Justiça: o que não se lê no mapa (13)*
Advogada Joana Sevivas: “O Estado de direito conspurcado por uma reforma que não respeitava as pessoas”
Ao questionarmos Joana Guerra Sevivas sobre a metodologia utilizada para o encerramento, em 2014, de uma vintena de tribunais, no âmbito do, então, novo mapa judiciário, esta advogada de Castro Daire rectifica: “Não se se tratava de encerramento puro e simples, sendo certo que na prática, seria essa a triste realidade, persistindo a dita reforma.”
“A perda quase absoluta das valências e a desqualificação deste tribunal [de Castro Daire], mesmo atento o absurdo pressuposto da mesma reforma, era ilegal. Desde logo, porque há povoações no próprio concelho em que o tribunal se situa a mais de 30 quilómetros e, sobretudo, pelo acervo processual do mesmo tribunal que, de todo, inviabilizava a sua desqualificação”, alega a advogada Joana Sevivas.
Para a causídica, que é membro da Assembleia Municipal de Castro Daire, desde 2014, e vogal da direcção da delegação local da Ordem dos Advogados (OA), desde 2018, “a autonomia concelhia, verdadeiro cimento da nossa própria existência como país, remonta aos tempos da nossa fundação como reino”. “Respeitá-la, para além da carga simbólica e política que encerra, é um marco para o desenvolvimento económico e social do próprio interior, sempre tão falado e sempre tão esquecido”, afirma.
Considerando o período em que 20 tribunais (antigas comarcas concelhias) estiveram encerrados (ou seja, de 1 de Setembro de 2014 a 1 de Janeiro de 2017), o que não sucedeu com Castro Daire, como se previa, embora o tribunal tenha perdido competências, o sinalAberto quis saber, junto desta jurista pós-graduada em Direito das Empresas, quais os impactos sociais, económicos e simbólicos se verificaram com a introdução da nova reforma judiciária no município de Castro Daire.
Segundo a causídica castrense, “nesse período, aquilo que ainda ia funcionando com alguma regularidade, como era o dia-a-dia nas antigas comarcas, deixou de ocorrer”. “Após as peripécias conhecidas do envio a monte dos processos para a sede distrital, agora baptizada de ‘comarca’, para além de vir sobrecarregar esses tribunais, originando um caos processual, obrigou a uma duplicação de trabalho dos próprios magistrados na análise processual dos mesmos”, observa Joana Guerra Sevivas, inscrita na OA desde 2010 e que trabalha no escritório de advogados JSSR.
“A tão gasta quanto mentirosa alegação de que a reforma iria aproximar a justiça dos cidadãos levava a que estes olhassem para o seu tribunal comarcão transformado em mera secretaria para entrega de papéis, obrigando-os a terem de fazer mais de 35 quilómetros para Viseu”, declara ao sinalAberto, notando: “Não tenho em meu poder números ou percentagens sobre a litigância judicial desse período, sei, no entanto, que, no meu escritório, as pessoas começaram a evitar a ida a tribunal. A necessidade de uma maior deslocação, ao terem de se deslocar para Viseu, tornava-se ‘handicap’ para o regular e saudável convívio, numa sociedade que se pretende regulada pela lei.”
Assim, a advogada considera que “o Estado de direito era conspurcado por uma reforma que não respeitava as pessoas, ante o enganador número de processos entrados”. “Enganadora, pois, para essa malfadada reforma, era igual uma simples ação de dívida, em que praticamente não havia testemunhas, a uma ação de direitos reais, em que são imensas as pessoas envolvidas e obrigadas a comparecer, com necessidades de idas dos próprios magistrados ao próprio local do conflito”, explicita a jurista castrense, adiantando: “Houve vários colegas que foram obrigados a abrir escritório em Viseu, bem como clientes que tiveram de custear as viagens para essa cidade, vezes sucessivas, tornando a justiça mais distante e mais cara. A acrescer o facto de a demora dos processos judiciais ter sido brutalmente acentuada.”
Apesar de, contrariamente ao que se chegou a admitir, o tribunal de Castro Daire não fechou as suas portas, mas foi uma das 27 instituições que, no território nacional, perdeu competências na administração da justiça. A este respeito, a nossa entrevistada sublinha a existência de “povoações, a exemplo da freguesia de Mosteiro de Cabril, que se situam a mais de 30 quilómetros de Castro Daire e que, assim, passariam a ter de percorrer quase 70 quilómetros para se deslocarem ao tribunal”. “Que se justiça de proximidade é esta?”, interroga Joana Sevivas, dando especial destaque à litigância do Tribunal de Castro Daire: “A mesma centra-se em direitos reais, respeitantes à terra, servidões de caminhos e de águas, de difícil análise e resolução, que envolvem dezenas de intervenientes. E de maneira alguma faz sentido que a dita reforma computasse de igual modo um processo desta natureza como uma acção simples de uma mera dívida.”
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Proposta de encerramento do Tribunal Judicial de Castro Daire
Ao consultarmos as actas das reuniões da Câmara Municipal, lemos, na acta da reunião extraordinária realizada em 18 de Novembro de 2013, que foi discutido o ponto 7 da ordem do dia sobre a proposta de encerramento, por parte do Governo, do Tribunal Judicial de Castro Daire e do serviço local de Finanças. Porém, já na reunião ordinária do executivo castrense, em 24 de Outubro – a segunda sessão camarária do reeleito presidente da edilidade, o socialista José Fernando Carneiro Pereira –, relativamente aos assuntos tratados após a ordem do dia, o vice-presidente da autarquia, Eurico Manuel Almeida Moita, tinha manifestado a sua “preocupação ed total discordância com o encerramento do Serviço de Finanças e do Tribunal, o que[,] em suas opinião[,] trará um impacto negativo para o concelho de Castro Daire”.
Na mesma sessão camarária, o vice-presidente disse, ainda, que “o Executivo deveria tomar uma posição quanto ao encerramento destes dois serviços, para sensibilizar o Governo para que o seu encerramento não aconteça [sic]”.
Retomando a acta da sessão extraordinária, de 18 de Novembro, ficamos a saber que o presidente da Câmara Municipal, José Carneiro Pereira, “apresentou à reunião as propostas através das quais o Governo pretende o encerramento dos Serviços do Tribunal Judicial de Castro Daire e [do] Serviço Local de Finanças”. Seguidamente, e de “forma exaustiva”, o líder autárquico “informa o órgão executivo das diligências tomadas, na defesa intransigente destes dois Serviços Públicos, designadamente a reunião tida na sede da Ordem dos Advogados, em Lisboa, no pretérito dia 11 [ou seja, 11 de Novembro de 2013]”.
O presidente da autarquia castrense deu também conta da reunião que, então, estava prevista – a decorrer após a eleição dos corpos directivos da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), marcada para 23 de Novembro, no âmbito do XXI Congresso da ANMP, em Santarém – para, em sede da ANMP, estes dossiês serem abordados.
Como regista a acta da Assembleia Municipal (AM) de 28 de Outubro de 2013, Joana Raquel Guerra do Couto Sevivas foi um dos “sete cidadãos de reconhecida idoneidade”, a par de quatro presidentes de junta de freguesia, a ser escolhida para o Conselho Municipal de Segurança, tendo tomado posse na reunião seguinte da AM, em 27 de Dezembro.
Nessa última reunião da AM em 2013, a deputada Joana Sevivas referiu-se ao encerramento de serviços no município, para dizer que “se tem assistido a um ataque do Governo às comunidades do interior e[,] enquanto eleitos pelo concelho, não podem assistir de braços cruzados”. “Se não se fizer nada, a qualidade de vida do município de Castro Daire vai decrescer de uma forma abrupta”, prosseguiu, salientando: “Dezenas e dezenas de pessoas que diariamente se deslocariam a Castro Daire para irem ao Tribunal [irão deslocar-se] a um outro centro, onde[,] muito provavelmente[,] vão começar a fazer vida, vão começar a ir às compras, a almoçar, o que vai fazer com que o comércio decaia”.
Na oportunidade, Joana Sevivas propôs, “enquanto deputados da Assembleia eleitos pelos munícipes, que seja criado um grupo para esta Assembleia, um grupo de trabalho que se reúna de forma a delinear as formas de ataque para não baixarmos os braços e para a Assembleia se manifestar de forma expressiva, para que[,] em Lisboa[,] ouçam o que o Município de Castro Daire não quer que o Tribunal, os Serviços de Finanças e todos os outros Serviços fechem [sic]”.
Na mesma reunião da Assembleia Municipal castrense, como observamos na acta de 27 de Dezembro de 2013, o deputado Constantino Duarte Silva informou que, “ao criarem esse grupo de trabalho, não devem pensar só nas Finanças e no Tribunal, mas também na Segurança Social, nos Correios e [em] outros Serviços”.
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Reunião com comissão técnica sobre novo mapa judicial
Há pouco mais de um ano (a 17 de Dezembro de 2012), a página electrónica do Notícias de Resende reproduziu uma nota de imprensa do município vizinho informando que o presidente da Câmara de Castro Daire, Fernando Carneiro, se tinha deslocado a Lisboa para uma reunião de trabalho com a comissão responsável pelo novo mapa judicial do território português. A aludida reunião realizou-se a 11 de Dezembro e, conforme a notícia, o presidente da autarquia castrense foi acompanhado pela representante da Ordem dos Advogados no concelho de Castro Daire, Joana Sevivas, e pelo secretário judicial do Tribunal de Castro Daire.
Segundo a mesma informação, o edil socialista “quis pessoalmente, mais uma vez, expor os motivos que levam a que toda a população se insurja contra a proposta de encerramento do Tribunal Judicial de Castro Daire”. “Fa[c]tores como a distância em relação ao Tribunal de Lamego, a ausência de uma rede de transportes públicos que sirva as populações, e o elevar dos custos para as populações no acesso à Justiça ou ainda o movimento processual do próprio Tribunal foram aspectos demonstrados à Comissão Técnica responsável pela Reforma Judicial”, adianta o Notícias de Resende, a propósito da contestação de Castro Daire relativamente ao suposto encerramento do seu tribunal.
Conforme era então divulgado, o líder autárquico José Carneiro Pereira reafirmava que “esta luta do povo castrense não é uma birra ou uma questão de bairrismo”, mas que, pelo contrário, “é uma intransigente defesa dos interesses desta população servida pela Comarca de Castro Daire, com razões e motivos válidos que sustentam a necessidade imperiosa de que o Tribunal Judicial de Castro Daire se mantenha”.
“A comprovar a união dos utentes servidos pela Comarca de Castro Daire está a deliberação de todas as Juntas de Freguesia da Comarca em defesa da mesma”, incluindo as três freguesias do concelho de Vila Nova de Paiva que pertenciam à comarca castrense: Pendilhe, Touro e Vila Cova à Coelheira.
A mencionada nota informativa dava conta de que “a comissão técnica recebeu os dados levados” pelo presidente do executivo castrense, pela representante da OA e pelo secretário judicial, “prometendo analisar todos os fa[c]tores, ficando aberta a possibilidade de se vir a alterar a situação do Tribunal de Castro Daire”. Entretanto, as populações ficaram à espera de que o Governo de Passos Coelho tomasse “uma decisão justa e equilibrada”, capaz de servir todos os utentes desta comarca.
Como consta na acta da reunião ordinária da Assembleia Municipal de 28 de Fevereiro de 2014, realizada no Auditório Municipal, durante o período de antes da ordem do dia, procedeu-se à leitura e à apreciação do expediente e o presidente da Mesa (Albino dos Reis Ramos) propôs à AM se aceitava “a Moção apresentada, o que, por todos, foi aceite por unanimidade [sic]”.
Sobre a dita moção, interveio o membro da AM João Cândido da Silva Henrique referiu que “concorda com a moção, no que diz respeito ao encerramento dos Serviços Públicos, porque os mesmos não podem encerrar, pois são essenciais para a população, mas não concorda quando esta refere que os 20 anos de governação autárquica são os causadores do problema, que é o encerramento de Serviços Públicos, e que isso se deve ao facto de uma má governação, ao longo de 20 anos, nesta autarquia [sic]”. Na sua opinião, “esta moção não teve o sentido de dizer que está contra o encerramento dos serviços públicos, mas antes que foi tudo mal gerido, pela autarquia, durante os últimos 20 anos”.
João Cândido da Silva observou, ainda, que “a moção refere muito o Tribunal”, sublinhando que, na qualidade de deputado municipal, “defende, por igual, todos os serviços públicos, porque todos são essenciais”. Aquele membro da AM de Castro Daire terminou a sua alocução afirmando que “não é a favor do encerramento dos serviços públicos, mas[,] sim, contra a forma como foi posta a Moção apresentada”. No seu entender, “ela não refle[c]te aquilo que deve refle[c]tir”.
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Edilidade muda de cor partidária em 2009
Em face do exposto, recordamos que, entre 1962 e 1974, o município de Castro Daire teve João Duarte de Oliveira a presidir, sucessivamente, à Câmara Municipal. Com as primeiras eleições autárquicas, em 1976, o social-democrata César Costa Santos passa a liderar a edilidade castrense até cumprir o quinto mandato iniciado em 1989. Com o acto eleitoral de 1993, o também social-democrata João Pereira sucede a César Costa Santos na autarquia e aí se mantém por mais dois mandatos. Nas eleições autárquicas de 2005, é Maria Eulália da Silva Teixeira, igualmente do Partido Social Democrata (PSD), quem representa o município castrense em juízo e fora dele, bem como a executar, segundo a Lei, as deliberações da Câmara Municipal e a coordenar a respectiva actividade.
Em 2009, a edilidade muda de cor partidária. O então novo timoneiro da edilidade é o socialista José Fernando Carneiro Pereira, que também sai vencedor nas eleições autárquicas de 2013. Os resultados eleitorais de 2017 e de 2021 ditaram a vitória à coligação entre o PSD e Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP), elegendo Paulo Almeida para presidente do executivo camarário de Castro Daire.
Por sua vez, conforme inscreve a acta da reunião ordinária da Assembleia Municipal de 28 de Fevereiro de 2014, Joana Sevivas declarou que, “em relação à Moção apresentada, a sua intervenção vai no seguimento do que o membro da Assembleia Municipal, João Cândido Henrique referiu acerca dela, porque o povo português tem por hábito culpar os outros por aquilo que temos, mas a verdade é que muitas das coisas que aconteceram, aconteceram, também, pela falta de iniciativa particular”. A deputada da AM de Castro Daire expressou, assim, que “as pessoas não podem estar sempre dependentes do Estado ou da Câmara para fazerem tudo aquilo que querem”.
