Justiça: o que não se lê no mapa (2)*
“Geografia administrativa caótica”
“Se se quer fazer uma distribuição correcta pelo território, tem de se fazer o que se chama um balanço entre eficiência e equidade”, afirma o vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), Eduardo Anselmo de Castro, a propósito do novo mapa judiciário e dos respectivos critérios de ponderação para a manutenção ou a extinção dos tribunais.
“Com a equidade, se fosse completamente perfeita, cada um tinha o mesmíssimo acesso a tudo, vivesse onde vivesse. Tinha um tribunal ao pé de casa, uma escola ao pé de casa… Tinha tudo ao pé de casa! E a eficiência seria zero, porque cada uma dessas estruturas servia duas ou três pessoas”, clarifica o académico cuja tese de doutoramento aborda o Progresso Técnico e Crescimento Económico Regional.
Na qualidade de vice-presidente da CCDRC e de investigador com trabalhos no âmbito do impacto social e económico resultante de algumas decisões de políticas públicas, Eduardo de Castro, entrevistado pelo sinalAberto sobre a racionalidade da reforma da justiça, diz que há tradicionalmente “uma tendência que mistura a racionalização com o irracional”. “Mais uma vez, cada um faz o que quer no seu quintal! E isto é a parte irracional da coisa”, observa. Mesmo supondo a existência de estudos afins, o nosso entrevistado insiste que “não é claro saber qual é a lógica disso tudo”.
No Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária, publicado em Janeiro de 2012, sob a responsabilidade da Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ), são enunciados os critérios de ponderação para a manutenção ou a extinção dos tribunais. Num período anterior ao da estrutura de tribunal distrital e com base na apreciação das situações em que se “justifica optar pelo encerramento de tribunais”, os decisores políticos alegam que, neste domínio, “sempre se cruzam a perspe[c]tiva da cidadania e a perspe[c]tiva da eficiência do sistema judicial no seu todo, sendo assim um ponto crítico a que se tem de dar a melhor resposta possível, ponderando em cada momento os interesses em presença e também a evolução social, económica e tecnológica, que hoje permite soluções antes impensáveis”.
Enquanto aguardava que fosse definida uma estrutura inter-serviços para acompanhar a implementação da reforma, bem como de um cronograma que permitisse traçar metas e prazos concretos para a concretização do novo mapa judiciário, “ali se incluindo as tarefas específicas acordadas com a Troika” (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), a DGAJ, conforme o mesmo documento de trabalho (datado de 20 de Janeiro de 2012), estabelecia meia dúzia de critérios para ponderação do encerramento de serviços.
Acolhendo a ideia de uma “soberania mitigada”, o advogado Paulo Rocha – autor do artigo (“Novo”) Mapa Judiciário, publicado em 2015, na revista jurídica Julgar – nota que esta reforma “tem subjacente uma questão jurídica que envolve algumas exigências contratuais com os credores de Portugal e, naturalmente, temos de estar ao lado do seu pontual cumprimento”.
No que diz respeito às “exigências contratuais no campo da justiça”, o jurista sublinha alguns excertos do denominado “memorando da Troika” (Memorando de Entendimento que resultou do processo de resgate em 2011), atendendo à tomada de medidas por parte do Governo “para aumentar a eficiência e a eficácia na Administração Pública”, designadamente: “Reduzir o número de serviços desconcentrados ao nível dos ministérios (por exemplo, impostos, segurança social, justiça). Estes serviços deverão ser objecto de fusão (…) abrangendo uma área geográfica mais alargada e imprimindo um maior desenvolvimento da administração electrónica (…)”
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A necessidade de acelerar a aplicação do novo mapa judiciário
Relativamente à gestão dos tribunais, o aludido memorando chamava a atenção para a necessidade de acelerar (tendo como referência o quarto trimestre de 2012) “a aplicação do Novo Mapa Judiciário criando 39 comarcas, com apoio de gestão adicional para cada unidade, integralmente financiado através das poupanças nas despesas e em ganhos de eficiência”. Aquele documento informava que esta medida “faz parte dos esforços de racionalização, de modo a melhorar a eficiência na gestão de infra-estruturas e de serviços públicos”. Assim, importava preparar, no terceiro trimestre de 2011, “a calendarização desta reforma, identificando trimestralmente as fases mais importantes”.
Por conseguinte, a Troika previa que o Governo iria rever o Código de Processo Civil e preparar uma proposta, “até ao final de 2011, identificando as áreas-chave para aperfeiçoamento, nomeadamente (i) consolidando legislação para todos os processos de execução presentes a tribunal; (ii) conferindo aos juízes poderes para despachar processos de forma mais célere; (iii) reduzindo a carga administrativa dos juízes e; (iv) impondo o cumprimento de prazos legais para os processos judiciais e[,] em particular, para os procedimentos de injunção e para processos executivos e de insolvência”.
