco, porque estava a ser feita uma grande reforma do mapa judiciário nessa região, que tinha uma situação particular, ainda, de terrorismo – e, portanto, todos os edifícios eram construídos com cuidados em termos de segurança.”

A respeito da experiência de modernização da Justiça no País Basco, recorremos ao estudo “A Administração e Gestão da Justiça – Análise comparada das tendências de reforma”, dirigido cientificamente por Boaventura de Sousa Santos, coordenado por Conceição Gomes e divulgado pelo OPJ/CES, em Novembro de 2001. Neste relatório preliminar, assinala-se que, a partir de 1 de Janeiro de 1988, “foi transferida para a Comunidade Autónoma do País Basco a competência para gerir os meios económicos e materiais da administração da justiça no seu âmbito territorial” e que esta competência foi alargada, em 1997, “à gestão de todo o pessoal ao serviço da justiça (médicos forenses, oficiais de justiça, auxiliares de justiça, psicólogos, peritos, tradutores, etc.), com excepção dos juízes e dos magistrados do Ministério Público”.

Refere-se também na mesma monografia que, naquela altura, “a Administração Regional recebeu, ainda, competência para a gestão dos meios materiais ao serviço do Ministério Público”. “As reformas judiciais concentram-se, por isso, nas áreas da competência do Governo da Comunidade Autónoma do País Basco: infra-estruturas judiciárias; informatização dos tribunais; reorganização dos serviços, designadamente das secretarias judiciais; e formação dos funcionários”, como especifica o mencionado estudo comparativo em relação à administração e gestão da justiça.

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Estudo comparativo da administração e gestão da justiça

No entender de João Paulo Dias, esse conjunto de requisitos consiste em “algo que, aqui, em Portugal, também deve ser garantido nos tribunais”. “Como sabemos, uma das questões mais criticadas pelos actores judiciais é a falta de condições de segurança. E só não temos mais situações [perigosas], porque somos um país, até agora, pacífico”, menciona o investigador, questionando: “Nessa reforma, o que é que se viu?” “Toda a reforma foi planeada e implementada em 10 anos, numa região de Espanha chamada País Basco, que tem cerca de três milhões de habitantes e que é um terço de Portugal”, acentua.

“E o que se fez? Planeou-se a construção de edifícios que, sim, vieram substituir alguma distribuição que existia, mas garantindo que esses serviços, quando entram em função, substituem os outros com qualidade e eficiência. Aqui, não! Aqui, fez-se tudo aos trambolhões, com aquela imagem espectacular da Justiça em contentores e do crash informático”, critica o sociólogo e membro do OPJ.

(opj.ces.uc.pt)

“Portanto, fez-se a ‘reforma do século’ num ano e sem dinheiro! Isto é um milagre português! Consequências? Naturalmente, tem na capacidade da melhoria e da organização do sistema, e no efeito psicológico dos funcionários que pensam: ‘Vamos, aqui, fazer uma reforma que vai, de facto, mudar o paradigma da Justiça.’ E não! Fez, apenas, uma cosmética. Melhorou alguns aspectos – isso é consensual. Entrou nas questões simbólicas da distribuição territorial e da coesão territorial, mas de uma forma negativa. E não contribuiu para a melhoria dos serviços do Estado, na sua globalidade, em termos de coesão territorial e de distribuição…”, manifesta, em jeito conclusivo, ao sinalAberto. “Diria, de uma forma resumida, que ficou uma reforma a meio caminho. Faltou a condenação, não é?”, graceja.

“Isto porque também a preparação da reforma ficou, um bocadinho, aquém daquele que é um processo normal. O que exige estudos com o envolvimento de peritos e a externalização… Quer dizer, houve estudos para uma determinada lógica de organização territorial e que trabalhava com a organização dos serviços do Estado com base em NUTS [considerando a aplicação da Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos – NUTS – estabelecida para a União Europeia, o território nacional está divido em regiões estatísticas]. Que, bem ou mal, é aquilo que está no terreno, na normalização do Estado. Porém, o Ministério da Justiça [ao optar pela distribuição distrital, quando já tinham sido extintos os governos civis] resolveu em contraciclo na organização da Justiça no país. E, aliás, atendendo às dimensões, depois, teve de, dentro dos mesmos distritos, criar mais do que um tribunal, como sucedeu em Lisboa e no Porto”, expõe o investigador do OPJ.

A este respeito, o antigo bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto, escrevia, em Abril de 2012, no editorial do Boletim OA (n.º 89): “Numa altura em que parte do governo põe em causa a velha divisão administrativa do território assente nos distritos (extinguindo os governadores civis), outra parte do mesmo executivo recupera esse modelo para fazer uma reforma do Mapa Judiciário, reduzindo o número de comarcas de mais de duas centenas para menos de duas dezenas e fazendo com que elas coincidam geograficamente com os distritos. E, de uma só penada, determina-se o encerramento de 47 tribunais por todo o País, sobretudo nas zonas do Interior mais deprimidas e em luta contra o despovoamento, desprezando totalmente os anseios das populações em matéria de Justiça. [sic]”

António Marinho e Pinto, antigo bastonário da Ordem dos
Advogados. (pt.wikipedia.org)

“Foi em contraciclo e com uma sobreposição dos serviços do Estado que já não batia certo. E isso foi feito, um pouco, à revelia e por teimosia política de alguns dirigentes da altura, incluindo a ministra da Justiça [Paula Teixeira da Cruz, que integrou o XIX Governo Constitucional de Portugal, de Junho 2011 a Outubro de 2015]”, reitera João Paulo Dias, notando: “Quando o novo governo [XXI, chefiado por António Costa] toma posse – a seguir ao [segundo e breve] governo do PSD/CDS [recorde-se que o Partido Social Democrata, então liderado por Pedro Passos Coelho, estabeleceu um acordo político de governação com o CDS-Partido Popular, dirigido por Paulo Portas] –, o executivo socialista, já com a ministra Francisca Van Dunem, [ampliou ligeiramente] o mapa judiciário”. Todavia, “não é fácil, também sem dinheiro, mexer num mapa que tinha sido mexido há quatro anos”.

A reforma do mapa judiciário ocorreu “em contraciclo e com uma sobreposição dos serviços do Estado que já não batia certo”, afirma João Paulo Dias, notando: “E isso foi feito, um pouco, à revelia e por teimosia política de alguns dirigentes da altura, incluindo a ministra da Justiça”

Para o ex-director-executivo do OPJ, “era impensável voltar a fazer uma reorganização estrutural”. “Foram feitos ajustes para cumprir as promessas políticas… E, evidentemente, sabendo que não têm grandes custos nem impactos financeiros. Foi, apenas, uma questão simbólica: ‘Dado que fomos contra esta reforma, criticámo-la, temos de fazer qualquer coisa para justificar.’ E foi o que se fez, com mais um bocadinho de cosmética”, reconhece o sociólogo do CES, insistindo: “Não se pode mexer, de forma maciça, no sistema, alguns anos depois. Há que preparar e esperar que esteja sedimentado.”