Joana Sevivas notou, igualmente, que “o município tem poucas indústrias, a culpa não é só da Câmara, mas também do povo e não de 20 anos de governação”. A mesma deputada da AM terminou dizendo que “é contra o encerramento dos Serviços Públicos, mas devem ser contra […], independentemente [de a] governação autárquica ser boa ou má, é mau fechar o Tribunal, porque nos impede o acesso à justiça[,] é mau fecharem as Finanças, porque é um serviço essencial, que tem de estar perto das pessoas, e não por não termos indústria [sic]”.
Assinala-se na acta da aludida reunião da AM que, tendo sido “feita a chamada”, o presidente da Mesa da Assembleia Municipal, Albino dos Reis Ramos, que pôs à votação a moção então relatada e ela foi “chumbada com 17 votos contra e 19 abstenções”. Diga-se, a propósito, que o limite de membros desta assembleia municipal é de 37 elementos, 21 dos quais são eleitos directamente, enquanto os 16 restantes são os presidentes das juntas de freguesia concelhios, que integram a AM por inerência.
Posteriormente, a deputada municipal Sara Micaela Moita André lembrou que “os castrenses travaram diversas lutas contra os encerramentos de serviços públicos”. Exprimiu, ainda, que, “pela necessidade de uma organização económica e estrutural que garanta e potencie a qualidade de serviços prestados à população e ajustados às suas necessidades, estas têm sido lutas de todos, colocando sempre Castro Daire acima de interesses político-partidários”. Nesse sentido, Sara André acrescentou (na reunião ordinária da AM, de 28 de Fevereiro de 2014, cuja acta temos vindo a dissecar) que “o encerramento do Tribunal constitui uma preocupação permanente nos últimos meses”.
Ao fazer referência ao “esforço e intransigência da Assembleia Municipal de Castro Daire nessa defesa”, Sara André lembrou três premissas. A primeira focava-se na “solidariedade” e no “apoio do Partido Social Democrata, que diligentemente tudo fez para pressionar o Governo [XIX Governo, chefiado por Pedro Passos Coelho, resultante das eleições legislativas de 5 de Junho de 2011, que o PSD venceu com maioria relativa], nomeadamente, a tutela da Justiça [sob a responsabilidade de Paula Teixeira da Cruz], no sentido de haver sensibilidade para com a Comarca de Castro Daire”. A segunda premissa evocada por aquele membro da AM dizia respeito à “abertura” e ao “diálogo que o Governo social-democrata preconizou, a[c]tuando no exercício de uma verdadeira postura democrática, sendo exemplo de que, mesmo em tempo de exce[p]cionalidade ímpar, se atendem aos verdadeiros interesses e necessidades dos cidadãos, neste caso concreto, dos castrenses”. Já a terceira premissa enunciada por Sara André procurava fundamentar que “o Governo prova[,] com esta relação, que não atende a lobbies partidários, olhando para cada concelho e não à cor do seu executivo camarário, contrariamente a situações observadas no passado”.
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Nova reforma previa encerramento de 20 comarcas
A deputada municipal Sara André adiantou que o Governo então em funções “renegociou a proposta inicialmente apresentada pelo Partido Socialista, que pretendia encerrar 49 comarcas”. “A reforma implementada pelo a[c]tual Governo prevê um encerramento de apenas 20, mas a leitura que o Partido Socialista tem feito desta situação é de puro aproveitamento político e demagogia, preferindo a desresponsabilização e o não compromisso, a uma postura consertada e construtiva”, criticou a deputada.
Na sua intervenção, Sara André acreditava que “Castro Daire, funcionando como uma comarca de proximidade”, manteria “o funcionamento dos seus serviços, respondendo às necessidades mais imediatas dos cidadãos”. No entanto, admitia que “esta classificação estará sujeita a reavaliações periódicas a cada três anos, em que, de acordo com o volume processual, poderão ser-lhe atribuídas novas competências”. A deputada da AM terminou considerando que “este deverá ser um compromisso e um desafio assumido pelo Executivo, na sua estratégia global de desenvolvimento que tem, ou que deveria ter, para Castro Daire”, lembrando que “os serviços só encerram em concelhos onde não haja população que garanta a sua sustentabilidade”.
Por conseguinte, sob o ponto da nossa entrevistada Joana Sevivas, “durante o tempo em que se manteve em vigor essa desmiolada reforma [ou seja, a reforma judiciária, concretizada a partir de 1 de Setembro de 2014 – ao abrigo da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), tendo sido regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março], acentuou-se o desequilíbrio nacional, tornando-se o interior ainda mais dependente das sedes distritais”. Na sua opinião, “o tribunal a funcionar é uma fonte de afluência à sede concelhia. As pessoas aproveitam e, numa curta viagem, podem igualmente tratar dos seus problemas nas Finanças, na ‘Casa do Povo’ ou mesmo ir ao centro de saúde”. “Podem ainda abastecer-se e a justiça torna-se um bem realmente próximo, e não uma prerrogativa distante e afastada do seu meio”, sublinha.
Tendo em conta a atribuição de habilitações ao Juízo ou Secção de Competência Genérica de Castro Daire, esta advogada castrense expõe: “Só quem veja nas pessoas meros números estatísticos pode ter a veleidade de não concordar com a reactivação das antigas comarcas. É verdade que ainda hoje as coisas não estão bem, aliás, algumas continuam profundamente erradas e muito em consonância com a dita reforma.”
Conforme consta na acta n.º 1/2017 da Assembleia Municipal, datada de 24 de Fevereiro de 2017, no período antes da ordem do dia daquela sessão, o então presidente da Câmara Municipal de Castro Daire (em final de mandato, atendendo a que as eleições autárquicas portuguesas de 2017 seriam realizadas a 1 de Outubro), o socialista José Fernando Carneiro Pereira, agradeceu a presença do secretário de Estado da Administração Local [do XXI Governo Constitucional, liderado pelo socialista António Costa] às comemorações do Dia do Autarca, a 19 de Fevereiro, bem como a visita da secretária de Estado Adjunta e da Justiça, Helena Mesquita Ribeiro, a 31 de Janeiro, que, como relevou: “[…] veio ver em que ponto e em que condições estava a funcionar o nosso juízo de competência genérica”. O dirigente da edilidade castrense agradeceu também o “elogio feito pelo membro da Assembleia Municipal, Fernando Ferreira, em relação ao trabalho que foi feito pelo Presidente da Câmara[,] que muito contribuiu para a reabertura do Tribunal”. “Foi um trabalho feito juntamente com os organismos, tal e qual se fez com o governo anterior”, realçou o autarca que antecedeu Paulo Almeida no executivo camarário de Castro Daire.
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Processos executivos nas sedes distritais
Como disse, ainda, a advogada Joana Sevivas ao sinalAberto, “não faz sentido que os processos executivos tenham de correr nas sedes distritais, ou seja, no que agora se designam por comarcas”. Em Setembro de 2021, a jurista refere que “a maioria das execuções se encontra parada, pois os processos acumulam-se”. Nessa situação, “o pior que pode acontecer, num Estado de direito, é não se cumprirem as suas sentenças”. Daí que, na sua perspectiva, “os processos executivos deveriam decorrer nas antigas comarcas, actualmente denominadas juízos de competência genérica”.
“Isso permite-nos questionar e deveria obrigar-nos a pensar que a proximidade não é unívoca, estar próxima de… talvez de Lisboa. Não. Deveríamos, antes, estar próximos uns dos outros – as regiões –, face às oportunidades e aos benefícios equidistantes, sem preferência pelos grandes centros, sejam os do poder político ou do poder económico”, alega Joana Sevivas, reconhecendo que se torna “necessário implementar polícias de inclusão e de coesão”. “A discriminação regional continua a ser uma triste realidade no nosso país, onde apenas o nível dos impostos é igualitário. Tudo o resto exige, de quem vive no interior, sacrifícios desproporcionados e injustos”, interpreta a jurista de Castro Daire.
Na óptica de Joana Sevivas a reforma judiciária aplicada em 2014 ter-se-á também devido a pressões da troika (estrutura tripartida composta pela Comissão Europeia, pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Central Europeu, que acompanhou o Memorando de Políticas Económicas e Financeiras, também conhecido como Memorando de Entendimento, e se manteve em Portugal até 17 de Maio de 2014).
“Julgo que uma das razões para a dita reforma teria sido essa. Porém, até nisso errou”, critica a advogada, explicitando: “Por um lado, transformavam-se os antigos tribunais em meras salas de expediente para receber papéis, quando os actos presenciais, com audição de testemunhas em inquéritos, audiências de julgamento exigiriam deslocações à sede do distrito.”
“Alguém de boa-fé pode acreditar que se poupasse dinheiro com isso? O Ministério da Justiça pagaria à parte essas despesas? É evidente que não. E a justiça tornava-se absurdamente mais dispendiosa, afinal, para quem tem o direito constitucional a que a mesma lhe seja feita. Resta a dúvida de o Estado poder poupar, com menos pessoal. Falácia posta a nu pelos próprios sindicatos, sempre a reivindicar, e com alguma justeza, mais meios”, salienta a jurista.
Considerando que a Justiça mantinha uma matriz de cerca de dois séculos, Joana Sevivas pensa que “a reorganização do mapa judiciário obedeceu à necessidade de tentar fazer alguma coisa por parte do governo, muito impulsionado pelos grandes escritórios da advocacia”. “Tentou fazer alguma coisa e fez asneira e os grandes escritórios de advocacia conhecem a realidade dos grandes centros e pouco mais”, nota a causídica de Castro Daire.
Ao reconhecer que “sempre haverá necessidade de reformas e ainda bem que elas acontecem”, a nossa entrevistada diz que é preciso “ouvir as pessoas e em particular aqueles que diariamente lhe dão voz, os advogados em prática isolada”. “Não falo nos advogados dos grandes escritórios que vão espalhando os seus tentáculos pelas sedes distritais, não são esses que estão mais perto do cidadão”, comenta.
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Novo mapa judiciário “foi um tremendo erro”
Para a nossa entrevistada, o avanço do novo mapa judiciário, em Setembro de 2014, “não foi precipitado, foi um tremendo erro, não só nessa altura como em qualquer outra”. “Essa reforma constituiu um nado-morto a que se tem tentando insuflar alguma vida e que espero renasça uma efectiva reforma que dignifique não só as pessoas, mas o próprio estado de direito”, considera Joana Sevivas. Por isso, a advogada castrense aconselha: “Aproveite-se e reponha-se o que sempre funcionou bem, reestruture-se e componham-se os erros. Hoje, mantém-se a designação de ‘comarcas’ para as sedes distritais e a sua competência para os processos executivos e se a primeira não passa de mera designação, o segundo é uma aberração que urge corrigir.”
Embora o tribunal de Castro Daire não tenha sido encerrado, como inicialmente se expectava, a jurista alega que, “por tudo o que atrás foi exposto, é evidente que o município de Castro Daire beneficia com o seu tribunal, tendo todas as suas anteriores competências”. Todavia, “a sua desqualificação ergueu um muro de vergonha e serviu para alimentar uma progressiva desertificação”. Por conseguinte, “o comércio e os serviços, tudo sofreu em resultado disso mesmo”. Ou seja, “o movimento da própria vila deixou de ser o mesmo”, verifica a advogada, anotando: “Pelo menos agora, para as questões essenciais, o tribunal vai funcionando e com isso a vila revigora e dá sinais de revitalização.”
Questionada sobre se a tutela ministerial, que forçou a aplicação da dita reforma judiciária, em 2014 – ao abrigo da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março –, fazia ideia do que era preciso para organizar um mapa judiciário, Joana Sevivas sublinha que “um bom mapa judiciário não pode ser feito de cima para baixo, fruto de uma mente iluminada”. “Tem, sobretudo, de partir das realidades concelhias” e de “ouvir as delegações dos advogados, ouvir aqueles que trabalham em prática isolada, os autarcas, as associações representativas dos cidadãos”, além de “verificar a situação geográfica, social e económica das populações”.
Como perfilha Miguel Teixeira de Sousa (professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa), qualquer “observador que analise a LOSJ e a ‘geografia’ dos tribunais de 1.ª instância dirá que a LOSJ é uma boa lei de organização judiciária, mas que a sua implementação geográfica não é a mais desejável”. Para este jurista, tal sucede como “consequência de vários factores”, nos quais há, certamente, que “incluir a dificuldade de compatibilizar a especialização dos tribunais com a proximidade perante os interessados, bem como o número de juízes e magistrados do Ministério Público”. No seu entendimento, “a distribuição dos tribunais de 1.ª instância no território nacional traduziu-se num ‘rendilhado’ muito pouco uniforme e conducente a que processos do mesmo tipo sejam da competência de tribunais de diferente espécie”.
“Enfim, deve ter sempre como objectivo a dignificação da pessoa, no respeito absoluto pelo estado de direito”, lembra Joana Sevivas, expressando: “Honestamente, parece-me que a reforma foi pensada numa secretária e que as distâncias foram analisadas através do Google Maps. Foi preciso explicar que 30 quilómetros pela A5 eram bem diferentes dos mesmos 30 quilómetros na Estrada Nacional 225.”
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“Principais erros ainda em vigor”
Ao solicitarmos que nos fizesse um balanço da entrada em vigor do novo mapa judiciário, no qual se verificaram algumas alterações em 2017, esta advogada de Castro Daire, que já nos tinha apontado o que, a seu ver, falhou, explicitando “os principais erros ainda em vigor”, manifesta que, “para além de outras medidas, é urgente que os processos executivos sejam tramitados nos juízos de competência genérica”. “Em Castro Daire, falhou ainda o facto de termos perdido algumas localidades. O Tribunal de Castro Daire era o competente para questões de Vila Cova à Coelheira, de Touro e de Pendilhe, tendo agora passado para o Tribunal de Sátão. Não se ouviu ninguém dessas localidades. Simplesmente, alteraram-lhes o tribunal. Se queremos a Justiça mais próxima, devemos, pelo menos, conseguir explicar os porquês da mudança”, critica Joana Sevivas.