Sublinhando que o “problema conjuntural tem sido dominante na agenda dos sucessivos governos”, por sua vez, o jurista Nuno Garoupa, ao contrário da “euforia dos muitos comentadores que viram no memorando de entendimento com o FMI [Fundo Monetário Internacional] e com a União Europeia um programa de reforma da justiça”, considerava, em Setembro de 2011, que “fica muito aquém do que Portugal precisa, além de ser tecnicamente defeituoso”. Por isso, no alcance do seu ensaio O Governo da Justiça, adiantava: “A prazo, pode mesmo ser um projecto desastroso”.
Segundo o mesmo académico e ensaísta, as medidas “impostas pela chamada troika pretendem apenas resolver ou suavizar os aspectos fundamentalmente processuais e de gestão dos tribunais que afectam directamente as grandes empresas e os escritórios de advogados”.
Como escreve, por sua vez, Conceição Gomes (nossa anterior entrevistada no âmbito do dossiê Justiça: o que não se lê no mapa e autora do livro Os Atrasos da Justiça, publicado em Julho de 2011), os “tribunais judiciais, como instituições privilegiadas de resolução de conflitos e de tutela de direitos, são instrumentos centrais da qualidade da democracia”. Se, como diz a jurista e investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, é “certo que os tribunais judiciais não são a única via para a efectivação dos direitos nem podem resolver todos os conflitos e problemas sociais”, também é verdade que, com alguma frequência, “são transferidos para o seu campo problemas que não podem nem devem resolver”.
Funções dos tribunais e fragilização do Estado de direito
Todavia, “num contexto de grandes vulnerabilidades sociais e económicas e de crescimento da criminalidade, em especial da criminalidade económica grave, com que os cidadãos portugueses se vêem cada vez mais confrontados, os tribunais são chamados a desempenhar um papel central”. Por isso, a coordenadora executiva do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (OPJ) alega que, se “não forem capazes de responder a esse desafio, mais do que a sua deslegitimação social é a sua irrelevância social e política que estão a aprofundar e, com ela, a fragilização do Estado de direito”.
Noutra circunstância, mais concretamente no seu artigo “Democracia, tribunais e a reforma do mapa judiciário: contributos para o debate”, publicado em 2013, na revista Julgar (edição n.º 20), Conceição Gomes recorda a “pergunta que o então deputado Vital Moreira queria ver debatida aquando da discussão da primeira reforma da organização judiciária em 1977: que tribunais e que juízes queremos nós?”. No entender desta jurista, importa também saber “para que exercício de funções”, quando se debate a reforma do mapa e da organização judiciária.
“Para muitos, entre os quais me incluo, os tribunais judiciais sendo uma instância especializada de resolução de conflitos e de protecção de direitos e, nesse sentido, um importantíssimo recurso da política pública de justiça não devem estar tão intensamente ‘ocupados’, como se encontram entre nós, com os chamados litígios de ‘massa’, não havendo[,] na grande maioria dos casos, um verdadeiro conflito, mas antes o não pagamento de uma dívida, cujos principais mobilizadores são as grandes empresas de prestação de serviços ou de crédito”, os quais são “litigantes frequentes”, como confirma a investigadora do CES.
Ao admitir que a concretização das opções de extinção de tribunais e de serviços conduziria “a alguma contestação local, de populações e autarcas, a quem se imporá esclarecer da forma mais completa possível as opções tomadas”, a DGAJ destaca a condição do volume processual subsistente “expectável após reorganização inferior a cerca de 250 processos entrados”. Ou seja, são marcantes os valores de referência processual (VRP). Os valores foram fixados pela DGAJ, depois de terem sido ponderados os “contributos apresentados pelo CSM [Conselho Superior da Magistratura] no Relatório de 11-07-2011”. No cálculo dos VRP, foi analisado o movimento processual correspondente aos anos de 2008 a 2010 (considerando os processos findos), de acordo com a natureza dos tribunais.
Outro factor tido em conta é o da distância entre o tribunal a encerrar e aquele que vai receber o processo, “passível de ser percorrida em tempo inferior a cerca de 1 hora”. O advogado Paulo Rocha, enquanto autor do artigo em que aborda questões como a delimitação do mapa judiciário, a par das “virtualidades dos novos órgãos de gestão”, declara, a respeito da questão da alteração/aumento de algumas distâncias, tida como “a grande questão suscitada por muitos”, que não quer estabelecer uma relação de causa-efeito perceptível quanto aos efeitos negativos, em exclusivo. Ou seja, para o articulista – mesmo reconhecendo que, enquanto portugueses, “oferecemos uma grande resistência” a efectuar trajectos que “facilmente temos tendência a classificar longos” – “não é facilmente defensável que os grandes males da justiça sejam efeito da implementação do novo mapa judiciário”.
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Clarificar “acessibilidade” e “proximidade de justiça”
Nessa conformidade, o advogado Paulo Rocha repara, em 2015, que é “oportuno posicionarmo-nos mentalmente em relação à definição de acessibilidade e proximidade de justiça”. Assim, interroga: “Não será defensável que a justiça é mais próxima e acessível se e quando é mais célere e menos castrante financeiramente? Será que ela, geográfica e fisicamente próxima dos que dela precisam, mas inacessível sob o ponto de vista financeiro e da morosidade, é verdadeiramente próxima e acessível?”