Contudo, “era possível mexer na melhoria da eficiência do sistema, em termos de gestão”. “E, aí, este governo [o XXI Governo Constitucional foi o segundo executivo formado com base nos resultados das eleições legislativas de 4 de Outubro de 2015, depois de o governo da coligação Portugal à Frente (PaF – aliança PSD/CDS-PP), com maioria relativa, não ter conseguido apoio parlamentar maioritário para governar] também não quis mexer muito no actual modelo, porque preferiu manter uma estrutura centralizada nos serviços do Ministério [da Justiça], acabando por limitar a efectiva capacidade e a independência da Justiça”, diz o sociólogo, acreditando “que é necessária a disponibilização dos meios para resolver os problemas”.

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Sobre a sujeição dos juízes a poderes de gestão

No seu artigo “O princípio do juiz natural e a nova organização judiciária”, o advogado (e docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) Manuel Nogueira de Brito, a respeito dos limites das possibilidades de sujeição dos juízes a poderes de gestão, escreve que a Proposta de Lei n.º 114/XII/2, de 22 de Novembro de 2012 – que aprova a Lei da Organização do Sistema Judiciário – “dá bem a medida das dificuldades subjacentes à sujeição dos juízes a poderes de gestão quando consigna, no seu artigo 89.º, n.º 4, que ‘[o]s objectivos processuais da comarca não podem impor, limitar ou condicionar as decisões a proferir nos processos em concreto, quer quanto ao mérito da questão, quer quanto à opção pela forma processual entendida como mais adequada’. Dir-se-ia que o legislador teve bem a consciência de estar a promover a ‘motorização’ da actividade dos tribunais, ao estabelecer a adequação entre os valores de produtividade calculados em abstracto por magistrado, constantes de portaria, e os valores registados em cada tribunal”.

Juízo de Proximidade de Mêda. (© VJS – sinalAberto)

Já no final do seu artigo (publicado na vigésima edição da revista Julgar, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, em 2013), Manuel Nogueira de Brito salienta que “não é admissível uma sujeição da actividade dos juízes a critérios de pura gestão, mas antes se torna necessária a refração normativa desses critérios através da sua expressão num regulamento”.

Dois anos depois, na edição n.º 27 da revista Julgar, as autoras Ana de Azeredo Coelho e Maria Inês de Moura escrevem um texto ensaístico relativamente ao “percurso para a fixação de objectivos processuais nos tribunais judiciais de primeira instância no ano 1 [2014/2015] da Reorganização Judiciária de 2014”, enunciando “o que foram as linhas de força delineadas pelo Conselho Superior da Magistratura, a preparação da elaboração das propostas dos tribunais, indicando alguns dos temas transversais das propostas e sumariando os desafios próximos colocados pela Lei de Organização do Sistema de Justiça”.

As mesmas autoras admitem, na introdução do seu artigo, que a “perspe[c]tiva teórica sobre a adequação da aplicação aos tribunais do modelo de gestão estratégica por objectivos ou sobre as diversas formas de efe[c]tuar essa aplicação com respeito pelos campos que se entrecruzam – organização, gestão e jurisdição – apenas nele surge enquanto pano de fundo das opções e dificuldades”.

Ao falarem das linhas orientadoras, Ana de Azeredo Coelho (juíza desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa, desde 2012) e Maria Inês de Moura (juíza desembargadora do Tribunal da Relação do Porto) recordam que a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, tinha entrado em vigor em 1 de Setembro de 2014 e que “impõe um modelo de gestão dos tribunais judiciais de primeira instância baseado na definição de obje[c]tivos”. “Pacífica pareceria então a existência de uma obrigação de fixação de objectivos estratégicos e processuais. A realidade negou a aparente evidência”, reconhecem as autoras.

(rtp.pt)

Assim, as articulistas argumentam que, se, por um lado, “a lei apelava a que a definição se fizesse com referência a resultados estatísticos e estes eram/são inadequados” – devido ao “colapso do CITIUS e, sobretudo, [a]o modo como a migração de processos foi executada tornaram caóticos e contraditórios os resultados estatísticos extraídos do sistema”. “Por outro lado, a fixação de obje[c]tivos é dificultada por a reorganização judiciária ter surgido em contraciclo económico, com as inerentes dificuldades de investimento, em alguns casos mesmo para a obtenção dos recursos mínimos”, prosseguem as autoras, especificando que tal “determinou se mantivesse, ou em algumas comarcas se acentuasse, a escassez de funcionários, se mantivessem ou agravassem as dificuldades de adequação de instalações com a necessidade de deslocalização de instâncias, ou se verificasse a simultaneidade da entrada em funcionamento dos novos tribunais com a realização de obras nos edifícios onde iriam funcionar, ou com a sua instalação em contentores”.

Refira-se que, por exemplo, no início de Setembro de 2012, como informa o Boletim AO, o Sindicato dos Oficiais de Justiça entregou ao Ministério da Justiça o “caderno reivindicativo para 2013”, alertando que o quadro de oficiais de justiça estava “abaixo da linha de água” e reclamando, então, o ingresso de 400 funcionários: 300 oficiais de justiça e 100 funcionários judiciais de carreira administrativa, além de sugerir a revisão do estatuto profissional.

No gráfico, observamos o pessoal ao serviço nos tribunais, segundo a carreira/categoria, nos anos de 2009 a 2018 (magistrado – eixo da esquerda; funcionários judiciais – eixo da direita). Fonte: Estatísticas da Justiça – Direcção-Geral da Política de Justiça (DGPJ) – In “As condições de trabalho dos a[c]tores judiciais em Portugal: reflexões a partir da queixa do SOJ à OIT”, Revista Inclusiones, volume 8, número 2 – Abril/Junho 2021.

Por fim, as juízas desembargadoras Ana de Azeredo e Maria Inês de Moura notam que “a questão do modelo de gestão por obje[c]tivos foi contaminada, na sua eventual possível neutralidade instrumental, ao serviço da gestão dos tribunais, pela perspe[c]tiva ideológica que o erigiu em novidade e em panaceia universal, tanto para os reais problemas do judiciário como para os que lhe são imputados na realidade do outro lado do espelho que por vezes caracteriza a narrativa no espaço público”.

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“Disfunções típicas de um Estado ainda centralista”

Retomando a entrevista a João Paulo Dias, o investigador declara ao sinalAberto: “Existem limitações financeiras, como todos sabemos, mas é nos gabinetes do ministério que decidem o ‘melhor’ modelo para cada comarca, o que, naturalmente, limita. Porque cada conselho de gestão, actualmente, se quiser fazer uma intervenção, tem de pedir cabimento orçamental ao Ministério da Justiça, apesar do seu orçamento anual prever isso. Verificamos, assim, as disfunções típicas de um Estado ainda centralista, quando se procurou implementar um modelo mais descentralizado, a nível da gestão, e mais autónomo”.