Confrontada com a dúvida de se poder ou não afirmar que a redefinição do mapa judiciário atingiu os objectivos, então, apontados pelo governo liderado por Pedro Passos Coelho e pelo Ministério da Justiça dirigido por Paula Teixeira da Cruz, a advogada castrense responde: “Falta ouvir quem atrás também referi.” Na sua perspectiva, é necessário “estar atento à realidade do nosso país”, retomando a ideia de que esta “assenta na realidade dos municípios”. “Antes dessa verdadeira reforma, que não deve ter preconceitos em repristinar o que antes sempre funcionou regularmente, deve já emendar os absurdos que também atrás apontei”, acentua a jurista.
A concluir a entrevista, Joana Sevivas declara ao sinalAberto que acredita na eventual melhoria desta reorganização judiciária, visando acabar com a morosidade dos processos e garantir o acesso de todos os cidadãos aos tribunais e à justiça. “Acho que ainda temos um longo percurso, mas acredito num sistema de justiça (mais) saudável. É elementar num Estado democrático que seja fácil ter justiça, ter decisões justas, conhecer o ‘que deve ser’. A justiça continua, em muitas situações, a ser um bem de luxo, quando deveria ser um direito de todos”, menciona, em tom crítico.
“Para melhorarmos, é peremptório que não se tenha pudor em ouvir quem trabalha junto das pessoas e quem conhece as suas limitações”, adverte a advogada, destacando o facto de “saber que há quem não vá querer saber se tem razão ou quem não queira levar a sua questão a tribunal, porque é caro ou moroso”. O que, como expressa, “é algo que nos deve entristecer a todos”. “A justiça é um direito de todos, mas penso que também devemos vê-la como um dever enquanto sociedade”. Nesse sentido, importa “possibilitar, facilitar e aproximar a justiça” dos cidadãos.
A finalizar, a advogada Joana Sevivas reitera a impressão de que “esta reorganização judiciária” não lhe parece correta, “muito por culpa dos laivos subsistentes da dita reforma”. Assim, propõe: “Ouça-se com atenção, trabalhe-se com dedicação e uma reforma judiciária, partindo dos seus melhores intérpretes, ganhará forma, sentido e será uma realidade.”
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“Lentidão constitui o grande problema”
Também para o antigo bastonário da Ordem dos Advogados (OA), Rogério Paulo Castanho Alves, a “lentidão constitui o grande problema do sistema judicial português”. Esta afirmação – embora tenha sido inscrita no artigo “O mapa judiciário ou os novos caminhos da Justiça Portuguesa”, publicado na edição n.º 2, em 2007, da revista Julgar – continua a ser repetida no presente.
Tendo sido eleito bastonário para o triénio 2005-2007, o causídico Rogério Alves pensava que a organização judiciária, nessa altura, tinha “uma quota-parte essencial de responsabilidade nos atrasos da justiça, reunindo um reconfortante e singular consenso a necessidade de Revisão do Mapa Judiciário”. Nessa sua comunicação, o ex-bastonário da AO advertia “para uma desejável unificação das jurisdições comum e administrativa e ainda para a possível futura discordância quanto à colocação dos tribunais sede e, sobretudo, das novas casas da justiça”.
No mesmo número da revista Julgar (propriedade da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, visando “contribuir para a discussão da problemática da aplicação das ciências jurídicas no âmbito da jurisdição”), o articulista Rogério Alves escrevia: “Sustenta-se que a reforma da justiça será feita com o mapa[,] mas não pelo mapa.” Por isso, o então bastonário da OA admitia que “o sucesso desejado depende de condicionantes várias como a simplificação das leis processuais, verdadeiro imperativo nacional, da formação e especialização de magistrados, da dotação de meios auxiliares capazes e de uma boa gestão dos tribunais, tudo isto a par da necessidade de estruturar um sistema de acesso ao direito em que prepondere a informação e consulta jurídicas”.
o seu artigo, o antigo representante dos advogados apercebia-se do “descontentamento” que grassava com o funcionamento do sistema, “tido, e bem, como inadequado às exigências” do início do século XXI. Para si, tal “descontentamento” era um “sinal claro” que intersectava “os cidadãos, as empresas e todos os que operam profissionalmente no e com o sistema judicial”. Ou seja, constituía um “descontentamento justo, legítimo e compreensível” que congregava “uma férrea vontade de mudança”. “Logrou-se assim um excelente ponto de partida para a reforma”, salientava Rogério Alves, defendendo que o “novo mapa judiciário” deveria “resultar de um debate alargado” em que todos participassem e que a todos responsabilizasse.
Na opinião do ex-bastonário da OA, atribuía-se à anterior “organização judiciária uma quota-parte essencial da responsabilidade nos atrasos na justiça, mormente pela disfunção” que gerava entre a oferta e a procura. E o articulista insistia: “Tenho, aliás, bem claro para mim que o principal problema da justiça portuguesa é a sua lentidão. Sei que esta afirmação não é pacífica, mas, do meu ponto de vista, não oferece dúvidas. No confronto entre a quantidade e a qualidade, é a primeira que surge como claramente deficitária.”
Mais adiante, Rogério Alves confirmava que, em 2007, havia em Portugal “um fosso gritante entre a pressão da procura e a capacidade e celeridade da oferta”. Como constatava o jurista, “esse fosso é tanto mais evidente nas zonas em que a procura é maior e onde a capacidade instalada se revela, por vezes[,] de forma confrangedora, insuficiente”.
Em relação ao segundo volume (“Conclusões e Proposta de Reforma”) do estudo “A Geografia da Justiça – Para um Novo Mapa Judiciário”, da autoria do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ) / Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Rogério Alves diz que o OPJ “narra, de forma sintética, o que noutros países se tem feito e tentado fazer nesta matéria”. E o articulista indicava, citando o referido estudo do OPJ/CES: “[…] é consensualmente reconhecido que o mapa judiciário não acompanhou as dinâmicas territoriais da população e dos sectores económicos, apresentando uma clara inadequação à realidade económica e social do país, cujos principais pólos de desenvolvimento se concentram nas regiões de Lisboa e Porto e no litoral e Norte da Península de Setúbal. Numa perspectiva territorial, seja demográfica, empresarial ou de serviços, podemos considerar três áreas em franca expansão: Litoral a Norte da Península de Setúbal; Região Centro: Coimbra, Aveiro, Leiria e Viseu[;] e o Litoral Algarvio. Em todo o território[,] centros urbanos de média dimensão têm ganho novas expressões, seja por novas funcionalidades, pela propagação da influência de grandes centros urbanos, ou pela capacidade de actores políticos locais/regionais/nacionais apostarem no estímulo desse[s] centros urbano[s].”
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“Transformar uma discussão conceptual numa discussão concreta”
Em face do exposto, o então bastonário da OA verificava que o mapa judiciário estava “anquilosado, desfasado e carecido de mudança”. “Todos os estudos e projecções o asseveram e, por isso, ninguém se bate pela sua manutenção”, acentuava Rogério Alves, salientando que a Ordem dos Advogados apoiava a revisão do mapa judiciários, “estribando-se, genericamente, nos diagnósticos elaborado[s], enunciados e quantificados nos estudos conhecidos”.
No dito artigo, na edição n.º 2 da revista Julgar, Rogério Alves quis “assinalar a importância da divulgação da Proposta de Revisão do Mapa Judiciário, tornada pública em Março de 2007, da autoria do Departamento de Engenharia Civil da Universidade de Coimbra” (sic). Na perspectiva do ex-bastonário da OA, esta “proposta carreou consigo uma enorme vantagem, que foi a de transformar uma discussão conceptual numa discussão concreta”.
Contudo, o antigo representante dos advogados portugueses lembra que, com esta proposta de revisão, se passou da “fase gozosa” para uma “fase mais dolorosa”, na qual, “em concreto, e colocando os nomes às coisas, se diz o que, em cumprimento dos magníficos propósitos da fase anterior, se vai efectivamente fazer”: “Quais os tribunais que se suprimem, quais os que se criam, onde se suprimem e onde se criam, porque se suprimem e porque se criam.” Isto é, para o causídico, o “estudo em causa permite sair da fase das generalidades, para se entrar na fase das especialidades”.
Quanto à extinção das comarcas e à “criação de circunscrições, em cujas sedes, obrigatoriamente, se instalarão tribunais, e que resultarão, como regra, da agregação de comarcas”, o articulista julga que esta “matriz parece adequada à nova realidade social portuguesa e parece afeiçoar-se, também, às perspectivas de evolução previstas”.
Mais adiante no artigo que temos vindo a seguir, Rogério Alves disse já se saber que existirão resistências, algumas até de carácter puramente político, sobretudo nos casos de encerramento de tribunais”. “Resistências que virão de autarcas e não só”, enfatizou, compreendendo que “se corre o risco de, para algumas pessoas, a justiça ficar longe de mais, o que tem, por todas as razões, de ser evitado”.
Por outro lado, o então bastonário da AO aventava “o risco de que o novo mapa judiciário se esgote numa rearrumação geográfica, quantitativa no que toca ao número de tribunais e de mera terminologia nas designações respectivas”. “Será exagerada esta previsão?”, interrogava o jurista, acolhendo a ideia de que “porventura não”, ao aperceber-se de que o “histórico nem sempre é encorajador”.
A seu ver, “muito mais do que no número de tribunais que se criam ou extinguem, muito mais do que na alteração terminológica adoptada, muito mais do que na introdução inovadora das Casas da Justiça, que inauguram o estilo de front office ao serviço de determinadas povoações, a reforma consistirá no sucesso de aspectos periféricos”, que Rogério Alves diria mesmo “estarem fora do mapa, mas que não podem ser excluídos do mapa essencial das preocupações”. Por isso, o representante dos advogados enfatizava: “A reforma será feita com o mapa, mas não pelo mapa.”
Recorde-se que, nesse período, se antevia a aprovação da nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, abreviadamente conhecida por LOFTJ), a qual revogaria a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (anterior LOFTJ), que, por sua vez, já tinha alterado a lei orgânica dos tribunais judiciais (Lei n.º 38/87, de 23 de Dezembro).
Como defendia o antigo bastonário da Ordem dos Advogados, o (à época) novo mapa judiciário seria, “mais do que qualquer outra coisa, uma condição de sucesso da reforma, um invólucro na qual ela poder[ia] medrar, muito mais do que a reforma em si mesma”. Essa, conforme reiterava Rogério Alves – no seu artigo publicado na segunda edição (de 2007) da revista Julgar –, seria “garantida pela conjugação de fenómenos extrínsecos, alguns mais viabilizados pelo mapa, e que, sem ele, dificilmente singrarão, e outros que nem por isso”.
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“Uma reforma do mapa judiciário não pode ser feita de forma isolada”
E o articulista volta a citar o estudo “A Geografia da Justiça – Para um Novo Mapa Judiciário” para se referir a essa preocupação: “Todos os participantes concordaram com a ideia de que uma reforma do mapa judiciário não pode ser feita de forma isolada, devendo ser integrada numa agenda mais vasta de reforma que deve ter em vista melhorar a eficiência e a qualidade da administração da justiça. Nesse sentido, a reforma do mapa judiciário dever-se-ia articular com outras reformas do sistema judicial, designadamente com reformas processuais, reformas no sentido da modernização e organização dos tribunais e reformas que impliquem um forte investimento na formação dos operadores judiciais.”
Referindo-se, sinteticamente, às “condicionantes desse sucesso esperado” de uma nova reforma do sistema judiciário, Rogério Alves destaca o “verdadeiro imperativo nacional que constitui o imperativo de simplificação das leis processuais”. “Num país com um relativamente elevado número de pendências”, conforme os dados de CEPEJ (Council of Europe European Commission for the efficiency of justice) e de diversos estudos, “continuamos a ter uma lei processual, civil, penal e laboral que acolhe, benevolente, ritos inúteis e alberga, sem necessidade, significativas perdas de tempo em cada processo e em cada acto de cada processo, sem qualquer justificação plausível, que não seja a incapacidade reformista do legislador”, critica o causídico, com experiência nas áreas de Direito Laboral, Civil e Arbitragem, Penal e Público. “Este labirinto processual” – que o autor entrevia em 2007 – “compromete qualquer reforma e, além do mais, gera um efeito da maior perversidade, que consiste em criar uma tentação de cortar no essencial do contraditório e das garantias (vide o caso dos recursos), que é, exactamente, onde não se deveria cortar”.
Antes de concluir o seu artigo, o ex-bastonário da OA (cujo mandato terminaria em 2007) acentuava a necessidade de “implementar medidas inteligentes de descongestionamento dos tribunais, e não medidas punitivas viradas contra quem, legitimamente, recorra aos tribunais”. “Medidas punitivas que tanto podem ter custas elevadas, como penalizações sancionatórias injustificadas, ou qualquer outro ínvio meio, com que queira privar o cidadão do direito à justiça, barrando-lhe o caminho a esse bem essencialíssimo”, explicitou o bastonário que, a 14 de Dezembro de 2007, recebeu, em Madrid, a mais alta condecoração do Conselho Geral da Advocacia de Espanha: a Grande Cruz de Mérito.
Na interpretação de Rogério Alves, a justiça terá de ser “mais acessível aos cidadãos, no duplo sentido da sua localização e dos seus custos directos e indirectos, com ganhos derivados da eficácia”. Na sua perspectiva, se a “justiça é administrada em nome do povo, deve também legitimar-se pela sua proximidade com o povo”.
Como também acentua Carla Maria Afonso Martins, na sua dissertação de mestrado “As Reformas da Justiça: O Mapa Judiciário e a Comarca do Baixo Vouga”, apresentada, no ano de 2012, ao Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro, na área da Justiça tem “ocorrido uma multiplicidade de reformas, tendo, em finais do século XX, começado a assumir particular importância as reformas de organização e gestão da administração da justiça”. “Deste modo, seguindo as linhas orientadoras das agendas de reformas de outros países europeus e com vista à redistribuição dos tribunais pelo território nacional, começou a ser pensada a reforma do mapa judiciário português”, prossegue a académica, mencionando que, após “a elaboração de alguns estudos prévios, da proposta de lei e do regime legal da reforma do mapa judiciário[,] é aprovada a nova LOFTJ (Lei n.º 52/2008)”.