Um terceiro aspecto a analisar prende-se com a qualidade das instalações, sem descurar “a circunstância de serem propriedade do Ministério da Justiça ou arrendadas”.
Imediata à relevância da evolução da população da zona ou município, de acordo com os Censos 2011, a DGAJ diz que importa ainda saber da oferta em meios alternativos de resolução de litígios, além dos serviços públicos centrais existentes na localidade e da existência ou da possibilidade de instalação de postos de atendimento ao cidadão.
Para o investigador Filipe Teles, autor do ensaio Descentralização e Poder Local em Portugal, publicado em Janeiro do corrente ano, “importa sublinhar, já que a tentação de esquecer parece existir, que a dimensão da população média municipal é elevada em termos europeus”. Embora os resultados preliminares dos Censos 2021, divulgados a 28 de Julho, confirmem que a população portuguesa está a sofrer um processo de envelhecimento rápido e que está a diminuir, sobretudo nas zonas rurais e interiores, este docente e pró-reitor da Universidade de Aveiro, na área do Desenvolvimento Regional e Política de Cidades, nota que tal “argumento surge esporadicamente no debate público em Portugal, dando eco ao pressuposto de que os municípios são demasiado pequenos para serem eficientes na prestação de serviços a[c]tuais, quanto mais para assumirem mais competências”. Contudo, Filipe Teles afirma que, “comparativamente, a sua dimensão populacional encontra-se acima dos países da UE [União Europeia] e da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico]” e que também “a percentagem de municípios de menor dimensão não é maior do que na maioria dos outros países”.
Ao atendermos aos principais elementos retirados dos Censos 2011, vamos situar geograficamente o nosso trabalho jornalístico tentando averiguar o presumível impacto socioeconómico e cultural do encerramento de tribunais nos municípios afectados pelo mapa judiciário de 2014, na sequência da Lei da Organização do Sistema Judiciário, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março. Com a reabertura desses 20 tribunais a partir de Janeiro de 2017, quase três anos depois, importa saber dos respectivos impactos.
“Na verdade, o perigo neste momento é que a justiça passe a ser a panaceia dos nossos problemas económicos e sociais estruturais”, acautela o jurista Nuno Garoupa, embora admita: “Sem dúvida que a justiça importa para o desenvolvimento económico e social. Mas não é a solução milagrosa.”
Na mesma linha de pensamento, a referida ensaísta e investigadora Conceição Gomes (do CES) conclui que o “protagonismo dos tribunais assume, assim, uma dupla face: crescente mobilização como instrumento essencial do desenvolvimento social e económico e do aprofundamento democrático”. No entanto, constitui “fonte de preocupação social e política, em face dos seus fracassos e limitações em responder à demanda de cidadãos e de empresas”, adianta a coordenadora executiva do OPJ.
Crítico, o autor do livro O Governo da Justiça, editado em Setembro de 2011, pensa ainda que uma “justiça de duvidosa eficácia é essencialmente um sinal visível de um enquadramento institucional muito medíocre”. Daí que, na perspectiva do jurista, “não havendo reformas estruturais no governo da justiça nem mudança de paradigma, mas apenas melhorias pontuais de gestão e eficácia, pouco ou nada isso contribuirá para recuperar o nosso atraso estrutural”. O ensaísta Nuno Garoupa considera que, basicamente, “está tudo por fazer”.
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“Um problema estrutural que exige uma mudança profunda”
O mesmo académico comenta que muitos “especialistas e decisores de políticas públicas ainda pensam num mero problema conjuntural que requer reformas na justiça (os pequenos passos que fundamentalmente congestionaram os tribunais na última década)”. “Sou daqueles que reconhecem um problema estrutural que exige uma mudança profunda no governo da justiça”, admite, responsabilizando: “Tivesse o poder político realizado o diagnóstico e reconhecido o prognóstico em tempo útil, certamente antes de 1995, e, porventura, as reformas em curso na justiça seriam suficientes. Infelizmente, não foi o caso.”
Como escreveu também o advogado Paulo Rocha, em 2015 (no n.º 27 da revista Julgar, da Associação Sindical dos Juízes Portugueses), “teremos de ponderar que a reforma em si, desacompanhada dos outros reais fa[c]tores, nunca teria, per se, apetência para causar impacto visível em sentido positivo ou negativo”. Razão pela qual, como entende este causídico, só haja “condições para apontar as causas e os efeitos respectivos se isolarmos os vários factores deste complexo universo judicial”.
Um ano depois da entrada em vigor do novo mapa judiciário, o mesmo autor registava que, paulatinamente, “resultado de alguma evolução, vai surgindo uma generalizada aceitação”, no sentido de “estarmos em tempo de fazer ajustes ao que está feito e esquecermos as contestações dominadas pela emoção”. Começando, sobretudo, “a surgir, com alguma visibilidade[,] a ideia de que a reforma tinha de ser feita”, visto que “a anterior Lei, que regulava a organização judiciária, era desadequada ao tempo e às realidades geográfica e demográficas” do País. Até porque, como assinala o articulista, “a última grande reforma tinha cerca de duas centenas de anos”.