Na opinião deste investigador do CES, “poderia haver um maior diálogo, de facto, com o Poder Local e com os serviços descentralizados do Estado”, atendendo à dependência orçamental do Ministério da Justiça em relação ao Ministério das Finanças. A seu ver, importa que, no Orçamento de Estado, ao existir “uma transferência de verbas, de acordo com os orçamentos aprovados por ano”, haja “uma maior capacidade na sua execução, independentemente das famosas cativações”. Todavia, tal não se observa a esse respeito, “nem em pequenas intervenções”, continuando a ser “necessário pedir autorização aos serviços centrais do Ministério da Justiça”.

“Há um sentimento positivo dos impactos da reforma em relação a
essa capacidade de gestão processual do sistema, mas julgo que há
vários outros problemas que estão associados a esta distribuição
territorial, os quais não podem ser escamoteados”, frisa o sociólogo
João Paulo Dias. (© VJS – sinalAberto)

Em jeito de balanço, este investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, especialmente no contexto do Observatório Permanente da Justiça, identifica impactos com a reforma da Justiça implementada a 1 de Setembro de 2014, ao abrigo da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto). “Houve algum impacto positivo na capacidade de o sistema gerir o volume processual. O volume processual diminuiu ligeiramente em 2020, por causa da pandemia. Contudo, nos outros anos, o sistema [judiciário] estava a conseguir finalizar mais processos do que aqueles que entravam. Ou seja, o número de pendentes registou algum abaixamento geral”, assinala João Paulo Dias.

“Há um sentimento positivo dos impactos da reforma em relação a essa capacidade de gestão processual do sistema, mas julgo que há vários outros problemas que estão associados a esta distribuição territorial, os quais não podem ser escamoteados. E, no Observatório Permanente da Justiça, tratámos de vários… Mesmo sem gastar muito dinheiro, é possível reorganizar ligeiramente, para que os serviços do Estado sejam mais coincidentes ou sobrepostos. Para isso, não seria preciso uma grande reforma do actual modelo, mas reajustamentos territoriais e de competências”, advoga o investigador do CES/OPJ, em declarações ao sinalAberto.

“Algo que existe – mas que não é muito conhecido nem muito discutido, em termos de prioridades – é o mapa de investimento de infra-estruturas na área da Justiça. E isto é importante, porque as funções simbólicas dos tribunais, neste momento, também estão espartilhadas, porque, em vários sítios, estão distribuídos por vinte edifícios. Ou seja, a mesma comarca, como a de Coimbra, está distribuída por vinte e poucos edifícios. Não existe capacidade simbólica para o cidadão identificar o tribunal como aquele edifício”, julga João Paulo Dias.

“Algo que existe – mas que não é muito conhecido nem muito discutido, em termos de prioridades – é o mapa de investimento de infra-estruturas na área da Justiça”

Ao admitir que esta reforma judiciária desvalorizou a função simbólica dos tribunais, tendo-os, praticamente, apagado do mapa e substituindo-os por juízos, o mesmo sociólogo do direito acentua a importância do simbolismo dos próprios edifícios. “Não é por acaso que a Assembleia da República tem aquele edifício, que todos identificam, onde está o Poder Legislativo. Na realidade, os tribunais também precisam desse simbolismo”, acentua, censurando: “Em Coimbra, constitui uma situação grave a inexistência de um tribunal como o que tem vindo a ser prometido e discutido desde 1974. Só nesta cidade, os vários serviços estão distribuídos por vários edifícios!”

Juízo de Proximidade de Murça. (© VJS – sinalAberto)

No quarto trabalho jornalístico deste dossiê – “Justiça: o que não se lê no mapa” –, citámos o antigo presidente da Câmara Municipal de Murça, João Luís Teixeira Fernandes, que, enquanto esperava “novamente uma acção concertada entre as várias autarquias afectadas” pela nova reforma da justiça, lamentava (segundo o jornal Público, na edição de 17 de Outubro de 2012) que fechar os tribunais “é decapitar a simbologia do poder judicial do interior e fazer a justiça regressar aos pelourinhos”, supondo que tal decisão iria “reforçar a desertificação do interior”.

Para o sociólogo do CES, é relevante “o peso da imagem e da eficiência” na arquitectura dos tribunais, enquanto espaços públicos em que as pessoas valorizam a sua representatividade, identificando os edifícios, a sua funcionalidade e o acesso ao direito e à justiça.

Torre do Arnado, na cidade de Coimbra. (© VJS – sinalAberto)

“Em Coimbra, o que se gasta em rendas é brutal! Embora suficiente para o Estado pedir um empréstimo e pagá-lo com o volume das rendas que despende anualmente, de forma a ter um tribunal em condições, que agregasse determinados serviços e pudesse fazer poupanças e eficiências com os funcionários, com o sistema e com o economato… Tudo! Mas não. Continua-se a arrastar, porque há edifícios pelos quais os proprietários estão a receber milhares de euros por mês. Porém, se formos para Lisboa, vemos a mesma coisa”, confronta João Paulo Dias.

“Em Coimbra, temos situações até de alguma gravidade, em que estão pessoas a trabalhar num edifício, como a Torre do Arnado, com os Juízos Cíveis. O que, para além das condições de trabalho serem exequíveis, apresentam perigos de incêndio e sem acessibilidades facilitadas, em casos de assaltos ou de outras intenções. E, portanto, está aqui uma situação potencialmente explosiva. Mas, no fundo, em termos económicos, com grandes perdas para o Estado, a médio e a longo prazo”, particularizou o sociólogo do CES/OPJ, concluindo, esperançado: “Que venha uma verdadeira reforma, que era o que faltava no âmbito do mapa judiciário!”

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Marinho e Pinto: “Há causas com pouco valor económico que são lições enormes para a sociedade”

“Para manter a paz social e evitar convulsões, tem de se responder atempadamente. A questão da troika foi uma desculpa esfarrapada de pessoas como a ex-ministra, Paula Teixeira da Cruz”, argumenta o advogado António Marinho e Pinto. (© VJS – sinalAberto)

Marcámos encontro com António Marinho e Pinto (que foi bastonário da Ordem dos Advogados entre 2008-2010 e reeleito em 2011, até 2013) para uma entrevista, na manhã de 6 de Maio de 2021, num café da Avenida Calouste Gulbenkian, em Coimbra. Durante a entrevista, bastante informal, o advogado, político e antigo jornalista mantém um discurso aberto e marcadamente frontal. Enquanto procuramos saber o que este anterior dirigente da OA pensa da decisão de se avançar com o novo mapa judiciário, que entrou em vigor a 1 de Setembro de 2014, perpassa a ideia de que – como salientava Martin Luther King – “a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo o lugar”.