Em 14 de Abril de 2009, como recorda Carla Martins, a reforma do novo mapa judiciário arrancou em três comarcas piloto: Baixo Vouga, Grande Lisboa Noroeste e Alentejo Litoral. Acerca destas comarcas-piloto em fase experimental (ao abrigo da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, de 28 de Agosto de 2008), recomendamos a releitura da reportagem “Impactos do ‘novo’ mapa judiciário”, que deu início ao dossiê com o título genérico “Justiça: o que não de lê no mapa”, no âmbito das Bolsas de Investigação Jornalística 2020, atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian. Julgamos que, para uma visão mais localizada, importa também reaver alguma informação contida na peça jornalística “Sever do Vouga e Penela: os caminhos da Justiça entre o Baixo Vouga e o Pinhal Interior Norte”.
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“Divergências entre o que era proposto e o que foi implementado”
Recuperando a consulta do trabalho académico de Carla Martins, vemos que a autora começou por abordar, de forma teórica, “as alterações no sistema jurídico que levaram à necessidade de implementação dessas reformas, as reformas levadas a cabo na justiça portuguesa, bem como a organização judiciária e o novo mapa judiciário”. Ali, são apresentados os resultados obtidos através de um inquérito que visava “aferir das (des)vantagens da reforma do mapa judiciário na Comarca do Baixo Vouga”.
Perante esses resultados, a autora concluiu “não terem sido alcançados alguns dos principais objectivos pretendidos com esta reforma”. No entender de Carla Martins, “muito ter[ão] contribuído as divergências entre o que era proposto pelos […] estudos prévios e o que foi implementado nesta comarca”. Com efeito, “estas divergências, designadamente, ao nível da (falta de) formação, do não envolvimento dos recursos humanos no processo de mudança, das acessibilidades e da não criação dos balcões de atendimento, contribuíram para a percepção negativa que os inquiridos manifestaram relativamente a alguns aspectos desta reforma”.
Como escreve no texto introdutório da sua dissertação, devido à “expansão que o sistema jurídico sofreu nas últimas décadas”, deparamos com o que muitos intitulam de “crise da justiça”. Para a autora, essa “crise da justiça foi provocada, essencialmente, pelo aumento da procura dos tribunais, o que originou uma verdadeira situação de ruptura, comum à generalidade dos países desenvolvidos, incluindo Portugal”. Daí que, como forma de tentar solucionar a mencionada “crise da justiça”, se tem assistido, “nos últimos anos, a uma catadupa de reformas no nosso sistema jurídico”. “Contudo e apesar das muitas reformas levadas a cabo, muitos dos problemas do sistema judicial subsistem”, comprova Carla Martins.
“Fruto da insuficiência/ineficiência das reformas adoptadas, bem como das transformações demográficas e sócio-económicas ocorridas no nosso país, designadamente, nas últimas décadas do século XX, começa a assumir gradual importância a questão da distribuição dos tribunais no território”, realça a estudiosa, admitindo “ser consensual a necessidade de reforma do mapa judiciário em vigor”.
De modo, “a avançar com tal reforma, sendo reconhecido que se tratava de uma reforma complexa do sistema jurídico nacional, foram realizados estudos”, dos quais Carla Martins destaca o realizado pelo Observatório Permanente da Justiça (OPJ/CES), intitulado “A Geografia da Justiça – Para um Novo Mapa Judiciário” (já citado pelo antigo bastonário da OA, Rogério Alves) e a Proposta de Revisão do Mapa Judiciário, apresentada pelo Departamento de Engenharia Civil da Universidade de Coimbra (DEC-UC).
Como aprecia a mesma académica (então, candidata ao grau de mestre), o primeiro destes estudos “apresenta-nos importantes conclusões”, a par das “linhas orientadoras para a definição de um novo modelo de organização territorial da justiça, propostas para reformas estratégicas da justiça conexas com a reforma do mapa judiciário”. E expõe “ainda, inovações a adoptar pelo sistema judiciário, com vista à implementação do novo mapa judiciário”.
Como explicita Carla Martins, com base nessas inovações, “aquele relatório [da responsabilidade do OPJ] propõe dois cenários de reorganização do mapa judiciário, cada um com vantagens e desvantagens relativamente ao outro”. “Estes dois cenários são bastantes coincidentes entre si, divergindo, basicamente, no que respeita à matriz territorial a adoptar”, nota a académica, esclarecendo que “o primeiro cenário propunha que os então círculos judiciais, com agregação de concelhos, passassem a ser a nova matriz territorial da organização judiciária”. “Já o segundo cenário propunha a equivalência da nova matriz territorial da organização judiciária às NUTS III”, repara, especificando que as NUTS “referenciam, para fins estatísticos, as divisões administrativas de países” e que as de nível III correspondem às sub-regiões (a exemplo do Baixo Vouga).
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Administração da Justiça baseada nas NUTS II
O segundo estudo mencionado por Carla Martins – ou seja, a proposta de revisão apresentada pelo DEC-UC – “tem por referência o ano de 2015 e especifica a nova organização territorial para a administração da justiça baseada nas NUTS II [sendo as deste nível correspondentes a regiões, como a do Centro] e III, fazendo coincidir os distritos judiciais [cinco] com as NUTS II (agregando as das regiões autónomas à de Lisboa) e as circunscrições judiciais, em 22 casos, com as NUTS III”; e, em oito casos, previa também “a divisão das NUTS III em duas ou mais circunscrições”.
Quando nos propusemos realizar a investigação jornalística que agora concluímos, tivemos em consideração a aplicação da reforma implementada a 1 de Setembro de 2014, através da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, e fomos confrontados com o pressuposto impacto socio-económico e cultural do encerramento de tribunais nos concelhos afectados pelo mapa judiciário de 2014. Por isso, percorremos o País, de Norte a Sul, ouvindo muitos operadores judiciais e do Direito, especialistas e estudiosos da área, bem como os autarcas que aceitaram falar connosco e atendendo, sobretudo, aos testemunhos dos próprios munícipes.
Em Abril de 2013, encontrava-se em discussão na Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 114/12 – Lei de Organização do Sistema Judiciário, diploma que pretendia substituir, como já referimos, a Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto. A esse propósito, Maria de Fátima de Oliveira Duarte (procuradora-geral-adjunta que exercia no Supremo Tribunal de Justiça e que cessaria funções em Fevereiro de 2022, por efeito de aposentação/jubilação), ao assinar o artigo “A Reforma da Organização Judiciária – A Comarca da Grande Lisboa Noroeste” publicado na revista Julgar (n.º 20, de 2013), escrevia: “Esta Proposta de Lei dá continuidade, em muitos aspectos, às linhas de orientação que inspiraram a Lei em vigor [Lei n.º 52/2008], resolvendo até algumas das dificuldades que a execução da mesma vinha revelando, nomeadamente, potenciando uma maior agilidade na gestão de magistrados e funcionários, que, contudo, não deixará de dar origem a problemas de instabilidade relativamente à definição do local de trabalho, sobretudo, nas comarcas de maior área geográfica, sendo necessário criar mecanismos que minimizem esses riscos e permitam o equilíbrio.”
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Por sua vez, na mesma edição da revista Julgar, o juiz conselheiro Luís António Noronha Nascimento (então presidente do Conselho Superior de Magistratura – CSM), enquanto autor do artigo “O Novo Modelo de Gestão na Proposta de Lei dos Tribunais”, afirmava “sem equívocos que a liderança é o maior problema dos tribunais e que contende com um princípio estruturante do Poder Judicial – o da independência dos Tribunais e dos juízes [sic]”.
O juiz conselheiro Noronha Nascimento considerava que “a Lei 52/08 pretendeu acabar com a falta de liderança, estabelecendo um modelo de gestão consensualmente aceite e que provou em pleno na sua aplicação concreta”. Todavia, o antigo presidente do CSM exprimiu “a sua convicção de que a filosofia da Proposta de Lei de Organização do Sistema de Justiça assenta na destruição desse modelo, que substitui pela liderança fragmentada de uma ‘troika’ destinada, como todas as que a história conheceu, a eliminar dois em favor de um”. Ou seja, constituía, no seu entendimento, “uma ‘troika’ de passagem”. Neste caso, “a caminho da ministerialização dos tribunais, através de um administrador comissário”.
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Liderança dos tribunais de comarca
Na opinião do juiz conselheiro Nascimento Noronha, “a liderança dos tribunais de comarca deve ser exercida por um juiz, com o CSM como órgão de cúpula, à semelhança do que acontece com os tribunais superiores”. Ante a evidência da filosofia da aludida Proposta de Lei, o ex-presidente do CSM regista: “[…] primeiro, desfaz-se o a[c]tual modelo que tem funcionado bastante bem, com aceitação generalizada e consenso entre os diversos intervenientes judiciários, substituindo-o por um outro com fragmentação da liderança, com p[ó]los decisórios diversos, embrulhados num conselho de gestão nonde cada qual pode tocar música para lados diferentes, quebrando lealdades funcionais que são essenciais em órgãos de gestão e abrindo portas, assim, a um possível bloqueio na administração da comarca […]”
O autor prossegue, contestando: “[…] depois, mais tarde, porque este novo modelo de administração não funcionou nem provou, avançar com um outro, governamentalizado, de onde os juízes são subliminarmente afastados com a justificação de que o Tribunal tem [de] ser visto como uma unidade produtiva e o juiz foi feito tão-só para julgar segundo regras de contingentação elaboradas por terceiros.”
Ao ponderar sobre a questão de “saber quem deveria liderar a gestão” e a quem esse líder teria de “prestar contas”, Noronha Nascimento diz que este “é o ponto fundador de toda esta temática”. E, neste âmbito, recorda: “As propostas de lei de 2001 (interrompida pelas eleições antecipadas de 2002) e de 2008 tinham uma base de partida muito pouco aceitável; mas a proposta de 2008 foi substancialmente alterada, neste particular, dando lugar à Lei n.º 52/2008 que veio consagrar um modelo de gestão consensualmente aceite e que provou em pleno na sua aplicação concreta.”
Dois anos depois (ou seja, em 2015), ao participar na edição n.º 27 da revista Julgar (publicação que temos vindo a acompanhar), o juiz desembargador José Francisco Moreira das Neves confirma que o “novo paradigma organizativo do judiciário, no que à primeira instância da ordem comum se refere, centra-se nas figuras do ‘juiz presidente’, a quem cabe dirigir o Tribunal; no ‘magistrado do Ministério Público coordenador’, que gere e coordena os serviços do Ministério Público na área da comarca; e no ‘administrador judiciário’, encarregado dos meios que o Ministério da Justiça põe à disposição do Tribunal e do Ministério Público para o desenvolvimento das respe[c]tivas missões constitucionais”. Assim, o autor Moreira das Neves, pensa que esta “teia organizativa, deste modo tecida, encontra natural justificação no facto de os tribunais e o Ministério Público, por razões históricas e políticas[,] partilharem meios (edifícios, equipamentos, funcionários, consumíveis, etc.), que são disponibilizados pelo Ministério da Justiça”.
Ainda a este respeito, o juiz desembargador Moreira das Neves clarifica: “Como é sabido[,] o défice funcional de qualquer destes organismos afe[c]ta, pelo menos parcialmente, o funcionamento dos demais. Daí que [com] uma gestão moderna e eficiente dos recursos comuns[,] se exija uma certa concertação administrativa, sendo essa a razão da existência dos ‘conselhos de gestão’. […]”
Ao enquadrar historicamente os antecedentes da reforma judiciária em curso, um ano após a sua entrada em vigor (ou seja, reportando-nos a 2015), José Francisco Moreira das Neves assume que, de facto, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, posteriormente desenvolvida no Decreto-Lei n.º 49/2014, de 17 de Março, passando a vigorar no dia 1 de Setembro de 2014, “veio substituir uma organização judiciária que[,] apesar de muito remendada após a revolução democrática[,] estava ainda e em boa medida estruturada segundo o modelo que vinha de trás – do Estado autoritário”. Porém, o autor comenta que a “radical mudança de paradigma político não alterou grandemente o pendor pesadamente administrativista, decorrente de um injustificado desequilíbrio organizativo a favor do poder executivo (do Ministério da Justiça), nem a cultura judiciária ainda extremamente conservadora”, em que “o raro verniz resplandecente rapidamente se ofusca”.
Relembrando que o mapa judiciário tinha sido, até então, “matricialmente”, o que “foi delineado por Mouzinho da Silveira”, no século XIX, o juiz desembargador Moreira das Neves perfilhou ser “evidente a necessidade de ajustamento não apenas do número de tribunais e de profissionais a eles afe[c]tos à realidade democrática e de vias de comunicação do país, como ainda de introduzir mecanismos de gestão moderna[,] visando a melhoria do desempenho do sistema”.
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Primeira experiência ensaiada em três comarcas-piloto
No seu artigo publicado em 2015, na revista Julgar, Moreira das Neves reforça a ideia de que a modernização do mapa judiciário se iniciou com a Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, “a qual constituiu uma primeira experiência ensaiada em três tribunais instalados em três novas comarcas, denominadas (estas): Alentejo-Litoral; Baixo Vouga; e Grande Lisboa Noroeste. [sic]” Escreve o mesmo autor que, nessa reorganização, se preconizava “a divisão do país em tantas comarcas quantas as NUT III, instalando em cada uma delas um tribunal de primeira instância”. Embora já tenhamos esclarecido sobre o que significam as NUT (sigla de “Nomenclaturas de Unidades Territoriais”), reforçamos a ideia de que designam as regiões ou sub-regiões em que se divide o território da União Europeia, para feitos estatísticos.
Em Portugal, com o Decreto-Lei n.º 46/89, de 15 de Fevereiro, tinham sido definidas 28 NUT III no território continental: Minho-Lima, Cávado, Grande Porto, Alto Trás-os-Montes (esta sub-região encontra-se, actualmente, dividida nas novas sub-regiões do Alto Tâmega e Terras de Trás-os-Montes), Douro, Ave, Tâmega, Entre Douro e Vouga, Baixo Vouga, Baixo Mondego, Dão-Lafões, Serra da Estrela, Beira Interior Norte, Cova da Beira, Beira Interior Sul, Pinhal Interior Norte, Pinhal Interior Sul, Pinhal Litoral, Oeste, Médio Tejo, Alto Alentejo, Alentejo Central, Lezíria do Tejo, Grande Lisboa, Península de Setúbal, Alentejo Litoral, Baixo Alentejo e Algarve.