No período da consolidação da democracia local, em que se verificou “um conjunto importante de alterações socioeconómicas com um impacto substancial na governação municipal das últimas décadas”, o nosso país “enfrentou também numerosas alterações demográficas: um crescimento populacional relativamente pequeno e a migração da população para o litoral, com a consequente promoção de uma distribuição territorial assimétrica e de dinâmicas demográficas desequilibradas”, assinala Filipe Teles. “Este fenómeno, com as zonas urbanas agora a acomodarem mais de 60% da população, levou a uma expansão urbana intensiva e ao despovoamento de muitos territórios do interior do país”, esclarece.
Refira-se que, embora atempadamente contactado para uma entrevista – na qualidade de cientista político e de docente no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e Territoriais da Universidade de Aveiro –, Filipe Teles acabou por não aceitar prestar declarações ao sinalAberto sobre o impacto socioeconómico e cultural do encerramento de tribunais nos municípios mais directamente afectados pelo mapa judiciário de 2014, alegando “não ter qualquer contributo significativo a dar”, particularmente por se tratar de um tema sobre o qual diz não ter “qualquer conhecimento”. É, como justifica, um assunto que também não terá acompanhado. No entanto, a leitura deste seu ensaio constitui, de forma indirecta, uma referência teórica para a nossa investigação jornalística. Daí que, sempre que oportuno, citamos o autor.
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Recentrar a discussão sobre o papel dos governos de proximidade
Para este especialista em Ciências Políticas, o que “aparenta ser um debate periférico é, pelo contrário [também sob o nosso ponto de vista], um dos debates mais relevantes na ciência política contemporânea e nas políticas públicas, sendo necessário recentrar a discussão sobre o papel dos governos de proximidade e sobre a governação subnacional”. Ao jeito do mesmo ensaísta, também nos apercebemos que “as discussões contemporâneas mais salientes tendem a afastar-nos da natureza das nossas comunidades de proximidade e dos lugares de pertença”.
No seu recente livro, este docente na Universidade de Aveiro (onde desempenha a função de pró-reitor para o Desenvolvimento Regional e Política de Cidades) chama-nos a atenção para o facto de a governação local dizer “respeito, cada vez mais, a um complexo arranjo de serviços e respostas às comunidades, a uma multiplicidade de instituições de prestação de serviços e provisão de bens, e a organizações do sector público e privado, cuja área de a[c]tuação ultrapassa, a maior parte das vezes, as fronteiras dos próprios municípios”.
Por conseguinte, para Filipe Teles, a “governação contemporânea amplifica, assim, um conjunto sério de problemas de escala e de identidade”. Consequentemente, o “controlo desta rede complexa de prestação de serviços, a sua fragmentação organizacional e a multiterritorialização de identidades com territórios e áreas de responsabilidades sobrepostos, e nem sempre coincidentes, são apresentados, muitas vezes, como justificação pertinente para uma reforma do poder local”.
Nessa medida, quando observamos o mapa judiciário, também julgamos importante questionar os territórios administrativos e as fronteiras tradicionais. Até porque, como argumenta o ensaísta Filipe Teles, as “comunidades sobrepõem-se em diferentes aspe[c]tos das políticas públicas, na medida em que os laços sociais, os interesses individuais, as identidades profissionais e o quotidiano dos indivíduos não se confinam a um território particular”. Como tal, o “desenho de um arranjo eficaz de governação a nível local não pode ser, assim, um mero jogo sobre um mapa territorial, nem um exercício para satisfazer interesses efémeros”.
Embora este autor se refira, principalmente, à descentralização (note-se que a descentralização política é diferente da administrativa, da fiscal ou da judicial, nas suas diferentes configurações) e ao poder local, pensamos que estes aspectos não estão isolados e que, igualmente a nível do sistema da Justiça, tem de haver adaptações e “encontrar mecanismos para responder a desafios de coesão territorial, sustentabilidade, política urbana e desertificação de territórios rurais”, com “serviços públicos capazes de atender às expectativas” dos cidadãos, “assegurando flexibilidade e eficiência dos custos associados às políticas públicas”.
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“O lugar define e necessita de um olhar atento e diferenciado”
“As desigualdades espaciais são particularmente evidentes” neste país, onde – como regista Filipe Teles – não é difícil “reconhecer que o lugar define e, como tal, necessita de um olhar atento e diferenciado”. Num quadro actual de intenções que se coadune com o desejável e eficiente acesso dos cidadãos à administração pública, os modelos institucionais aproximam-se e explicam-se através da devida reformulação, bem como da capacidade de reformar e de reinterpretar os contextos e as geografias. Todavia, como afirma este investigador, noutra oportunidade, “não se pode tratar de forma igual aquilo que é evidentemente diferente, evitando, dessa forma, prejudicar os territórios que – por motivações constitucionais de equidade – já se encontram prejudicados” ou ainda em curso.