“A questão central do novo mapa judiciário é um erro político clamoroso, que assenta só em perspectivas economicistas. Só! Pensaram que iam poupar. A troika, pelo contrário, onde não cortava ou onde dizia para não cortar era no sistema da Justiça. Porque o sistema judiciário tem de funcionar bem, sobretudo, quando há restrições graves a outros níveis da economia”, expende o advogado, nascido a 10 de Setembro de 1950, em Vila Chã do Marão, no concelho de Amarante (interior do distrito do Porto).

“Para manter a paz social e evitar convulsões, tem de se responder atempadamente. A questão da troika foi uma desculpa esfarrapada de pessoas como a ex-ministra, Paula Teixeira da Cruz, que tinha uma agenda pessoal para a Justiça: era a de perseguir os advogados, porque ela foi candidata à Ordem dos Advogados e teve um resultado que a humilhou, bem como a um indivíduo chamado João Correia. E, portanto, ficou com um ódio de morte aos advogados. Depois, inventou calúnias contra os advogados, dizendo que mais de um terço deles faziam fraudes”, declara António Marinho e Pinto ao sinalAberto.

“Um período de crise, de grande austeridade ou de grande contenção económico-financeira, cria um ambiente social propício à violência e aos conflitos. E a Justiça tem de estar apta a responder com eficácia”, explana o ex-bastonário da OA, Marinho e Pinto. (© VJS – sinalAberto)

“Eu fiquei espantado. Foi-se averiguar. Abri as portas todas para averiguar isso: ‘Se for verdade, os advogados vão para a cadeia!’ Foi condenado apenas um, porque o tipo, de facto, tinha falsificado. Um só, nos mais de dez mil advogados”, esclarece este causídico, filho de um alfaiate e de uma costureira que o levaram para o Brasil, com apenas seis meses, tendo vivido na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro, até aos 14 anos.

O antigo dirigente da OA, no período de 2008 a 2013, crê que outra razão para a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março (o qual, como já aludimos, procede à regulamentação da Lei da Organização do Sistema Judiciário), “foi cortar dinheiro da Justiça para outras coisas, quando deveria ser o contrário”. “Um período de crise, de grande austeridade ou de grande contenção económico-financeira, cria um ambiente social propício à violência e aos conflitos. E a Justiça tem de estar apta a responder com eficácia. Ora bem, o que é que acontece? Ela [a ministra da Justiça, no XIX Governo Constitucional] avançou com aquilo [novo mapa judiciário]. E o Passos Coelho – que, a princípio, até me pareceu ser outra pessoa… – marimbou-se ou abandonou e deixou tudo entregue a Paula Teixeira da Cruz. E ela fez da Justiça a sua quinta, e fez umas coisas…”, critica Marinho e Pinto, que também presidiu à União dos Advogados de Língua Portuguesa, de 2002 a 2003.

O então bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto, na presidência da UALP. (In Boletim AO, edição n.º 97, de Dezembro de 2012)

O antigo bastonário admite que a ex-governante social-democrata, advogada e também docente de Direito Administrativo assumiu um poder excessivo, que Pedro Passos Coelho, enquanto primeiro-ministro, “caucionou”. “Eu escrevi duas vezes à troika – aos três membros da troika: à Comissão Europeia, ao Banco Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional [recorde-se que Portugal foi intervencionado três vezes pelo FMI: em 1977, em 1983 e, através do Memorando de Entendimento, assinado a 17 de Maio de 2011] – dando conta de que ela cortou ou deixou de pagar o apoio judiciário aos advogados”, relembra Marinho e Pinto. “E eles obrigaram-na a retroceder e a pôr dinheiro para o apoio judiciário, justamente com esta argumentação: a Justiça tem de funcionar neste momento”, explicita o causídico. Ao desenvolver o suposto pensamento da estrutura tripartida que acompanhou Portugal, durante uma década, no contexto da dita ajuda externa, atendendo aos mecanismos de financiamento então disponíveis no quadro europeu, relata: “Vocês cortem em tudo e em mais no que quiserem, mas não na Justiça!”

“Todas as localidades de Portugal que têm dignidade para serem sede de concelho devem ter um tribunal. O tribunal é o símbolo da soberania nacional”, compreende o advogado António Marinho e Pinto. (© VJS – sinalAberto)

“Foi uma medida para poupar dinheiro, para gastar noutro sítio. Mas não se poupou. Fecharam os tribunais e obrigavam as pessoas a fazerem, às vezes, centenas de quilómetros nas deslocações de ida e de volta. E, em muitos casos, as pessoas não podiam ir e vir no mesmo dia, porque não tinham transportes públicos. Isto é de uma insensibilidade brutal. É de alguém que olha para as pessoas como números ou como pontos nos gráficos dos seus gabinetes. É de alguém que acha que o mapa judiciário é um tabuleiro de xadrez em que pode mudar as peças a seu bel-prazer!”, insiste Marinho e Pinto.

“Foi uma medida para poupar dinheiro, para gastar noutro sítio. Mas não se poupou. Fecharam os tribunais e obrigavam as pessoas a fazerem, às vezes, centenas de quilómetros nas deslocações de ida e de volta”

Recordando uma entrevista conduzida por Ana Isabel Cabo para o boletim Ordem dos Advogados (edição n.º 86, de Janeiro de 2012), o falecido António Arnaut (advogado, co-fundador do Partido Socialista e antigo ministro dos Assuntos Sociais) realçava que “o bom funcionamento da Justiça tem a ver com o Estado de Direito e a democracia”. “Ponho a Justiça em primeiro lugar, porque a Justiça é a trave-mestra do Estado de Direito, é o último reduto que o cidadão dispõe para garantia dos seus direitos. E se ele não funcionar, ou funcionar mal, o Estado de Direito democrático está em grave perigo”, argumentava António Arnaut.

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“O tribunal é o símbolo da soberania nacional”

Assim, compreende-se o ex-bastonário da OA, quando afirma: “Todas as localidades de Portugal que têm dignidade para serem sede de concelho devem ter um tribunal. O tribunal é o símbolo da soberania nacional. E da dignidade, em sentido amplo, considerando a própria dimensão, o desenvolvimento local, o número de pessoas e as tradições. Para ser sede de concelho tem de ter, ali, um tribunal, porque a justiça deve ser feita no local onde são praticados os factos que a reclamam.” E exemplifica: “Se eu mato um tipo em Coimbra e vou ser julgado na Figueira da Foz, isso não tem nenhum efeito dissuasor, aqui. A sentença passa a não ter valor simbólico nem preventivo. Não previne a prática de novos crimes.”