Voltando ao artigo de Moreira das Neves, o juiz desembargador contextualiza as novas alterações do mapa judiciário: “Entretanto, enquanto decorria a experiência nas três chamadas ‘comarcas-piloto’[,] alastrou a ideia de que o fraco desempenho da economia nacional tinha uma relação dire[c]ta com a ineficiência e ineficácia do sistema judicial, sendo essa a razão principal pela qual[,] na [P]rimavera de 2011, quando se chamaram as entidades estrangeiras a intervirem no nosso país para saneamento das finanças públicas, se integrou a reforma do mapa judiciário no ‘memorando de entendimento’ vinculante do Estado português perante as entidades resgatadoras”.
Conforme anota Moreira das Neves, nesse documento, “o Estado comprometeu-se a estender a todo o território nacional, até final de 2012, a reforma que estava então em curso, cujo prazo legal de experimentação (na verdade) já se tinha esgotado”. “A entrada em funções (logo a seguir) do novo governo (XIX Governo Constitucional) trouxe como novidade a alteração da base territorial das novas comarcas, que já não seria a das NUT III, mas a dos distritos!”, expressa, com alguma surpresa, o juiz desembargador. Isso porque, para o autor, esta mudança, “nunca bem explicada, afastou deveras o princípio da coincidência com a organização administrativa (com a real, a verdadeira), visto que os distritos são no a[c]tual contexto um enorme vazio; tão grande que o mesmo executivo [que exerceu no período de 21 de Junho de 2011 a 30 de Outubro de 2015, liderado pelo social-democrata Pedro Passos Coelho, tendo como vice-primeiro-ministro o centrista Paulo Portas] nunca nomeou os seus governadores – os Governadores Civis!”
Ao falar dos órgãos de justiça nas comarcas, o juiz desembargador Moreira das Neves cita Ortega y Gasset manifesta que “a clareza é a cortesia do filósofo”. E que, na moral kantiana, “a clareza constitui para o legislador um imperativo categórico”. Para o mesmo magistrado, estas “respeitáveis máximas interpelam-nos quando debruçados sobre os diplomas legais que estruturam a reforma da reorganização judiciária (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, desenvolvida no Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março)”. Em consequência, declara: “[…] somos sobressaltados com as insuficiências, as inconsistências e as contradições dogmáticas e terminológicas onde se não esperaria menos que clareza e sólido esteio empírico nas soluções propugnadas. A dado passo[,] tropeçamos ora na letra de forma ora no discurso oficial de quem gizou a reforma, numa confusão comprometedora da solidez institucional que é apanágio das leis desta natureza e responsabilidade”.
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Atenção aos poderes de gestão processual
Outra autora participante na 27.ª edição da revista Julgar (com a chancela da Coimbra Editora) é a juíza Maria José Costeira. No seu artigo “O Novo Modelo de Gestão dos Tribunais. Um Ano Depois”, esta magistrada, ao dar particular atenção aos poderes de gestão processual do juiz presidente, alerta para os respectivos limites, “ditados pelos princípios fundamentais da independência dos juízes, do juiz natural e da inamovibilidade”.
“Da experiência vivenciada neste último ano” (com a entrada em vigor da reforma da reorganização judiciária, em 1 de Setembro de 2014), esta magistrada – que, a 19 de Setembro de 2016, seria nomeada para o cargo de juiz do Tribunal Geral (um dos tribunais da União Europeia) – escreve: “[…] pode concluir-se que o novo modelo de gestão dos Tribunais (e só essa parte da reforma foi objecto de análise), tal como se encontra desenhado, não serve os fins pretendidos”.
No seu texto, datado de 2015, a juíza Maria José Costeira diz que a “entrada apressada em vigor do novo modelo de organização impediu que fossem interiorizados conceitos e estruturadas linhas de actuação, levando a que, à medida que os problemas iam surgindo e sem que fossem devidamente pensados e estudados, se encontrassem soluções casuísticas, umas mais felizes que outras, sem quaisquer preocupações de uniformidade de procedimentos e critérios entre Tribunais”.
Por outro lado, a magistrada (que seria eleita presidente da 6.ª Secção do Tribunal Geral da União Europeia, para o período compreendido entre 30 de Setembro de 2019 e 31 de Agosto de 2022) releva que “não foram definidos e estabelecidos os limites das competências dos presidentes, nem, designadamente, balizadas face às competências próprias dos juízes titulares do processo permitindo estabelecer, de forma clara e unívoca, os limites de cada uma”.
Em jeito conclusivo, a juíza Maria José Costeira manifesta: “Se o novo modelo de gestão dos tribunais tem virtualidades para […] melhorar a eficiência e eficácia dos tribunais, tem igualmente regras e procedimentos que, se objecto de determinadas interpretações, põem em causa princípios constitucionais que norteiam a actividade dos tribunais, e que não podem ser sacrificados a pretexto da eficiência e eficácia.” E, neste campo de acção, a magistrada é peremptória: “A justiça não pode ser vista apenas numa perspectiva quantitativa ou economicista. Os Tribunais não são fábricas de produção de sentenças nem os juízes operários indiferenciados.”
Esta percepção da “Justiça” vem ao encontro do que afirmou a ex-bastonária da Ordem dos Advogados (em final de mandato), Elina Fraga, na Abertura do Ano Judicial de 2016 – cerimónia que decorreu na manhã de 1 de Setembro e que marcou o início de mais um ano de trabalho para magistrados, advogados, solicitadores, oficiais de justiça e funcionários, no Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça –, recusando a “máquina judiciária” de alguns que “renegam pertencer à família judiciária”: “Uma ‘máquina’ que privilegia a quantidade e representa uma Justiça sem humanidade, sem rosto e sem alma. Não é essa ‘máquina’ que ambicionamos para a Justiça.”
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Caracterização demográfica de Castro Daire
Entre os 21 municípios envolvidos na nossa investigação jornalística, no contexto do dossiê “Justiça: o que não se lê no mapa”, o de Castro Daire é o mais populoso. Fazendo parte do distrito administrativo de Viseu, este concelho apresentava 16.990 habitantes, em 2001. No entanto, segue o destino da maioria dos concelhos agora observados no que se relaciona com a queda demográfica. Por isso, seguindo os elementos extraídos dos dados preliminares dos Censos 2011, pela Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ), é-lhe apercebida uma população residente de 15.382 pessoas (já o INE – Instituto Nacional de Estatística diz que foram 15.339 os habitantes então registados), o que corresponde a menos 1.608 cidadãos e a uma variação negativa de 9,46%. Essa mesma tendência é exposta na base de dados da Pordata, no período de 2010 a 2019, com os registos respectivos de 15.468 e de 13.876 habitantes. O que representa a perda de 1.592 cidadãos, condicionando o próprio índice de envelhecimento local que, nestes anos, subiu de 190 para 277.
Com base nos resultados preliminares do XVI Recenseamento Geral da População e VI Recenseamento Geral da Habitação (Censos 2021), apresentados pelo INE, a 28 de Julho, vemos também confirmada a tendência para o decréscimo demográfico no município de Castro Daire. Com efeito, entre os dois últimos momentos censitários (em 2011 e em 2021, seguindo os dados ainda não definitivos), a variação da população residente neste concelho é de -10,3%, resultante da perda de 1.586 munícipes numa década.
Todavia, com a publicação dos resultados definitivos dos Censos 2021, observamos um acerto dos números relativos à população residente no município castrense (13.736 indivíduos), verificando-se uma variação negativa ou um decréscimo de 1.603 habitantes, face aos Censos de 2011. Ou seja, de facto, a variação da população residente neste município é ainda mais acentuada, depois do acerto dos dados preliminares: -10,45%.
Com base nos resultados definitivos dos Censos 2021, a Pordata procedeu a uma análise da evolução, em cada década, entre 1960 e 2021, em diversas áreas, a exemplo da densidade populacional (que é o número médio de indivíduos por quilómetro quadrado). Com efeito, em 1960, a densidade populacional de Castro Daire era de 66,0. Seis décadas depois, em 2021, regista-se uma densidade populacional de 36,2.
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Movimento processual do tribunal de Castro Daire
A Comarca de Viseu assente no Distrito Administrativo compreendia, antes desta reforma judiciária (regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março), um conjunto de 17 comarcas: Armamar, Castro Daire (que, agora, estamos a observar), Cinfães, Lamego (incluindo Tarouca), Mangualde (incluindo Penalva do Castelo), Moimenta da Beira (incluindo Penedono e Sernancelhe), Nelas, Oliveira de Frades, Resende, Santa Comba Dão (incluindo Carregal do Sal e Mortágua), São João da Pesqueira, São Pedro do Sul, Sátão (incluindo Vila Nova de Paiva), Tabuaço, Tondela, Viseu e Vouzela.
No que concerne à organização e aos recursos humanos, o tribunal de Castro Daire – que, com os ajustamentos ao mapa judiciário, passou a ser um novo juízo de competência genérica, a exemplo do que se verificou em Oliveira de Frades, em Miranda do Douro e em Nisa – dispunha de um juiz no seu quadro legal, o qual se encontrava em exercício de funções. O mesmo sucedendo com o único magistrado do Ministério Público.
Quanto aos oficiais de justiça, o tribunal de Castro Daire apresentava nove profissionais no seu quadro legal, estando todos eles a exercer funções localmente.
Ao considerar o movimento processual e a média das entradas no Tribunal Judicial de Castro Daire, entre 2008 e 2010, a Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) registava 422 processos na comarca, os quais se distribuíam, por ordem decrescente, da seguinte maneira: 116 execuções, 67 processos no âmbito da média instância cível, 65 processos no contexto do Trabalho, 53 processos de média instância criminal, 46 processos relacionados com família e menores, 27 processos de pequena instância cível, 23 processos de pequena instância criminal, 13 de grande instância cível, sete de instrução criminal, assim como de três processos na área do Comércio e de dois processos de grande instância criminal.
Uma das consequências imediatas da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), atendendo à aplicação das disposições enquadradoras da reforma do sistema judiciário, foi a extinção de duas dezenas de tribunais, tendo, para esse efeito, sido indicadas como principais causas o diminuto volume processual (inferior a 250 processos por ano – o que não se verificou em Castro Daire, que dava conta de 422 processos), a par das precárias condições rodoviárias e rede de transportes para as respectivas populações, tomando ainda em consideração as condições das instalações dos próprios tribunais.
Refira-se que, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março, o dito novo mapa judiciário inseria-se, dessa forma, numa “ampla reorganização do sistema judiciário português”, tendo em vista “três objectivos primordiais”: “alargar a base territorial das circunscrições judiciais”, procurando que coincidissem, “em regra, com as centralidades sociais”; “instalar jurisdições especializadas a nível nacional” e “implementar um novo modelo de gestão das comarcas”. Por conseguinte, com estas alterações do mapa judiciário, as secções de competência genérica – como é a de Castro Daire – tramitam e podem julgar causas não atribuídas a outra secção de instância central e são-lhes atribuídas competências para julgarem acções declarativas cíveis de processo comum de valor igual ou inferior a 50 mil euros.
Relativamente ao Tribunal Judicial de Castro Daire (incorporado na anteriormente desenhada e não concretizada circunscrição de Dão-Lafões, de acordo com a anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ou Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, tendo o alargamento do respectivo mapa judiciário sido suspenso, em Maio de 2010, pelo XVIII Governo Constitucional, no segundo mandato do socialista José Sócrates), o executivo camarário e as forças locais, perante um estudo então divulgado (o referido Ensaio para a Reorganização da Estrutura Judiciária, da Direcção-Geral da Administração da Justiça – DGAJ, em Janeiro de 2012), chegaram a temer a sua extinção em 2014, atendendo a que fazia parte da lista de 47 tribunais ou juízos a extinguir (incluindo a comarca de Nordeste, nos Açores). Porém, a este tribunal (então assumido como secção de proximidade do respectivo tribunal judicial de comarca) eram garantidas, em 2017, funções de juízo de competência genérica.
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Evitar “guiché da porta dos fundos”
Entretanto, são também várias as secções de proximidade que, com esta mudança, passam a realizar actos judiciais que não exijam um colectivo de juízes (para crimes com penas até cinco anos e ainda para casos de Família e de Menores), em vez de funcionarem como o “guiché da porta dos fundos”, nas palavras do deputado bloquista José Manuel Pureza, recuperadas pela ministra socialista Francisca Van Dunem.
Segundo a DGAJ, no mencionado documento/ensaio que publicou em Janeiro de 2012, a comarca de Castro Daire dava resposta judiciária, através do seu tribunal competente (ou tribunal de comarca), às áreas Cível, Penal, Família, Menores e Comércio, cabendo ao Tribunal do Trabalho de Lamego competência para as questões laborais dos habitantes castrenses.
Com essa proposta de organização, o Tribunal Judicial do Distrito de Viseu (TJDV) passaria a ter competência, no contexto da sua instância central (do TJDV), para a matéria cível e para a matéria criminal, com um correspondente volume processual expectável de 615 processos e de 136 processos, sob a alçada de cinco juízes.
Por sua vez, no que respeita às secções de competência especializada, a 1.ª Secção do Trabalho, na cidade de Lamego, teria um volume processual expectável de 510 processos (para um juiz), enquanto a 2.ª Secção do Trabalho, na capital de distrito (Viseu), responderia a um volume processual de 1110 processos previstos (atribuídos a dois juízes), valores calculados em função do peso relativo das populações residentes, em 2011, nos municípios que integram as áreas de jurisdição daqueles tribunais.
Com a aludida reorganização do mapa judiciário, a 1.ª Secção do Trabalho (em Lamego) passaria a ter competência territorial para os concelhos de Armamar, Cinfães, Lamego, Moimenta da Beira, Penedono, Resende, São João da Pesqueira, Sernancelhe, Tabuaço e Tarouca. Assim, à 2.ª Secção do Trabalho, localizada em Viseu, destinava-se uma área de competência territorial que abrangeria os municípios de Castro Daire, Carregal do Sal, Mangualde, Mortágua, Nelas, Oliveira de Frades, Penalva do Castelo, Santa Comba Dão, São Pedro do Sul, Sátão, Tondela, Vila Nova de Paiva, Viseu e Vouzela.
No quadro desta instância central, são ainda propostas as secções de Execução, de Comércio e de Instrução Criminal, todas sediadas na capital de distrito. Já a Secção de Família e Menores subdivide-se na 1.ª Secção – com sede em Lamego e competência territorial para Castro Daire e para os municípios de Armamar, Cinfães, Lamego, Moimenta da Beira, Resende, Tabuaço e Tarouca – e na 2.ª Secção de Família e Menores, localizada em Viseu, cuja área territorial englobaria os restantes concelhos do distrito: Mangualde, Nelas, Oliveira de Frades, Penalva do Castelo, São Pedro do Sul, Tondela, Viseu e Vouzela.