O contexto da entrevista já tinha sido considerado, por isso foi fácil retomarmos a conversa, na manhã de 20 de Julho, na sede da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), na Quinta dos Lóios, em Coimbra. Aguardando o vice-presidente Eduardo Anselmo de Castro, poucos minutos antes das 10h00, na entrada do edifício, percorremos imediatamente vários corredores e escadas e chegamos ao seu gabinete de trabalho, preservando alguma distância de segurança por causa da pandemia. O assunto do nosso encontro, apesar da aparente bonança, suscita ainda tensões, embora menos calorosas do que as manifestações populares (a que se juntaram vários autarcas) nas comunidades mais directamente afectadas pelo encerramento das suas antigas comarcas, com a imposição, em 2014, do então novo mapa judiciário.
Perante a sua formação académica, em que se destacam a licenciatura em Engenharia Civil (pela Universidade de Coimbra), o mestrado em Geografia Humana e Planeamento Regional e Local (pela Universidade de Lisboa) e o doutoramento em Ciências Aplicadas ao Ambiente (pela Universidade de Aveiro, em colaboração com a Universidade de Aarhus, na Dinamarca), teríamos, à partida, motivos de recusa relativamente à entrevista solicitada sobre os tribunais e a reforma judicial. Porém, com a advertência de ser filho de jurista e de “não saber nada disto”, Eduardo Anselmo de Castro – que é um investigador na área dos modelos de coevolução das dinâmicas económicas e demográficas, entre outros domínios técnicos; e que tem sido, desde 2006, professor associado no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro (onde foi vice-reitor, para a Área da Cooperação com a Sociedade e Transferência de Tecnologia) – também não dispensa a reflexão sobre as matérias que têm impacto nos territórios, procurando atenuar a desarmonia entre o Litoral e o Interior, cada vez mais desertificado.
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“Cada coisa tem a sua região, porquê?”
Antes de expressar o seu entendimento acerca da aludida reforma da justiça, Eduardo Anselmo de Castro começa por observar que “uma das coisas que nós temos, neste país, é uma geografia administrativa quase que impossível de ser mais caótica”. “Porque tem uma distribuição geográfica para a Justiça, com o mapa judiciário. Tem também um mapa para o Turismo, um mapa para a Saúde e um mapa para a Segurança Social. E ainda tem os distritos para as eleições. Depois, tem as NUTS, que não têm já nada a ver com isto! E, concretamente, no caso das regiões – vemos a região Centro, propriamente dita, e mais umas coisas, por causa dos fundos europeus. Sabe disso? E as regiões dos vinhos…”, enuncia o vice-presidente da CCDRC.
Assim, questiona: “Cada coisa tem a sua região, porquê?” “Porque este é um país verticalizado. E cada administração sectorial faz o seu mapa e não quer saber do resto. A Justiça pensa na Justiça. Não há nenhuma ideia de integração horizontal e de coerências territoriais”, reconhece, percebendo que “a Justiça nunca pensou em falar com alguém que não seja da Justiça… E quem diz a Justiça diz o Turismo. E quem diz o Turismo diz a Saúde. Cada um faz ao seu modo”. Na sua perspectiva, este é o primeiro problema: “Devia haver uma coerência territorial e não há nenhuma!”
Esta observação de Eduardo de Castro confirma o que constata Filipe Teles (seu antigo colega, enquanto docente, no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro), no que respeita ao, para si, “estranho caso de desalinhamento territorial”, verificando-se que “nem todas as instituições obedecem ao mesmo racional de organização administrativa do Estado”. Como averigua o autor do ensaio Descentralização e Poder Local em Portugal, há “unidades desconcentradas e descentralizadas da administração central que estão alinhadas com as NUTS2 (logo, com as CCDR), mas nem todas”. As NUTS (Nomenclaturas de Unidades Territoriais para fins Estatísticos) designam, assim, as sub-regiões estatísticas em que se divide o território.
Como adianta Filipe Teles, algumas dessas unidades “correspondem a territórios sub-regionais, mas nem todas”. “Outras obedecem a organização distrital [como sucede com as comarcas, no quadro da reorganização da estrutura judiciária], criando uma evidente desarticulação com a nova organização sub-regional por via das Comunidades Intermunicipais, ou possibilitando que haja departamentos desconcentrados com área de a[c]tuação entre duas regiões, mas – mais uma vez – nem todos”. Ou seja, para o citado ensaísta, “a melhor expressão para traduzir a organização subnacional da administração pública portuguesa seria: há casos em que se organiza de uma forma, e há os outros”.
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“Isto tem a ver com questões de ordenamento do território”
Retomando a entrevista, Eduardo de Castro declara – mesmo não sendo “especialista” neste domínio – que “para fazer um mapa judiciário, nem devem ser, possivelmente, os juristas a fazê-lo, porque isto tem a ver com questões de ordenamento do território”.
“Eu não sei se os tribunais que saíram e que foram fundidos são excedentários ou não são; se foi uma boa política ou não foi”, comenta o vice-presidente da CCDRC, confessando: “Desconfio muito, para não dizer que tenho a certeza, que não houve nenhuns estudos sérios. Houve estudos neste sentido, começaram a olhar para o movimento e viram que, aqui, o movimento é baixo; e, ali, o movimento é alto…”
No seu ensaio Os Atrasos da Justiça (publicado em Julho de 2011), a jurista Conceição Gomes – que é coordenadora executiva do OPJ – constata que a “substituição do princípio de uma cidadania judicial por uma racionalidade de custo-benefício na mobilização dos tribunais, que tem vindo a vingar em muitas políticas dirigidas à administração da justiça, acaba por influenciar também a mobilização dos tribunais e o seu papel no aprofundamento da cidadania e da democracia”.