Juízo de Proximidade do Bombarral e Julgado de Paz do Oeste.
(© VJS – sinalAberto)

Para Marinho e Pinto, “uma sentença, em Direito Penal, tem dois objectivos, entre outros: fazer a prevenção geral e a especial”. “A prevenção especial tem de ter uma dureza que impeça e que convença a pessoa que cometeu um crime a não voltar a fazê-lo. E tem de ter, depois, uma dimensão de prevenção geral. Ou seja, as pessoas que, porventura, possam estar tentadas a praticar um crime, vendo o que aconteceu àquele, perdem a vontade de o fazer. E tem outro efeito também muito importante que é tranquilizar as pessoas”, interpreta o antigo dirigente da OA, tido por António Arnaut como “uma pessoa independente”, porque – como alegava o advogado e ministro dos Assuntos Sociais do II Governo Constitucional (na mesma entrevista de Janeiro de 2012) – “não está dependente de nenhum grupo económico, [nem] de grandes interesses, [nem] de grandes escritórios”.

Na óptica de António Marinho e Pinto, “a sentença justa tranquiliza”. “A sentença fundamentalista ou terrorista, que é capaz de pôr logo na fogueira e de queimar alguém vivo, aterroriza as pessoas. E isso pode acontecer-me. Se eu, um dia, perco a cabeça e dou dois tiros aí num gajo, isso é terrorista… A justiça tem de tranquilizar as pessoas. Tem de ser justa, mas ser justa não é ser vingativa”, prossegue o nosso entrevistado, confirmando a apreciação de António Arnaut: “Além de ser independente, tem uma frontalidade que ainda não vi nos advogados, simplesmente usa às vezes dessas suas qualidades para denunciar certos erros e certas anomalias da Justiça com alguma acrimónia desnecessária […]”

No entender de Marinho e Pinto, “essa medida [de avançar com o novo mapa judiciário] acabou por fazer que as pessoas se deslocassem, por vezes, a mais de cem quilómetros”. Entre as alterações mais significativas do, então, novo mapa judiciário – no contexto da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – decidiu-se pela constituição de 23 comarcas, a que correspondem os grandes tribunais judiciais cujas sedes coincidem, na prática, com os distritos administrativos existentes, à excepção de Lisboa (com três novas comarcas) e do Porto (com a criação de duas comarcas).

(Créditos fotográficos: Paulo Evangelista – Unsplash)

Note-se que a organização judiciaria que existia antes de 1 de Setembro de 2014 (data em que entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 14/2014, de 27 de Março), foi criada em 16 de Maio de 1832, por José Xavier Mouzinho da Silveira. Ou seja, até à decisão política da ex-ministra da Justiça (Paula Teixeira da Cruz), a reforma judiciária de Mouzinho da Silveira durou 182 anos. “E funcionou”, assevera Marinho e Pinto, questionando: “Se funcionou, porque se foi mexer nela? Porque vamos concentrar os tribunais nos grandes centros urbanos, onde se despersonaliza a justiça? É como as Lojas do Cidadão, fábricas de enorme burocracia, que concentram ali tudo. Por isso, encontramos filas enormes de pessoas, na rua, à chuva…”

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“A Justiça tem de ser descentralizada”

“A Justiça tem de ser descentralizada. É, nisso, que está a sua [verdadeira] dimensão: descentralizada. Eles fazem isso para aquelas justiças informais – julgados de paz, etc. – e não fazem o mesmo com os tribunais porquê? Com excepção dos juízes, que gostam de estar sentados à espera de que as pessoas vão até eles… ‘As pessoas de Oliveira do Hospital que venham cá!’, pensará o magistrado. Portanto, isto está errado. A justiça tem de ir ao local onde as pessoas a reclamam. Não serão, por exemplo, os munícipes de Pampilhosa da Serra a terem de se deslocar a Coimbra”, especifica Marinho e Pinto, admirando a reforma avançada, em 1832, por Mouzinho da Silveira (sobre este político liberal que destruiu as estruturas sociais, políticas e económicas do Antigo Regime, veja também a reportagem “Do Alto Alentejo ao Alentejo Central: a Justiça em Castelo de Vide e em Portel”). De facto, esse diploma legislativo de Mouzinho da Silveira consignou a divisão judicial do território em comarcas (afectando os juízes de direito às respectivas circunscrições ou áreas judiciais, na alçada de um tribunal de primeira instância; e regulamentando os tribunais de recurso), assim como tratou da organização (nomeação e atribuições) do pessoal (trabalhadores de justiça e jurados).

Rua de Castelo de Vide. (© VJS – sinalAberto)

A antiga reforma (de 1832) seguia a divisão administrativa igualmente criada pelo político liberal e estadista Mouzinho da Silveira, o qual instituiu como território das comarcas o dos municípios nessa altura estabelecidos, procurando aproximar os munícipes e os tribunais de primeira instância, assim como colocar, pelo menos, um juiz em cada comarca ou município.

Por conseguinte, o nosso entrevistado, deduz que “a Justiça é o símbolo número um da soberania nacional e da autoridade do Estado”. “Ao fecharem os tribunais, dá a ideia de que a ditaram ao abandono nesses concelhos. Sobretudo, numa altura em que fecham filiais da Caixa Geral de Depósitos, postos territoriais da Guarda Nacional Republicana ou postos e subpostos da Polícia de Segurança Pública, bem como as estações e postos dos Correios”, explana Marinho e Pinto. “Fecham tudo! E fecham também a Justiça. Daí que os cidadãos questionem: – Nem os tribunais aqui ficam?! Onde é que a gente vai queixar-se do vizinho que ocupa a nossa propriedade?”, ilustra o antigo bastonário da OA.

“Isto era uma meridiana evidência. E a ministra da Justiça [Paula Teixeira da Cruz] não aceitou nem sabia disto, porque é uma pessoa que viveu sempre em Lisboa. Nunca andou pelo país e não o conhece. Houve pessoas de Amarante que tiveram de ir tratar de assuntos ao tribunal de Penafiel e pessoas de Penafiel que tiveram de ir não sei aonde…”, expõe ao sinalAberto, justificando: “Eu sou de uma aldeia rural de Amarante e conheço as aspirações dessas pessoas, porque nasci lá.”

Amarante e o rio Tâmega.  (Créditos fotográficos: António Pinto – portugaltravel.org)

A respeito da então ministra da Justiça, o reconhecido advogado António Arnaut manifesta, em Janeiro de 2012, na entrevista ao boletim OA: “Tenho consideração pessoal por ela, mas acho que ainda não tem ideias claras e distintas sobre as reformas que vai fazer. Começou a atacar desnecessariamente os advogados que participam no apoio judiciário, porque não pode medir todos pela mesma medida e lança um labéu sobre toda a classe.”

Por sua vez, em conformidade com o discurso proferido na Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial, em 31 de Janeiro de 2012, Marinho e Pinto (na qualidade de bastonário da Ordem dos Advogados) adverte: “A Justiça não pode abandonar o Interior do País, pois isso representaria um perigoso retrocesso civilizacional e uma perigosa limitação política no acesso aos tribunais.”