Relativamente às instâncias locais do TJDV, a Direcção-Geral da Administração da Justiça previa para a então comarca de Castro Daire um volume processual, subsistente à especialização proposta, de 94 processos na área cível e de 76 processos em matéria criminal, totalizando 170 processos.
No mesmo documento (Ensaio para a Reorganização da Estrutura Judiciária), a DGAJ entendia que no distrito de Viseu “existem comarcas que apresentam um volume processual muito reduzido”, mesmo atendendo a que a população residente neste distrito “sofreu uma redução de 4,24% nos últimos 10 anos”, fundamentando-se nos resultados preliminares dos Censos 2011. Com excepção de Viseu, “em todos os outros [municípios] verificou-se uma diminuição da população residente”.
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DGAJ recomendava extinção de várias comarcas
A tutela, ao analisar alguns factores como o movimento processual, a evolução demográfica e a inexistência de “instalações adequadas”, justificava a extinção de vários tribunais deste distrito do Centro-Norte do País (na histórica província da Beira Alta). Nessa lógica, a DGAJ recomendava a extinção das comarcas (tribunais) de Resende, de Nelas, de Armamar, de Tabuaço, de Oliveira de Frades e de Castro Daire, sugerindo que a população castrense passaria a deslocar-se ao tribunal de São Pedro do Sul, o qual – com competência genérica – responderia às necessidades de justiça dos municípios de Castro Daire e de São Pedro do Sul.
A propósito da contingencial extinção da comarca de Castro Daire, a DGAJ argumentava que esta mostrava “valores, quer de movimento processual quer de população, inferiores relativamente à comarca de São Pedro do Sul”. Nessa ocasião, o Ministério da Justiça expectava um volume de 433 processos para a instância local (tribunal) de São Pedro do Sul, na qualidade de secção de competência genérica.
“No que se refere à evolução demográfica, nos últimos 10 anos (Censos 2011 Preliminares), a comarca de Castro Daire apresenta uma diminuição da população em cerca de 9,46%, e São Pedro do Sul uma redução de cerca de 11,26%”, notava a DGAJ, sublinhando existirem, à data, “bons acessos rodoviários entre os dois municípios”, que estão a uma distância de 25 quilómetros, envolvendo uma deslocação de cerca de 29 minutos.
Em termos comparativos, a DGAJ afirmava que, em relação às instalações, “ambos os tribunais estão instalados em edifícios da propriedade do Instituto de Gestão Financeira e Infraestruturas da Justiça (IGFIJ)”. Todavia, declarava: “O edifício de São Pedro do Sul dispõe de melhores instalações e de condições mais adequadas ao funcionamento do respe[c]tivo tribunal”.
Não obstante as intenções iniciais do ministério de Paula Teixeira da Cruz, a população de Castro Daire – que, a 17 de Fevereiro de 2012 (contando também com a presença do bastonário da Ordem dos Advogados, António Marinho e Pinto), entre outros momentos, se manifestou contra o encerramento da comarca local e não queria estar dependente do tribunal no município vizinho, São Pedro do Sul – ficou aliviada pela manutenção do seu tribunal. Assim, não se verificou “a materialização da injustiça”, como afirmava o então representante da OA em Castro Daire, João Sevivas, pai da nossa entrevistada Joana Raquel Sevivas e actual deputada da Assembleia Municipal.
Como informava o Jornal de Notícias (na edição on-line de 3 de Fevereiro de 2012), o advogado João Sevivas recordou que o tribunal castrense movimentava “cerca de 500 processos nos juízos cível e criminal, além de considerar que o edifício do tribunal de S. Pedro do Sul não oferece melhores condições”.
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Nomenclatura associada ao “novo” mapa judiciário
Quanto à nomenclatura associada ao “novo” mapa judiciário, o diário digital dos oficiais de justiça avançava, a 26 de Março de 2026, com uma proposta “no sentido de reformar a nomenclatura reformada em [S]etembro de 2014”. Assim, a publicação Oficial de Justiça considerava que a actual “designação dos tribunais em secções é desadequada a todos os níveis, confunde os cidadãos e não é apropriada para o valor da função e peso social que se pretende que os tribunais tenham na sociedade”. Ao observar que a “administração da Justiça não pode ser confundida com qualquer outra prestação de serviços” – o que, no seu entendimento, esta “nomenclatura indicia” –, a mesma publicação periódica dirigida aos oficiais de justiça nacionais salienta que “os cidadãos não podem ser julgados em secções depois de porem injunções em balcões”. “Esta desjudicialização é prejudicial para o conceito de Justiça que a sociedade detém”, regista ainda o blogue Oficial de Justiça.
No mencionado artigo, reconhece-se que, a par da existência de um Supremo Tribunal de Justiça, de um Tribunal Constitucional, de Tribunais da Relação e de outros de carácter designado de “competência territorial alargada”, como os tribunais de Execução de Penas, da Propriedade Intelectual, Tribunal Marítimo, Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, bem como os tribunais administrativos e fiscais, “todos os demais tribunais de 1.ª instância são hoje denominados como meras secções”. É notório o tom crítico: “É a secção de família e menores, a secção do trabalho, etc. São só secções e não tribunais. Não se pode confundir a comarca com os tribunais.”
Por conseguinte, sugere-se que os “tribunais devem voltar a fazer parte da nomenclatura, como tribunais judiciais, seguidos do nome da localidade (do município ou dos municípios a que corresponde) ou tribunais especializados como o de família e menores, etc.[,] perdendo de vez a designação de secções”. Nessa lógica, a “comarca pode perfeitamente ser composta por diversos tribunais com o nome das localidades onde estão implantados, retomando a harmonia da nomenclatura nacional com todos os demais tribunais”.
Esta sugestão dos oficiais de justiça passa pela “retoma das designações dos tribunais, já não denominados como tribunais de comarca, porque foram extintas, mas apenas como tribunais judiciais da localidade/município(s)”, apesar de “pertencerem a uma ampla área jurisdicional de uma comarca”. A este propósito, vinca a referida publicação digital: “Não é incompatível a existência de tribunais diversos e muitos dentro de uma mesma comarca. É possível manter a a[c]tual divisão de instâncias centrais e locais[,] mas estas dentro dos tribunais.”
E exemplifica: “[…] a Comarca de Coimbra poderia ter os tribunais de Arganil, de Cantanhede, de Coimbra, etc. O primeiro seria designado como Tribunal Judicial de Arganil, detendo uma secção de competência genérica, como tem, e, no segundo, seria também designado como Tribunal Judicial de Cantanhede, neste existindo as secções especializadas cível e criminal, como tem, enquanto que[,] em Coimbra, para além de ser a sede da comarca, existiria o Tribunal Judicial de Coimbra, dividido em secções cíveis e criminais locais e depois os Tribunais Centrais: Tribunal Central Cível, Tribunal Central Criminal, Tribunal de Família e Menores, Tribunal do Trabalho, etc.”
Para os oficiais de justiça representados nesta publicação, trata-se de incorporar sempre a nomenclatura “Tribunal”, “ainda que estes sejam divididos em secções e estas ainda subdivididas em 1.ª secção, 2.ª secção, etc.” E “não na a[c]tual e absurda divisão de Juiz 1, Juiz 2, etc.”, comentavam, num texto datado de 26 de Março de 2016. Desse modo, recomendam, em vez de “secção”, a designação de “juízo”, “mas suprimindo o J1, J2, etc.[,] seja pela forma abreviada ou por extenso, pois tal designação não só é absurda como ridícula”.
“Para além disso, da mesma forma que hoje existem secções com vários jotas ou juízes, tal não invalidada que continuem a existir secções com vários juízos”, anotava o blogue Oficial de Justiça, alegando que esta sua proposta foi “apresentada no sentido de melhorar a nomenclatura da reorganização judiciária que se mostra desadequada e mais longe ainda das populações, não só fisicamente como também pelas designações complexas e incompreensíveis”.
Nos seus apontamentos sobre a nova versão da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e acerca do que muda na competência cível, Miguel Teixeira de Sousa (professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa) observa que uma “boa parte das alterações introduzidas na LOSJ em matéria de competência decorre de uma mera mudança terminológica nos tribunais de 1.ª instância de competência especializada, de acordo com o disposto no art. 81.º, n.º 3”. Em concreto, para este jurista, “o esquema é o seguinte (conforme artigo 4.º L 40 A/2016; art. 2.º DL 86/2016)”: as instâncias centrais passam a ser denominadas como juízos centrais cíveis (confira o artigo 81.º, n.º 3, al. a)); as instâncias locais passam a ter a designação de juízos locais cíveis (art. 81.º, n.º 3, al. b)); as secções de família a menores passam a designar-se como juízos de família e menores (cf. art. 81.º, n.º 3, al. g)); as secções de trabalho passam a ser nomeadas como juízos do trabalho (cf. art. 81.º, n.º 3, al. h)).
No que respeita às secções de comércio, estas adquirem a designação de juízos de comércio (cf. art. 81.º, n.º 3, al. i)), enquanto as secções de execução são renomeadas como juízos de execução (art. 81.º, n.º 2, al. j). Como esclarece Miguel Teixeira de Sousa, esta “alteração terminológica teve como consequência que cerca de 25 preceitos (entre artigos e números de artigos) foram alterados apenas para ficarem em concordância com a nova terminologia”.
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Um tribunal “não é um supermercado da Justiça”
Recuperando a conversa telefónica que estabelecemos, em 17 de Novembro de 2021, com Nuno Pinto Coelho Faria (pode rever, neste dossiê de pesquisa jornalística, a reportagem “O direito à Justiça no Oeste: Bombarral e Cadaval ligados no mapa”), a quem foi solicitado, pela Câmara Municipal do Bombarral, um relatório conclusivo do processo relacionado com o encerramento do tribunal local, este advogado, que exerce há mais de duas décadas, reconhece que “o mapa judiciário não pode ser uma estatística de aviamento dos serviços da Justiça”. Ou seja, a seu ver, um tribunal “não é um supermercado da Justiça, mas um sítio onde as pessoas podem ver os seus problemas e litígios resolvidos”.
Para o causídico com escritório na Avenida da Liberdade, em Lisboa, esta reforma judiciária não respondeu intencionalmente os interesses dos magistrados. “O que há é, sobretudo um problema com a despesa de manutenção dos múltiplos equipamentos. E há, de facto, muita falta de cuidado na sua manutenção, porque existe uma indefinição acerca daquilo que é o conceito de ‘responsabilidade partilhada’ e a despesa com os equipamentos”, especifica Nuno Pinto Coelho Faria, advogado com área de prática incidente nos Direitos Reais e que tem patrocinado diversas acções no contexto das matérias deste ramo do Direito, seguindo o critério de competência territorial da área dos bens. “Não acho que tivesse havido trade-off [ou situações de conflito de escolha] com os magistrados nem com ninguém! Houve, apenas e só, o problema de que a Justiça é encaradas como uma responsabilidade da Administração Central e que o Estado gostaria de passar isso para as autarquias locais, no seu todo”, argumenta o advogado, que interveio profissionalmente em inúmeros processos judiciais na região Oeste, respectivamente nas “comarcas” do Cadaval e do Bombarral, como em Torres Vedras, Caldas da Rainha, Lourinhã, Mafra, e Alenquer, entre outras.
Na conversa que mantém com o sinalAberto, Nuno Pinto Coelho Faria volta a dizer que “há traços civilizacionais fundamentais no exercício do Estado de direito e daquilo que é aplicado no território, tenha ele a dimensão que tiver.” Por isso, entende que a expressão “Estado de direito” significa que “o exercício do poder público está submetido a normas e a procedimentos jurídicos (procedimentos legislativos, administrativos, judiciais) que permitem ao cidadão acompanhar e eventualmente contestar a respectiva legitimidade” – leia-se também “a constitucionalidade, a legalidade”…
No decurso da entrevista, por telefone, em torno dos impactos sociais, económicos, culturais e/ou simbólicos da aplicação do novo mapa judiciário em 2014, que implicou o encerramento da então comarca do Bombarral (num grupo de vinte, no território continental), cujo tribunal foi reactivado em 2017, como secção ou juízo de proximidade, o advogado frisou que “o aspecto mais importante da reforma é a falta de ideias claras”.
Por outro lado, advertiu para “a falta de noção de que as comunidades locais – sejam de média ou, mesmo, de pequena dimensão – são constituídas por um conjunto de factores que têm, alguns deles, de ser garantidos pelo próprio Estado e pelas autarquias locais”. “Portanto, neste momento, não foi perseguido ou não é entendido que existam quatro ou cinco elementos fundamentais para a agregação da população do interior do país”, explicita o jurista, exemplificando com a “fuga” dos Correios de Portugal (CTT), dos serviços de saúde, dos tribunais. No domínio da Educação, como verifica o nosso entrevistado, as autarquias “já estão a assumir” competências e atribuições, especialmente no ensino básico.
“No resto, não! E, assim, estes pilares de cidadania local têm a ver, como se calcula, com uma jurisdição dependente, exactamente, de critérios territoriais”, salienta Nuno Pinto Coelho Faria, exemplificando: “Um julgamento sob a circunstância da prática de um crime decorre do lugar do seu cometimento. Porém, tudo isto é esquecido ou é menos valorizado por questões económicas.”
“Não acho que tenha havido trade-off, absolutamente nenhum, com os magistrados. Houve, sim – e é uma coisa muito clara –, a consideração de que a Justiça é cara. Isso é altamente estranho. Pois, não pode ser, nunca! Da mesma forma que a vida humana não tem preço, a administração da justiça não pode ter preço. E verificamos, precisamente, o contrário”, insiste o causídico, que desenvolve muita actividade na região Oeste, gracejando com o facto de, à excepção desta e do Algarve, não ter conhecimento de placas de identificação nas estradas a indicarem a “direcção de outras regiões, como Trás-os-Montes ou a Beira Alta”.
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“Um problema de captação de fundos”
“O que acontece é que, do ponto de vista daquilo que é a distribuição das comarcas, não faz qualquer sentido, neste momento, a divisão administrativa que persiste e que só existe porque há um problema de captação de fundos e da sua integração. Não há, actualmente, qualquer tipo de utilidade na divisão distrital no que respeita ao acesso à justiça e à sua organização”, avalia o advogado. Para si, “um dos aspectos mais importantes e que deveria passar a existir” prende-se com “a resolução de uma reforma definitiva acerca do que são as comarcas, bem como os tribunais superiores da Relação e aquilo que é a realidade”. “Faz sentido manter esta divisão administrativa do mapa judiciário em função dos tribunais superiores?”, questiona o jurista, admitindo que “não”.