Na mesma obra, a ensaísta insiste na ideia de que as “reformas da justiça não podem continuar a ter impactos tão reduzidos na prática dos tribunais”. Por conseguinte, esta investigadora do CES, ao admitir que é “preciso lutar contra o desperdício que reformas atrás de reformas acarreta”, sublinha que o “campo das reformas estruturantes do sistema de justiça tem de deixar de ser um território de confronto, de tensões entre os poderes judicial e político, de lutas corporativas, e passar a ser visto como um espaço de oportunidades e de novos desafios”.
Numa breve análise da evolução das reformas do mapa e da organização judiciária, Conceição Gomes – enquanto autora de um artigo para a vigésima edição da revista jurídica Julgar, em 2013 – escreve que, a partir “da instauração do constitucionalismo português, a reforma do sistema da justiça esteve periodicamente em debate”. Todavia, a coordenadora executiva do OPJ regista que, “quando analisamos as reformas legais relativas à territorialização da justiça e à estrutura organizativa dos tribunais judiciais, desde a Constituição de 1822 até à actualidade, identificamos mais continuidades do que ru[p]turas, em especial no que respeita à componente organizacional”.
No mesmo artigo da aludida publicação da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (que visa contribuir para a discussão da problemática da aplicação do direito e da jurisdição), a jurista sublinha: “Ainda que se identifiquem algumas alterações – as mais significativas são as que contendem com a paisagem judiciária, isto é, com a disseminação territorial dos órgãos judiciários – a leitura mais impressiva é de dificuldade, sobretudo nas décadas mais recentes, em se alterar o modelo estrutural de organização da justiça.”
Indagado acerca de eventuais desigualdades de tratamento dos cidadãos do Interior no que se refere a direitos e garantias, em consequência do sentido economicista da nova reforma judiciária, Eduardo de Castro comenta: “Nós não somos economicistas, quando estamos a falar de direitos individuais ou das populações. Porém, já somos economicistas quando falamos de impostos! A gente quer os direitos todos, incluindo coisas que são pouco rentáveis, mas depois não se quer pagar impostos… E, aqui, também temos de ter coerência.”
“Pago impostos e o País distribui-os. Quer-se pagar poucos impostos, mas depois temos exigências de igualdade na justiça e de mais não sei quantos… É preciso ver isso!”, nota o vice-presidente da CCDRC, admitindo o pensamento generalizado de que também as “coisas negativas têm de ser feitas, mas nas nossas costas”. Ou seja, claramente, o nosso entrevistado critica quem, ainda que perante as “coisas positivas”, acha que “não devem ser todas feitas, porque são caras”, exceptuando as que possam beneficiar a sua própria terra.
“O que é que eu quero dizer com isto?”, interroga Eduardo de Castro, depreendendo logo que “as estruturas e, mesmo, os mapas judiciários não são feitos para hoje”. “Têm de ser para os próximos anos. Se não, andamos sempre a mudar”, repara. Contudo, “se elas são para bastantes anos, têm de ser realizadas considerando o que se espera que seja a população do futuro”. “E ninguém faz isso!”, exclama, surpreendido com o facto de, aparentemente, não se querer “saber que, daqui a vinte anos, vamos ter uma certa distribuição da população e que, portanto, os mapas judiciários devem ter esse horizonte”.
No seu recente ensaio, o investigador Filipe Teles (também docente na Universidade de Aveiro) anota que “o grupo de países europeus com uma população média por município mais elevada, além dos casos extremos do Reino Unido e da Irlanda, é composto hoje pela Bulgária, a Grécia, Portugal, os Países Baixos, a Suécia, a Lituânia e a Dinamarca”. E que, neste quadro, “Portugal não necessitou de proceder a qualquer reforma de fusão de municípios para permanecer entre aqueles que estão acima da média europeia”. O autor do livro Descentralização e Poder Local em Portugal diz ainda que é “interessante sublinhar a não-existência de um padrão regional claro”. Porém, os “países nórdicos tendem a ter municípios maiores”, embora seja “também o caso de alguns países do Sul (Grécia, após a reforma, e Portugal) e da Europa oriental”.
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Mapas judiciários coerentes com os outros mapas
Neste contexto territorial, Eduardo de Castro advoga que “os mapas judiciários deviam ser feitos em coerência com os outros mapas”. “Deveriam ser pensados de acordo com isto e não com reivindicações minhas e da minha terra, porque, por muito respeitável que isto seja, o mapa não pode ser feito assim; tem de ser feito olhando para o conjunto”, insiste o vice-presidente da CCDRC, cuja missão é a de “assegurar a prestação eficiente dos serviços no seu âmbito de actuação, colocando‐os na linha da racionalização e modernização dos serviços públicos e actuando com a necessária competência técnica para se tornar um instrumento eficaz da acção governativa”.