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“Conheço as dimensões urbanas e rurais”

Mais de nove anos depois, em declarações ao sinalAberto, testemunha: “Fiz advocacia e tinha escritório na Tocha, em Cantanhede e em Coimbra. Conheço as dimensões urbanas e rurais. Nas aldeias e nas zonas rurais, as pessoas estão frequentemente em conflito por causa das extremas das propriedades. Há sempre alguém que rouba um metro ao outro. E, às vezes, matam-se, porque andam à sacholada, à machadada e aos tiros de caçadeira. Matam-se por um palmo de terra! É assim. Eu fiz julgamentos desses em Cantanhede, de alguém que matou outro que lhe tinha roubado uma coisa que nem chegava a um metro, numa extrema. E a Justiça tem de estar lá, cabendo ao juiz ir ao local e ver.”

Bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto, no seu último discurso de abertura do Ano Judicial. (In Boletim da OA, edição 98-99, de Janeiro-Fevereiro de 2013)

Com as alterações do sistema judiciário, as 23 novas comarcas subdividem-se em instâncias centrais e locais. E estas, na sua escala, tramitam e julgam as causas não atribuíveis à instância central, integrando secções de competência genérica, podendo ainda desdobrar-se em secções cíveis e criminais, envolvendo os pequenos crimes e as características de proximidade. Todavia, António Marinho e Pinto retoma a percepção de que não se justificava encerrar tribunais que apresentavam menos 250 processos, em média, por ano.

“Não. O juiz tem de lá estar. Agora, não tem é de estar a tempo inteiro. Pode fazer várias comarcas. Reservando, por exemplo, três ou quatro dias por semana para fazer julgamentos nas comarcas. E fica com um dia no gabinete, para despachar. Porque se têm poucos processos, os juízes podem exercer em diversas comarcas. O juiz que faz julgamentos na Pampilhosa da Serra, pode também fazê-los em Oliveira do Hospital ou em Góis e naquela zona. Agora, tem é de andar, mas eles não querem!”, ironiza o causídico.

António Marinho e Pinto retoma a percepção de que não se justificava encerrar tribunais que apresentavam menos 250 processos, em média, por ano. (© VJS – sinalAberto)

“Um tribunal marca a presença do Estado, é um símbolo de soberania. Mesmo que não julgue um processo durante um ano, as pessoas vêem-no ali. E isto é muito importante no imaginário das pessoas. Tem, de facto, dimensões simbólicas importantes”, insiste o advogado, que iniciou a sua vida profissional como jornalista, tendo, posteriormente, sido assessor do Governo de Macau e colaborado como docente universitário em várias instituições de Ensino Superior.

“A comarca tem competência genérica. Há comarcas que raramente têm um caso gravíssimo. Uma comarca rural não tem Direito Comercial e quase não tem Direito Administrativo nem Direito Fiscal, mas tem Direito de Família e Menores para dar resposta a essa população”, elucida, registando que “para se ser um bom juiz não se pode ter o poder de julgar aos 27 anos ou aos 28 anos de idade”. Marinho e Pinto defende que “o juiz deveria ter, pelo menos, 40 anos e deveria ter passado por outras profissões, como a de advogado”. “E só depois [investido da autoridade que o Estado lhe confere] procuraria julgar” os casos submetidos a seu juízo. Porém, “eles são formatados no laboratório do Centro de Estudos Judiciários (CEJ) e saem de lá iluminados, cheios de poder e pouca experiência; e, sobretudo, com pouca maturidade e pouco bom senso”.

“Um tribunal marca a presença do Estado, é um símbolo de soberania. Mesmo que não julgue um processo durante um ano, as pessoas vêem-no ali. E isto é muito importante no imaginário das pessoas”

Curiosamente, em entrevista publicada no boletim OA (edição de Janeiro-Fevereiro de 2013), o ex-procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, responde acerca da adequabilidade da formação ministrada pelo CEJ: “É uma questão que tem suscitado a minha perplexidade. O CEJ foi e é tido como uma escola de elite na Europa. No entanto, os resultados, analisados por observadores, não têm sido tão bons quanto se esperava. Admito que exista alguma distância entre a formação que se procura transmitir aos magistrados e a cultura dominante. A sociedade portuguesa tem da cidadania e dos deveres de cooperação com a Justiça uma perce[p]ção relativamente lassa. Seria necessário repor a autoridade e o prestígio dos tribunais.”

Como escreveu no editorial do boletim OA, de Fevereiro de 2012, António Marinho e Pinto é, igualmente, bastante crítico em relação às condições de acesso à advocacia. Assim, pensa que a Ordem dos Advogados “não existe para garantir o direito à profissão aos milhares de licenciados em Direito que todos os anos as universidades lançam no mercado”, mas “sim para garantir à sociedade que aqueles que vão exercer a advocacia estão devidamente preparados para isso”, recusando-se, enquanto bastonário, “a participar no lucrativo e inescrupuloso negócio que tem feito prosperar as escolas de Direito”. E frisou: “Pelo menos enquanto eu for Bastonário, [a OA] não venderá cédulas profissionais de advogado como as universidades têm estado a vender diplomas de licenciatura em Direito. [sic]”

Juízo de Proximidade de Monchique. (© VJS – sinalAberto)

Ao retomar a entrevista, Marinho e Pinto diz ao sinalAberto que “um tribunal tem de ter um juízo de competência genérica”. “Ou seja, o juiz vai lá fazer as diligências que devem ser feitas, assim como inquirir as testemunhas, fazer aquelas reuniões de conciliação e os julgamentos; principalmente, as audiências de julgamento”, esclarece. Quanto à decisão de as secções de competência genérica tramitarem e julgarem as causas não atribuíveis a outra secção de instância central e de terem competência para julgar acções declarativas cíveis de processos comum de valor igual ou inferior a 50 mil euros, o ex-bastonário da OA admite que “isso é outro erro, porque a dignidade judicial não deveria depender do seu valor económico”.

A seu ver, “há causas com pouco valor económico que são lições enormes para a sociedade”. Assim, anota: “Um desgraçado a quem roubou 40 mil ou 50 mil euros, o juiz passa a sentença e não há recurso. E se o juiz se enganou? E se o juiz estava feito com a outra parte. Já aconteceu isso. Tinha relações quase familiares. E ficam sem direito de recurso. Deve haver sempre, independentemente do valor das causas, um duplo grau de jurisdição. A decisão de um juiz que vê isto tem de ser sempre escrutinada por um juiz superior. ‘Ah, isto encarece!’ Não encarece nada.”

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Impactos da mudança de mapa judiciário

No respeitante às consequências da mudança de mapa judiciário, entre as quais o impacto nos processos judiciais então em curso, que foram redistribuídos pelos tribunais que passaram a ter competências para isso, o advogado Marinho e Pinto afirma que foi “uma machadada na coesão territorial”, mesmo que não tivessem sido “extintos” tribunais. 