“Um dos critérios fundamentais da incidência e da definição das regras de competência é a ocorrência territorial e o conceito de ‘comarca’. Isso é importante e não é um pormenor”, persevera Nuno Pinto Coelho Faria, complementando: “Se pensarmos que Rabo de Peixe [no município da Ribeira Grande, nos Açores] é uma zona com problemas de tráfico e de consumo de droga, onde há toda uma delinquência associada ao consumo de estupefacientes e à muita pobreza, imagine-se – independentemente das dificuldades com os transportes – que quem aí [nessa vila açoriana] comete qualquer delito venha a ser julgado, aqui, em Lisboa!”
“Todos os intervenientes processuais têm uma realidade socio-económica completamente distinta da comarca do cometimento e, assim, o juiz tem baixa competência para julgar o facto e o infractor”, anota o advogado, avisando: “Não podemos considerar, de ânimo leve, aquilo que é a diferença. O mapa judiciário não é uma coisa que se define pela quantidade”. Ou seja, como nos confirma o causídico, um facto entende-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente (eventual, infractor) actuou ou – atendendo a uma suposta omissão – devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tiver produzido.
Ao perguntarmos se está, nestas situações, em causa a coesão territorial, Nuno Pinto Coelho Faria responde que “sim”, alegando que “uma questão fundamental é a da criação de comarcas de primeira e de segunda”, induzindo a noção “de concelhos de primeira ou de segunda – uns com direito à plenitude do exercício e do gozo de serviços básicos e outros sem isso”. “O que não pode nem deve existir!”, sublinha. “Isso é um sinónimo, exactamente, de uma lógica de concentração de serviços com um racional que abrange um critério” que não corresponde a uma adequada “representação judiciária onde o Estado entenda que existe uma divisão administrativa”.
Quando os tribunais que estiveram encerrados ou praticamente inactivos, num período superior a dois anos, foram reactivados, a partir de Janeiro de 2017, com a decisão avançada pela ministra da Justiça do XXII Governo Constitucional (liderado pelo socialista António Costa), Francisca Van Dunem, constata-se que abriram as suas portas, mas que perderam competências, apresentando-se como juízos de proximidade. O que, muitas vezes, parece um paradoxo, constituindo uma proposição oposta à opinião comum das populações.
“A única coisa que, com isto, se quer fazer é dar uma satisfação paliativa de que não se desconsiderou a comarca, quando se fez… E não se tem, neste caso, a coragem política de dizer que a decisão está errada e que deveríamos reverter. Isso é também muito raro em reformas profundas”, menciona o advogado, acrescentando: “Se a decisão de encerramento dos tribunais estava errada, é também preciso assumir que deve haver justiça de proximidade…”
Ao constatar “uma rigidez para aquilo que é a degradação dos serviços” e “um centralismo crescente”, o jurista reprova “a lógica de chamar juízo de proximidade a alguma comarca, revelando um tratamento paternalista em relação a determinada área do território”. Na sua opinião, isso, “apenas, corresponde a um desdobramento do centralismo, que é, completamente, a negação da essência da administração da Justiça”. “Nós somos de um país onde os pelourinhos assinalavam os locais da administração, que não eram no Terreiro do Paço”, relembra Nuno Pinto Coelho Faria, o qual advoga que, “no ponto de vista do mapa judiciário, dos operadores judiciais e do Ministério da Justiça, tem de haver, realmente, uma preocupação com o princípio da dignidade da pessoa humana”.
“A dignidade com que se realiza a justiça pode depender, muitas vezes, também de instalações e de um conjunto de outras coisas”, explana o jurista. Contudo, apercebe-se de que, fundamentalmente, “o problema, neste momento, não é esse”. “Não tem a ver com a qualidade das instalações, as quais se conseguem arranjar facilmente, para que a justiça seja administrada com dignidade, localmente e com segurança”, clarifica, adiantando que “o tema está, exactamente, naquilo que é o centralismo e uma visão tacanha em que o país continua a ser o dos grandes centros urbanos, enquanto o resto é paisagem”.
Como declarou ao sinalAberto, aludindo particularmente aos tribunais do Bombarral e do Cadaval, o causídico avaliou negativamente a decisão política que “deslocou para fora dos concelhos aquilo que é o primeiro dos litígios, o primeiro dos processos, a primeira das matérias que um tribunal de comarca de província trata e que consiste nos direitos reais”. “Transferiu-se os característicos problemas da província para fora dela. Isso é um prejuízo que introduziu na própria comunidade, naturalmente, aquele que é um sentimento de menor protecção, de menor tutela efectiva, de menor possibilidade de salvaguarda dos seus direitos e dos seus interesses”, elucidou, ironizando que “é uma perda de qualidade que, depois, se procura recuperar chamando-lhes juízos de proximidade”.
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Valores do Estado de direito democrático
“Se nós transigirmos nos princípios ou valores do Estado de Direito Democrático, não somo nós, antes é o Estado de Direito Democrático que capitula”, advertiu a ex-bastonária da Ordem dos Advogados, Elina Fraga, quando discursou no âmbito da Abertura do Ano Judicial, na cerimónia realizada a 1 de Setembro de 2016, sob a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa.
Na oportunidade, a bastonária da OA também se dirigiu a Francisca Van Dunem – que sucedeu a Paula Teixeira da Cruz e a Fernando Negrão, no Ministério da Justiça – assinalando que a, então, nova responsável pela tutela “não começou, como tantas vezes começam os ministros, por rasgar todas as reformas e romper com todas as políticas, numa tentativa desesperada de inscrever o seu nome na [H]istória da Justiça em Portugal”.
“Vossa Excelência não legislou a metro, nem a quilo, reincidindo em políticas do passado que valorizavam a produção legislativa, produzindo-se compulsivamente, mesmo que as leis fossem indecifráveis, os decretos-leis obscuros, com portarias pelo meio a revogar disposições de Códigos aprovados na Assembleia da República e vertidos em leis”, prosseguiu Elina Fraga, comentando: “À tentação de legislar muito ofereceu V.ª Ex.ª a serenidade de quem conhece os Tribunais, os valoriza enquanto órgãos de soberania e sabe o peso que tem, o flagelo que representa, em cada um de nós, Juízes, Procuradores, Advogados ou Funcionários Judiciais, cada alteração que se introduz no sistema da justiça. [sic]”
No seu discurso, Elina Fraga (cujo mandato de bastonária da OA estava a findar) refutou a “máquina” que “despreza as garantias, fazendo-as coincidir com expedientes, que não respeita as pessoas, porque está prese às estatísticas, que confunde celeridade com o automatismo do copy paste nas decisões”, acrescentando, mais à frente, que queria “viver num país com Tribunais com uma cultura democrática reforçada, em que Juízes, Procuradores e Advogados se respeitem na diversidade das suas funções, conscientes de que todos são igualmente imprescindíveis para a boa administração da Justiça. [sic]”
Por sua vez, a ministra Francisca Van Dunem – que integrou os XXI e XXII governos constitucionais, ambos chefiados pelo socialista António Costa (entre 26 de Novembro de 2015 e 30 de Março de 2022) – apelou a “um contrato institucional que reduza a possível soma das nossas incompreensões e aprimore formas cooperativas dinâmicas, permanentes e efe[c]tivas”. Nesse espírito, a governante recordou que o “ano que findou [2015] foi ainda muito marcado por movimentos de adaptação à reforma da organização judiciária implementada em 2014”.
Como declarava Francisca Van Dunem, a “experiência confirma um conjunto de dificuldades que se antecipava, decorrentes da circunstância de o desenho concreto das circunscrições judiciais e a distribuição interna das várias jurisdições ter deixado no esquecimento áreas territoriais já vulneradas – os espaços interiores e periféricos –, privando as respe[c]tivas populações de uma presença judicial acessível”. Por isso, o “governo formou a decisão de intervir com uma iniciativa que, mantendo intactos os eixos axiais da reforma, a ajusta à necessidade de aproximação da Justiça dos cidadãos, em particular nas jurisdições de família e menores e penal”, argumentava a ministra.
Outra individualidade que participou nessa sessão que assinalava a Abertura do Ano Judicial, em 1 de Setembro de 2016, foi António Henriques Gaspar, na qualidade de presidente do Supremo Tribunal de Justiça (entre 2013 e 2018), o qual disse ser seu “dever” salientar, em traços gerais, “adequados à estética da circunstância, alguns factos – puros factos – que constam de elementos oficiais disponíveis e que contrariam o sentimento que as perce[p]ções externas sobre a Justiça revelam”.
Assim, o magistrado informava que, na “última década, de modo consistente, a taxa de resolução e a taxa de descongestionamento processual têm vindo a melhorar, com valores muito positivos em 2025 e no primeiro trimestre de 2016, baixando as pendências processuais (12%)”. O presidente do STJ, fundamentando-se nos dados mais recentes (à data), informava que “o tempo de duração média na primeira instância em matéria cível, excluídas as execuções, foi de 17 meses” e que em “matéria penal, a duração média desde a acusação foi de 10 meses e meio”, enquanto na justiça laboral se verificavam “oscilações no desempenho”, com a “média de duração entre 11 meses e 12 meses e meio”.
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“Uma séria preocupação na gestão do sistema”
O magistrado António Henriques Gaspar sublinhou, ainda, que a acção executiva teve, em 2015, “um bom desempenho formal, com elevadas taxas de resolução”. O presidente do STJ mencionou que “o primeiro trimestre de 2016 foi o 14.º trimestre consecutivo com taxa de resolução processual superior a 100%”, no entanto, o número de execuções pendentes constituía, para si, “uma séria preocupação na gestão [do] sistema”.
Ao saudar o facto de o governo vigente ter preparado legislação “prevendo alguns ajustamentos na organização judicial, com a finalidade de superar dificuldades, também identificadas pelo CSM [Conselho Superior da Magistratura], e melhorar as condições de proximidade da administração da Justiça”, o magistrado António Henriques Gaspar expressava: “A realidade com que nos confrontamos, não sendo, com certeza, o melhor dos mundos, está distante das perce[p]ções negativas que afe[c]tam o sistema de justiça.”
Prosseguindo no seu discurso, o magistrado reiterou a sua preocupação relativamente à “complexidade situacional” da acção executiva, “consequência agregada de um erro histórico e genético do modelo e dos efeitos devastadores da crise económica”. Como constatava, nos “anos mais recentes”, a acção executiva foi cerca de 70% de todo o contencioso, constituindo “uma ordem de grandeza que perturba o equilíbrio de qualquer sistema”.
A magistrada Maria Joana Marques Vidal – que foi procuradora-geral da República, de 2012 a 2018 – interveio, igualmente, na mesma cerimónia de Abertura do Ano Judicial e assumiu “a necessidade de incentivar e promover uma a[c]ção mais intensiva, profícua e eficaz, a exigir ao Ministério Público uma organização interna promotora de um trabalho rigoroso, empenhado e articulado, numa visão necessariamente sistémica e integrada”. “Torna-se, assim, imprescindível ultrapassar os bloqueios causadores da morosidade processual verificada” nos tribunais administrativos e fiscais, cujas matérias das suas competências se constituem, como releva Joana Marques Vidal, “decisivas e fundamentais no cumprimento dos direitos dos cidadãos e na legalidade da a[c]ção da Administração e do Estado”.
Na sua alocução, Joana Marques Vidal admitiu compreender-se “a preocupação revelada na proposta de alteração à Lei de Organização do Sistema Judiciário em apresentar soluções quer, também nesta área, aproximem os Tribunais do Cidadão”. “Preocupação que o Ministério Público partilha e sempre teve muito presente, como se pode verificar nas variadas e públicas alusões ao tema efe[c]tuadas pela Procuradora-Geral da República”, insistiu a magistrada.
A esse respeito Joana Marques Vidal pensa, porém, que “qualquer solução organizativa nesta matéria deve ser encontrada num quadro que, não descurando a proximidade e a facilidade do acesso do cidadão à Justiça, consagre e desenvolva a especialização”. “Especialização dos Tribunais, e especialização dos respe[c]tivos Magistrados e funcionários”, particularizou.
Daí que, pouco depois, tivesse dito que se impunha “reconhecer que o princípio da especialização, estruturante da […] organização judiciária, originou um aperfeiçoamento na qualidade das decisões e na celeridade processual, nesta como noutras jurisdições, que há que preservar e desenvolver”. A então procuradora-geral da República também aproveitou aquela oportunidade para reiterar os “resultados positivos que, apesar de tudo, foram alcançados” no ano anterior. “Como o indicam, aliás, alguns dos números relativos ao primeiro semestre de 2016, por referência ao mesmo período do ano de 2015”, anotou, regozijando-se com a informação de que, em 2016, a taxa de resolução processual ter sido de 111%, “ou seja, o Ministério Público terminou 111% dos processos entrados, tendo melhorado face aos 106%” do mesmo período de 2015.
A magistrada Joana Marques Vidal fez referência ao “aumento de 21% para 27% o número de inquéritos em que reuniu indícios de crime, tendo prosseguido o exercício da a[c]ção penal quer por acusação quer por suspensão provisória do processo”. A antiga procuradora-geral da República salientou que as taxas de condenação em julgamento eram superiores a 80% e que o “recurso a formas simplificadas do processo aumentou de 55% para 66%”. Quanto à duração média dos processos de inquérito, a magistrada informou que tinha diminuído.
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Fixação de objectivos estratégicos e processuais
Para as autoras do artigo “Um percurso com obje[c]tivo – Os obje[c]tivos processuais em ano de transição”, publicado na 27.ª edição (em 2015) da revista Julgar, a lei 62/2013, de 26 de Agosto, que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2014, “impõe um modelo de gestão dos tribunais judiciais de primeira instância baseado na definição de obje[c]tivos”. “Pacífica pareceria então a existência de uma obrigação de fixação de obje[c]tivos estratégicos e processuais”, mas, para as juízas Ana de Azeredo Coelho e Maria Inês Moura, “a realidade negou a aparente evidência”.