“Tudo deve ser efectuado sabendo qual é a melhor distribuição e tendo em atenção os custos que queremos ter”, aconselha Eduardo de Castro, com uma larga experiência em múltiplos projectos e serviços prestados a câmaras municipais e a diversas entidades públicas e privadas, nos domínios do planeamento estratégico municipal, das cartas educativas e dos exercícios de análise prospectiva (com planeamento de serviços de interesse geral), a par de previsões demográficas e da avaliação automática de imóveis.
“Eu aprecio muito os custos simbólicos e há custos simbólicos para muita coisa. Mas, nalguns casos, se pudermos ter apenas um sítio que recebe ou que tem apenas a função de receber documentos e processos – e que esses processos são depois julgados em sítios com mais escala –, não vejo nenhum inconveniente nisso!”, prossegue o vice-presidente da CCDRC, a quem também indagamos sobre o carácter preventivo, em relação à prática de crimes, graças à função simbólica dos tribunais.
“Estamos a falar do foro criminal, mas a maior parte dos tribunais responde às áreas do cível e do administrativo, entre outras”, declara, ciente de que – como diria a jurista Conceição Gomes – as “funções simbólicas desempenhadas pelos tribunais constituem a reserva de confiança dos cidadãos no funcionamento das instituições e na realização de justiça”. A este respeito, Boaventura de Sousa Santos (e colaboradores) – citado pela coordenadora executiva do OPJ – escreve, em 1996: “[…] uma vez os direitos de cidadania, quando interiorizados, tendem a enraizar concepções de justiça retributiva e distributiva”. E, assim, “a garantia da sua tutela por parte dos tribunais tem geralmente um poderoso efeito de confirmação simbólica”.
“Há muita tendência para considerar isto economicista… Estou muito longe de pensar que as coisas são todas fáceis e que é tudo eficiência. Mas estou muito perto de pensar que há que distribuir os recursos que são escassos, se não quisermos pagar o dobro dos impostos”, prossegue, questionando: “O dinheiro X é melhor ir para a Saúde, para melhorar os cuidados de saúde, ou para fazer tribunais em terras que têm pouco movimento? A discussão é esta.”
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Qual é a população daqui a vinte anos?
“Quando se fazem ou se fecham não sei quantos serviços, deve-se pensar qual é a população que vai existir daqui a vinte anos e não na actual. Com as escolas, fizeram-se disparates completos”, expressa o nosso entrevistado, prosseguindo: “Eu, antes destas funções, era professor universitário e investigador e trabalhei muito em optimização de equipamentos públicos. Fizemos muitos planos e muitas cartas educativas, em que também se punham hipóteses sobre a localização óptima das escolas e de quantas, etc… E, como não havia planeamento nenhum, era frequente ouvirmos: – Aqui, olha, não há alunos, vamos fechar! Depois, aqui, olha, também não há alunos! Vamos fechar.” “Se calhar, se olhassem para elas juntas, essas duas faziam uma escola. Nunca ninguém fez isso”, critica Eduardo de Castro. “Tem sido sempre assim, porque não há previsões. Quantas vezes tive de contrariar pressões locais que diziam ir haver muitos alunos: – Desculpe, mas não vai haver mais alunos!”
“O primeiro trabalho que fiz, de demografia, foi no fim dos anos 80… E fui fazer uma previsão demográfica para o município de Estarreja, a pedido do arquitecto que estava a fazer um plano director municipal (PDM) da primeiríssima geração de PDM. E pediu-me: – Vem convencer esta gente, porque eu estou a dizer que a população não cresce e eles querem que a população vá crescer 50 por cento! Mas não acredito nisso”, conta Eduardo de Castro, adiantando: “Então, fui lá fazer as previsões demográficas e confirmei: – Tenho muita pena, mas a população de Estarreja não vai crescer! Quase me iam pondo fora da sala… Porque eu fui dizer uma coisa criminosa: – Então, aquilo não vai crescer? Não, não vai crescer.”
Em consonância com o ensaísta Nuno Garoupa, o nosso entrevistado repara que “havia coisas que poderiam ter começado a serem previstas há não sei quanto tempo…” Ou seja, critica o facto de não se diagnosticar nem se reconhecer os prognósticos na devida altura, o que contribuiria para a eficácia de muitas reformas em curso ou já implementadas, como sucede na área da Justiça. “Isto faz-se com planeamento!”, insiste Eduardo de Castro, cujo ponto de vista nem sempre coincide com o dos autarcas que se queixam: “Tiram-nos o tribunal, tiram-nos a escola, tiram-nos o hospital… Assim, perdemos soberania!”