Segundo informava o Governo, em 27 de Agosto de 2014, “mais de três milhões de processos, correspondendo a 97% do total, foram transferidos eletronicamente para os novos tribunais, no âmbito da reorganização do mapa judiciário”. Ou seja, pouco tempo antes (durante o mês de Julho) da aludida reorganização do mapa judiciário, que entraria em vigor no dia 1 de Setembro, “foram classificados mais de três milhões de processos, de acordo com as novas competências legais e as regras definidas pelo Conselho Superior da Magistratura e o Conselho Superior do Ministério Público, sob coordenação dos órgãos de gestão das 23 novas comarcas e com a colaboração dos respectivos oficiais de justiça”.

“Completamente! Não há coesão nenhuma. Este é um dos defeitos deste modelo político-social, que depende dos votos”, constata, denunciando as intenções políticas sem outros horizontes: “Damos tudo onde há votos, para conseguirmos votos.” “E isto não pode ser assim. Um governo, independentemente de onde obteve os votos, é um governo nacional, para todo o país. E tem de tratar todos os cidadãos igualmente. Não há cidadãos de primeira – no Litoral e nos grandes centros urbanos – nem há cidadãos de segunda, no Interior”, manifesta.

Reunião com a ANMP e representantes de 47 municípios. (In Boletim OA, de
Fevereiro de 2012)

“A justiça não é só para grandes centros urbanos, mas deve estar presente em todas as localidades do país que tenham dignidade para ser sede de concelho”, disse o então bastonário, na abertura de uma reunião que contou com a presença da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), de representantes de 47 municípios e das delegações da Ordem dos Advogados, tendo sido aprovada uma moção sobre a reorganização judicial, conforme regista o boletim AO, na edição de Fevereiro de 2012.

Esse encontro, promovido por António Marinho e Pinto, na sequência da proposta do mapa judiciário, ocorreu a 29 de Fevereiro, também com a presença dos conselhos distritais dos Açores, de Coimbra e do Porto, assim como de membros do Conselho Geral da OA.

“Há situações [inconcebíveis] em cidades como Lisboa e Porto, bem como na faixa litoral, onde o Estado gasta milhões de euros em bens culturais para minorias. No São Carlos, no Teatro Nacional São João e no teatro não sei do quê. Porém, no Interior, estão a fechar os centros de saúde, as maternidades… Quem é que aprecia o São Carlos? Eu gosto muito de ópera e vou lá. Mas é para uma minoria, no contexto de Lisboa e no contexto de outras cidades. E o Estado paga um teatro caríssimo, esplendoroso e dos melhores teatros de ópera da Europa. Contudo, fecha maternidades ou repartições das Finanças no Interior. Portanto, a ideia deve ser esta: ‘Como se faz o repovoamento?’ Abrindo serviços públicos, com funcionários públicos que se vão lá fixar. E alguém há-de construir casa para eles comprarem ou arrendarem. Irão ali ter filhos, os quais vão ter escola e centro de saúde… Isto é que desenvolve!”, preconiza o causídico António Marinho e Pinto, na expectativa de que “as empresas vão atrás”.

“Um governo, independentemente de onde obteve os votos, é um governo
nacional, para todo o país. E tem de tratar todos os cidadãos igualmente. Não
há cidadãos de primeira – no Litoral e nos grandes centros urbanos – nem há
cidadãos de segunda, no Interior”, manifesta António Marinho e Pinto.
(© VJS – sinalAberto)

“Todas as câmaras municipais oferecem terrenos para zonas industriais e ninguém quer ir para lá! Se não há pessoas?! Eu vou produzir em Bragança para vender em Lisboa?”, interroga o advogado, convencido de que os tribunais também contribuem para desenvolver o tecido empresarial dos municípios. “Sim. Está lá a Justiça para qualquer conflito. Não terão de andar a correr de um lado para o outro. Tudo isto funciona em conjunto, está interligado. À beira do tribunal, há (ou havia) sempre um quiosque que vendia papel selado… E também um restaurante, um café ou uma loja de fotocópias, por muito pequeno que seja o comércio local. O tribunal é uma das dimensões dos serviços públicos. O próprio Governo deveria descentralizar-se. Poderia haver membros do Governo em Castelo Branco, em Bragança ou em Portalegre. Hoje, o Governo pode reunir – e tem reunido – por videoconferência. Está tudo concentrado. Em Lisboa, entre as seis e as dez da manhã, entram 350 mil automóveis”, comenta, inferindo a possibilidade de o mapa judiciário ser ainda modificado. “É fazer a lei. É ter a coragem de a fazer!”, transmite com veemência.

“O tribunal é uma das dimensões dos serviços públicos. O próprio Governo deveria descentralizar-se”

Contudo, reconhece que “já foram corrigidos alguns excessos”. “A ministra Francisca Van Dunem [que foi membro da Rede Judiciária Europeia em matéria penal, entre 2003 e 2007, bem como representante do Conselho Superior do Ministério Público na Unidade de Missão para a Reforma Penal] corrigiu isso”, assinala Marinho e Pinto, verificando: “Mas é pouco, é insuficiente!”

Atendendo a que “cada juiz tem de decidir determinado número de processos por ano, sejam de que comarcas forem”, o ex-bastonário da OA sugere: “Se o seu gabinete do juiz está aqui, em Coimbra, e há necessidade de ir à Pampilhosa da Serra ou a Oliveira do Hospital, ele deve lá ir. O Estado paga-lhe a deslocação ou fornece-lhe meios para se deslocar.”

Palácio da Justiça de Coimbra. (© VJS – sinalAberto)

Embora não garanta que o novo mapa judiciário tivesse a finalidade de favorecer os juízes, Marinho e Pinto perfilha a ideia de que “a magistratura o apoiou, porque lhe interessava”. “Foi um mapa feito por pessoas que não têm uma visão de Portugal. Este país, para essas pessoas, é Lisboa. E não conhecem mais nada a norte de Sacavém nem a sul da Marateca. São pessoas que viveram sempre ali, em Lisboa, nos bares, nos cafés e nas pastelarias. Não têm uma visão para o país!”, censura.

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“Foi uma catástrofe o que essa senhora fez”

“E foi uma catástrofe o que essa senhora [Paula Teixeira da Cruz, enquanto ministra da Justiça] fez. Aliás, isso foi condimentado com medidas populistas. Ela queria fazer uma lista de certo tipo de criminosos… Em relação a pessoas que tivessem sido condenadas por pedofilia, alegava que tinha de se saber onde é que moravam, para os pais estarem avisados de que ali estava um pedófilo. Uma coisa horrível, como na Idade Média, em que punham uma campainha ao pescoço dos leprosos. Agora, voltava-se a colocar por certos crimes: ‘Cuidado, vai aqui um pedófilo! Afastem-se!’ Uma coisa horrível!”, caracteriza o advogado, que também foi eurodeputado entre 2014 e 2019.