Por um lado, “porque a lei apelava a que a definição se fizesse com referência a resultados estatísticos e estes eram/são inadequados”. “Inadequados porque do [sistema informático] CITIUS e, sobretudo, o modo como a migração de processos foi executada tornaram caóticos e contraditórios os resultados estatísticos extraídos do sistema, mas também porque a realidade pré-existente era inteiramente diversa, obstando[,] na maioria dos casos[,] à comparação entre os tribunais extintos e os criados pela LOSJ [Lei da Organização do Sistema Judiciário]”, explicam as autoras do mencionado artigo ensaístico.
Por outro lado, prosseguem as magistradas Ana de Azeredo Coelho e Maria Inês Moura, “a fixação de obje[c]tivos é dificultada por a reorganização judiciária ter surgido em contraciclo económico, com as inerentes dificuldades de investimento, em alguns casos mesmo para a obtenção dos recursos mínimos”. Como reconhecem as autoras, tal determinou que “se mantivesse, ou em algumas comarcas se acentuasse, a escassez de funcionários, se mantivessem ou agravassem as dificuldades de adequação de instalações com a necessidade de deslocação de instâncias, ou se verificasse a simultaneidade da entrada em funcionamento dos novos tribunais com a realização de obras nos edifícios onde iriam funcionar, ou com a sua instalação em contentores”. Relativamente a esta última situação, as autoras admitem, em nota de rodapé, que “os denominados módulos transitórios que, mesmo nas comarcas em que foram melhores não são compatíveis com a dignidade dos tribunais”.
Sob o ponto de vista das juízas Ana de Azeredo Coelho e Maria Inês Moura, “o planeamento que se exigia milimétrico, em razão nomeadamente da antecipação da preparação e da experiência anterior, surgiu caótico com o colapso da plataforma informática de apoio à a[c]tividade dos tribunais, prejudicando o primeiro ano de funcionamento dos novos tribunais e eivando-o de uma singularidade imprópria à consideração desse funcionamento para a fixação de obje[c]tivos processuais”.
Por fim, as referidas autoras registam que “a questão do modelo de gestão por obje[c]tivos foi contaminada, na sua eventual possível neutralidade instrumental, ao serviço da gestão dos tribunais, pela perspe[c]tiva ideológica que o erigiu em novidade e em panaceia universal, tanto para os reais problemas do judiciário como para os que lhe são imputados na realidade do outro lado do espelho que[,] por vezes[,] caracteriza a narrativa no espaço público”.
Ao terem em conta que 2015 era um “ano de transição”, as mesmas magistradas acentuam que “os obje[c]tivos processuais têm um âmbito de definição muito vasto, podendo abarcar quer obje[c]tivos quantitativos, quer qualitativos, e apresentam-se com a potencialidade de abranger as mais diferentes áreas, permitindo a cada tribunal dire[c]cionar-se para aquelas em que considera ser mais necessária uma intervenção”.
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Prioridade na tramitação e na decisão
Neste quadro, as autoras do citado artigo (que, como assinalámos, integra a edição n.º 27 da revista Julgar, sob a chancela da Coimbra Editora), descortinam “algumas linhas transversais às diversas comarcas”, salientando as mais comuns. Assim, quanto à recuperação dos processos mais antigos, as juízas Ana de Azeredo Coelho e Maria Inês Moura mencionam que, na “generalidade das comarcas”, “são estabelecidas prioridades na tramitação e decisão dos processos com pendências mais longas”. E clarificam que a “definição do universo abrangido pelas prioridades varia consoante a composição da pendência processual de cada unidade orgânica, não raro estabelecidos prazos para a verificação e classificação desse acervo processual, com vista a potenciar a intervenção de gestão no sentido do seu andamento mais célere, ou determinada a percentagem destes processos a findar no próximo ano judicial, com cronogramas mais ou menos detalhados”.
Em relação à prioridade na tramitação e na decisão de determinadas espécies processuais, as magistradas a que recorremos – acompanhando o seu texto ensaístico – notam que, em muitas jurisdições, “com base na análise da estrutura de pendências, da antiguidade dos processos ou da ponderação dos interesses e direitos envolvidos, são definidas espécies processuais em que se verifica maior necessidade de intervenção, tendencialmente aquelas em que se verificam atrasos estruturais na tramitação”, a exemplo do “caso dos processos de inventário ou de indemnização por acidente de viação”.
Ao ponderarem sobre a necessária aproximação ao cidadão, as magistradas Ana de Azeredo Coelho e Maria Inês Moura expressam que esta “é uma preocupação transversal às comarcas que encontra a sua razão de ser na novidade da alargada dimensão territorial e na concentração das instâncias centrais nas sedes de distrito”. “Neste conspecto”, concluem as autoras que são, “amiúde”, propostas “medidas para um melhor aproveitamento das instâncias locais e das secções de proximidade, nomeadamente com realização de diligências”, de modo “a minimizar o incómodo e os custos da deslocação dos intervenientes no processo à sede da instância central, sendo também fomentado o recurso à videoconferência”, como forma de “encurtar as distâncias”.
Em relação à taxa de resolução, as magistradas reconhecem que este “objectivo tanto surge orientado para determinadas espécies processuais, como para a generalidade da pendência processual, sendo também apresentado de uma forma percentual dirigida aos processos mais antigos”. “Na maioria dos casos, o objectivo de diminuir a pendência processual é dire[c]cionado aos mais antigos”, reiteram as juízas, alegando que “o mesmo surge também sem tal descriminação, sendo igualmente associada, em algumas situações, à diminuição da diferença entre pendência oficial e de secretaria”. Para as autoras do artigo mencionado, esta dimensão “tem particular relevo num situação de escassez de funcionários que tende a fazer aumentar muito a pendência após decisão, a qual tem repercussões significativas na vida das pessoas, designadamente quando se refere a pagamentos a efe[c]tuar”.
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Processos nos tribunais judiciais de primeira instância
Acerca do movimento de processos nos tribunais judiciais de primeira instância, no contexto do novo mapa, o jurista e académico Licínio Lopes Martins disponibilizou ao sinalAberto um importante conjunto de dados actualizados até 30 de Abril de 2021.
Doutorado em Ciências Jurídico-Políticas/Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC), instituição onde tem vindo a leccionar, entre outras, as unidades curriculares Direito Administrativo III (Justiça Administrativa), de Direito Administrativo I e II, Direito Fiscal, Contratos Públicos, Direito do Emprego Público, Parcerias Público-Privadas (curso de mestrado), Direito Público I (curso de mestrado), Administração da escassez/Direito Administrativo da Escassez (em cursos de doutoramento), Licínio Lopes Martins é também professor em diversos cursos de pós-graduação da FDUC, da Faculdade de Direito de Lisboa e da Universidade Católica (Porto e Lisboa).
No contexto da sua participação em torno dos impactos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, posteriormente desenvolvida no Decreto-Lei n.º 49/2014, de 17 de Março, a qual passou a vigorar no dia 1 de Setembro de 2014, matéria que justifica o dossiê de investigação jornalística “Justiça: o que não se lê no mapa” que agora terminamos, o académico Licínio Lopes Martins ajuda-nos a entender alguns conceitos técnicos, muito úteis aos leitores menos habituados a estes assuntos do foro do Direito.
Assim, o docente da FDUC explica-nos que o “processo findo” é o processo em que é proferida decisão final, na forma de acórdão, sentença ou despacho, na respectiva instância, independentemente do trânsito em julgado.
Em relação ao conceito de “processo transitado”, este autor de diversas obras e artigos em diversas áreas do Direito, esclarece: “Os processos transitados são aqueles que transitaram internamente entre unidades orgânicas/tribunais e que não foram considerados para cálculo das variações anuais de processos entrados e findos.” Como sublinha Licínio Lopes Martins, “trata-se de processos que findaram na unidade orgânica ou no tribunal de onde saíram e que entraram nas unidades orgânicas ou nos tribunais para onde foram transferidos”.
No que respeita ao conceito de “processo pendente”, o mesmo jurista e docente universitário anota que “os processos pendentes correspondem a processos que, tendo entrado, ainda não tiveram decisão final, na forma de acórdão, sentença ou despacho, na respectiva instância, independentemente do trânsito em julgado”. São, pois, “processos que aguardam a prática de actos ou de diligências pelo tribunal, pelas partes ou por outras entidades, podendo ainda, em certos tipos de processos, aguardar a ocorrência de determinados factos ou o decurso de um prazo”. Por conseguinte, “um processo suspenso é, por exemplo, um processo pendente, qualquer que seja a causa da suspensão”.
Relativamente aos processos entrados (incluindo os transitados) nos tribunais nacionais, entre 2014 e 2020, verificamos que, no primeiro ano aqui considerado, foram contabilizados 182496 processos, valor muito abaixo dos observados nos outros anos. Isso deve-se, certamente, ao facto de o novo mapa judiciário ter começado a vigorar a partir de 1 de Setembro de 2014.
No que concerne à tabela dos processos transitados em tribunal nas diferentes comarcas nacionais, bem como no Tribunal da Propriedade Intelectual (que foi criado pela Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho, e instalado pela Portaria n.º 84/2012, de 29 de Março – não foi, aqui, registado nenhum processo, entre 2014 e 2020), no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (o TCRS foi também criado pela Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho, e, igualmente, instalado pela Portaria n.º 84/2012, de 29 de Março, correspondendo ao objectivo de criar um tribunal de competência especializada em matéria de concorrência – no quadro que se segue, não há registo de quaisquer processos transitados nos anos 2014, 2017, 2018, 2019 e 2020), no Tribunal Central de Instrução Criminal (o TCIC, conhecido na gíria comum como “Ticão”, está localizado na cidade de Lisboa e tem competência para a instrução criminal de processos cuja actividade criminosa grave ou altamente organizada decorra em comarcas integradas em áreas de jurisdição de diferentes Tribunais da Relação, tendo jurisdição sobre todo o território nacional – sem registo de processos transitados nos anos 2016 e 2017) e ainda no Tribunal Marítimo de Lisboa (acerca do qual verificamos o registo de processos transitados apenas nos anos 2015, 2018 e 2019), é de destacar, no total geral, os 197768 processos transitados no ano de 2019.
No quadro correspondente aos processos findos (incluindo os transitados), sublinha-se o esforço, a nível nacional ou no total geral dos tribunais portugueses, no sentido de – sobretudo, nos anos 2015, 2016 e 2019 – se proferir decisões finais, nas formas de acórdão, de sentença ou de despacho, nas várias instâncias, independentemente do trânsito em julgado.
Acerca dos processos pendentes – todos aqueles que deram entrada em juízo e em que a instância se mantém, isto é, cuja instância não foi declarada extinta por qualquer das formas previstas na Lei – verificamos que os anos 2014, 2015 e 2016, embora de modo decrescente, são os que apresentam mais processos pendentes nos tribunais portugueses, respectivamente, 1456156, 1315056 e 1131862 processos pendentes. Nos restantes anos, até 2020, confirma-se a tendência decrescente da quantidade de processos pendentes.
Ao atendermos ao movimento de processos (entrados, findos, transitados e pendentes) nos tribunais judiciais de 1.ª instância, por ano (no período de 2014 a 2020) e por comarca, não conseguimos apurar o impacto específico em cada das 20 comarcas que tinham sido extintas em 2014, sendo os tribunais reactivados (embora como secções de proximidade) em 2017, já sob a tutela de Francisca Van Dunem, ministra da Justiça no primeiro governo dirigido por António Costa: Armamar, Bombarral, Boticas, Cadaval, Castelo de Vide (aqui, o tribunal não foi totalmente fechado), Ferreira do Zêzere, Fornos de Algodres, Mação, Mêda, Mesão Frio, Monchique, Murça, Paredes de Coura, Penela, Portel, Resende, Sabrosa, Sever do Vouga, Sines e Tabuaço.
Antes de concluirmos este nosso dossiê de investigação jornalística que nos fez percorrer o País de Norte a Sul para escutarmos diferentes vozes a propósito dos impactos sentidos pelas populações dos municípios que viram as suas comarcas serem extintas, recorremos, novamente, ao artigo “Um percurso com obje[c]tivo – Os obje[c]tivos processuais em ano de transição”, publicado na 27.ª edição (em 2015) da revista Julgar, no qual as autoras assumem que a “lei 62/2013, de 26 de Agosto, impõe um modelo de gestão dos tribunais de primeira instância baseado na definição de obje[c]tivos cuja efe[c]tivação deparou com constrangimentos e dificuldades vários ainda não completamente ultrapassados”. Para as magistradas Ana de Azeredo Coelho e Maria Inês Moura, houve “escassez de meios materiais, humanos e tecnológicos, passando pela falta de resultados estatísticos relativos ao ano anterior [2014] até à ausência de valores de referência processual estabelecidos”.
“Face a tais dificuldades, na perspe[c]tiva de que a fixação de obje[c]tivos processuais tem a virtualidade de orientar os tribunais para uma diferente cultura organizacional, dirigida à organização e gestão orientada para o planeamento, para a responsabilidade e para a prestação de contas ”, as mesmas juízas acentuam que, “neste ano de transição”, se procurou, “de uma forma genérica e em primeira linha, que cada tribunal judicial, instância ou unidade orgânica olhassem para a sua realidade”, a fim de avaliarem “os constrangimentos existentes” e de definirem “a forma de os superar, de um modo concreto, estabelecendo metas e definindo a[c]ções a empreender, numa coordenação de esforços planeada e adaptada aos recursos existente, na certeza de que a gestão dos recursos e a organização do serviço, potencia o seu melhor aproveitamento, com reflexos no trabalho a desenvolver”.
Por fim, inscrevemos uma afirmação do advogado e político Fernando Roboredo Seara, enquanto autor do artigo “Reforma Judiciária e Democracia Local” (publicado também na revista Julgar, edição n.º 20, de 2013): “Urge compensar as repercussões menos positivas que a opção pelo alargamento da base territorial das circunscrições sempre implicará (independentemente da possível pertinência da respe[c]tiva fundamentação), o que vale por dizer que o legislador deverá mitigar os inconvenientes que daí poderão decorrer quanto aos obje[c]tivos da simplificação, da proximidade e do acesso ao direito e à justiça.”
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(*) Com esta reportagem, finalizamos o dossiê com o título genérico “Justiça: o que não se lê no mapa”, que temos vindo a desenvolver e a publicar no jornal sinalAberto, no âmbito das Bolsas de Investigação Jornalística 2020, atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian.
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29/02/2024