“Ela era uma pessoa politicamente desequilibrada, fanática. E não teve um primeiro-ministro à altura. O então primeiro-ministro [Pedro Passos Coelho] abandonou isto. Deixou tudo ao critério dela”, qualifica António Marinho e Pinto, fazendo um “balanço negativo” do mapa judiciário. “Para mim, é negativo, independentemente do número de processos. Ninguém vai contabilizar nem contabilizou os casos que deixaram de ir a tribunal, porque as pessoas teriam de se deslocar, por exemplo, de Amarante a Penafiel”, expende o causídico e presidente honorário do Partido Democrático Republicano (PDR), do qual foi líder (até 2020) e co-fundador antes de se retirar da vida política.

Recorde-se que, em declarações à Lusa, em 2 de Outubro de 2019, na cidade de Amarante (na sub-região do Tâmega e Sousa), de onde é natural, Marinho e Pinto insistiu que “todo o Portugal do interior é marginalizado, é discriminado em favor da orla litoral, dos grandes centros urbanos da orla litoral”. Na ocasião, na qualidade de presidente do PDR, acusava o Governo português de pedir “dinheiro à União Europeia para colmatar o atraso das regiões do interior, de Trás-os-Montes, da Beira Alta, da Beira Baixa e do Alentejo”. “Quando eles [União Europeia] mandam o dinheiro para desenvolver essas regiões, o Governo utiliza esse dinheiro a comprar votos nos grandes centros urbanos do litoral”, manifestava.

Juízo de proximidade de Portel. (© VJS – sinalAberto)

Em relação à suposta morosidade processual, Marinho e Pinto confessa ao sinalAberto que não tem “dados sobre isso”. “O que sei é que muita gente deixou de acorrer à Justiça. Ou aceitavam em silêncio as patifarias que lhes faziam e não se queixavam ou, então, faziam a justiça pelas suas próprias mãos. Houve um aumento grave da criminalidade”, conclui, apesar de não dispor de informação que fundamente esta impressão. “Na altura, sim. Não me refiro a um aumento quantitativo, mas uma variação qualitativa de crimes graves, em termos de agressões contra pessoas, até homicídios”, clarifica.

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A justiça deve ir ao encontro da população

No que toca à sua participação junto do Poder Local, enquanto líder partidário, no contexto das eleições legislativas de 2015, “Marinho e Pinto foi ao Sabugal e reuniu-se com o presidente da câmara”, como informa a RTP Notícias. Nessa deslocação ao município raiano do distrito da Guarda, o então político “deixou o compromisso de que o tribunal voltará à terra[,] porque deve ser a justiça que vai ao encontro da população e não o contrário”.

“Quando estava na Ordem dos Advogados [na qualidade de bastonário], fui a três ou a quatro reuniões com autarcas. Penso que isso deixou, agora, de ter interesse para eles… Na política deles, há coisas mais importantes. Mas, de qualquer forma – o que é grave – há muita gente com casos que deixaram de ser resolvidos. É um retrocesso civilizacional. As pessoas não confiam nos tribunais. As pessoas pensam que, se forem a tribunal, é para gastar dinheiro ou para serem insultados pelos magistrados”, adianta Marinho e Pinto.

Há uma outra questão que, no seu entender, “favorece a existência de um tribunal em cada sede de concelho, que é a nossa tradição municipalista”. “Em princípio, é o alongamento do Estado. É o micro-Estado dos municípios. E, portanto, tem todas as valências… Tem de haver, ao nível municipal, praticamente, todas as valências que o Estado tem a nível nacional”, sustenta o advogado António Marinho e Pinto. Por conseguinte, “tem de ter aquelas coisas que o Estado propicia: um tribunal e, igualmente, um posto de saúde (um centro de saúde ou um pequeno hospital), assim como um banco, para as pessoas poderem levantar o seu dinheiro, e um posto dos Correios, para enviarem e receberem correspondência”.

Já no final da entrevista ao sinalAberto, o antigo bastonário da Ordem dos Advogados vinca a sua apreciação: “Portugal alienou parte significativa da sua soberania, por exemplo, à União Europeia. Na política de defesa nacional e também na política monetária: já não faz moeda, sendo o Banco Central Europeu responsável pela moeda única. Muitas das leis aplicadas em Portugal são feitas na Europa. A Justiça e a aplicação das leis, onde quer que ela seja objecto, deve ser feita por homens [e por mulheres] representantes da soberania nacional.”

Na edição n.º 100 do boletim da Ordem dos Advogados (em Março de 2013), Boaventura de Sousa Santos, enquanto director do Observatório Permanente da Justiça, traça uma retrospectiva em relação às mudanças no sistema de justiça, registando que a “principal conclusão é que nestas últimas décadas pouco mudou na estrutura e funcionamento do sistema de justiça por múltiplas razões, muitas delas evidenciadas em estudos do OPJ. [sic]”

Boaventura de Sousa Santos, relativamente ao livro “Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas – o caso português”, de que é co-autor e que foi publicado em 1996, diz que essa obra apresentava os resultados da investigação sociológica coordenada por si sobre o funcionamento dos tribunais e sobre as percepções dos Portugueses a seu respeito.

Uma das conclusões daquele estudo prende-se com “a hipertrofia das funções simbólicas e políticas dos tribunais em relação às funções instrumentais (funções de resolução de litígios e de controlo social)”. O sociólogo escreve ainda: “Chamava-se a atenção para o perigo de tal relação desproporcionada, que a prazo seria susce[p]tível de minar a própria legitimidade do protagonismo político e simbólico dos tribunais.”

Juízo de Proximidade de Tabuaço. (© VJS – sinalAberto)

Assim, o director do OPJ observava, igualmente, que “as funções políticas e simbólicas só se manterão a prazo se se obtiver um maior grau de convergência entre elas e as funções instrumentais”. “Se tal não acontecer, a continuidade do desprezo técnico ou a falta de vontade política para judicializar a conflitualidade social e a conflitualidade política pode conduzir à politização desta omissão e, portanto, à politização da própria irrelevância dos tribunais”, avisava Boaventura de Sousa Santos, meses antes da aprovação da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto).

Por sua vez, António Marinho e Pinto pensa que “grande parte ou a maior parte da importância da Justiça, numa sociedade civilizada, tem as suas dimensões simbólicas, pelo mal-estar que transmite a quem está a cometer um crime ou já cometeu”. “E isto tem de estar presente no quotidiano das pessoas”, assume o advogado, de forma peremptória.

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19/10/2023

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A SEGUIR:

Advogada Joana Sevivas: “O Estado de direito conspurcado por uma reforma que não respeitava as pessoas”

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(*) Nas próximas semanas, no jornal sinalAberto, finalizaremos o dossiê com o título genérico “Justiça: o que não se lê no mapa”, no âmbito das Bolsas de Investigação Jornalística 2020, atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian.

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Vitalino José Santos

Jornalista, cronista e editor. Licenciado em Ciências Sociais (variante de Antropologia) e mestre em Jornalismo e Comunicação. Oestino (de Torres Vedras) que vive em Coimbra.

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