“Relativamente ao problema dos autarcas, o que estou a dizer não é causa, é consequência. Os autarcas têm sido impotentes e acordaram tarde para o problema da diminuição da população. Em muitos sítios, em muitas regiões, a população é metade do que era há trinta anos”, salienta o vice-presidente da CCDRC, desvalorizando as “perspectivas que apontam para um remédio absolutamente ineficiente, que é a natalidade”. No seu entender, “a natalidade só poderá começar a solucionar o problema daqui a vinte anos”. Mesmo assim, “se não for aumentada agora, vai criar problemas daqui a vinte anos; até porque, nos próximos vinte, já é tarde!”, atenta Eduardo de Castro, sublinhando que “as pessoas que vão ter vinte anos daqui a vinte anos já nasceram”.
Diga-se que um valor de 2,1 – no índice sintético de fecundidade, que é o número médio de filhos por mulher, ao longo do período fértil – corresponde ao limiar de substituição de gerações. Se assim não suceder, aumentará tendencialmente o índice de envelhecimento da população, com mais pessoas idosas por cada 100 jovens (indivíduos com menos de 15 anos).
“Os empresários que tratem de saber e de fazer contas”, sugere Eduardo de Castro, apercebendo-se também que “os autarcas não têm a noção de quantas pessoas precisam no seu município para reverter ou, pelo menos, para travar o fenómeno do esvaziamento”. “Agora, já não se esvazia pela emigração. Esvazia-se porque morre o dobro dos que nascem. E não nascem porque as famílias não queiram; é porque não há lá mulheres para ter filhos. As que aí existem têm 60 ou 70 anos e não podem ter filhos, por mais incentivos que se lhes dê! Isto é, não nascem porque não há lá mulheres em idade fértil. Em demografia, os homens não contam. Aqui, o papel dos homens é muito secundário. E, no interior do País, não há mulheres em idade de ter filhos. Ou seja, há, mas são poucas”, acentua o académico que, entretanto, interrompeu a sua actividade no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro.
A este propósito, retomamos novamente o artigo escrito por Conceição Gomes, em 2013: “As dinâmicas demográficas marcam este dinamismo. Este processo é, contudo, de influência mútua. Onde não há população, a fixação de emprego e serviços é desmotivada e, por sua vez, onde estes coabitam, a população não se fixa nesses lugares.” No mesmo texto, a investigadora do CES, pondera: “Se é certo que as reformas da territorialização da justiça devem ter em conta a radiografia do País, na sua vertente demográfico-social e económico-empresarial, também é certo que as políticas públicas não devem incorporar uma política ‘punitiva’ das sociedades pelos seus constrangimentos territoriais, económicos ou sociais.”
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“Em vez de lutarem por tribunais, que lutem por casas”
“Os empresários não vêm não é porque não há tribunal. Porque, se tiverem um tribunal a 40 quilómetros, a não ser que estejam em litigação todos os dias, não lhes traz problema nenhum. Eles não vêm porque não há gente para trabalhar”, expõe Eduardo de Castro. “É um problema do ovo e da galinha. As pessoas não vêm porque não há empresas e as empresas também não vêm porque não há gente”, comprova o nosso entrevistado, referindo: “O Fundão percebeu que, se queria lá colocar uma empresa de certo tipo, tinha de atrair as pessoas; e foi buscá-las e deu-lhes casas.”
“Por muitos incentivos que existam para reforçar a natalidade, não têm filhos porque não há quem. E, de facto, morrem muito mais do que aqueles que nascem. Consequentemente, a população baixa”, conclui. Com efeito, “só se consegue contrariar isso trazendo pessoas. Mas, para trazer pessoas, tem de se lhe dar casas”, reitera o vice-presidente da CCDRC, recomendando: “Os autarcas, em vez de lutarem por tribunais, que lutem por casas. Construam casas para porem lá pessoas. E, depois, se as pessoas lá forem, dêem-lhes os tribunais. Há uma política de lamentação que deve ser resolvida indo às causas. Depois, é tarde para querer travar as consequências.”
No outro limite, o nosso entrevistado questiona acerca da “dimensão óptima dos tribunais para que funcionem”: “Quantos é que eram e que tamanho tinham? E, se com isso, as pessoas estão muito longe, paciência para essas pessoas? Nem uma coisa nem outra, é o equilíbrio disto. Tem de se fazer um equilíbrio entre o que se chama eficiência e o que se entende por equidade, no acesso a todos.”
“Se houvesse uma política integrada, com o objectivo de trazer pessoas, de trazer empresas e de trazer serviços – e se esta política fosse baseada em coisas concretas e não em lamentos –, se calhar, as coisas seriam diferentes”, calcula Eduardo de Castro, expressando que “a coesão é, mais uma vez, o balanço entre a eficiência e a equidade”.
“Não estou a falar só dos tribunais; é a saúde, é a educação… Tudo tem de ter uma localização que permita o máximo de acesso”, declara, avançando com várias interrogações: “Por que não reivindicam também uma escola em cada aldeia com apenas um aluno? Têm a ideia de quantas escolas primárias fecharam, no País? Milhares? Porquê? É equidade ter um ou dois alunos numa sala? Portanto, tem de se olhar para isso e, igualmente, para a Saúde… Quantos hospitais fecharam? Ou quantas especialidades fecharam em hospitais?”
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Interior sem gente e sem empregos alternativos
“É claro, vive 70 a 80% da população no Litoral. O resultado é esse. Guimarães e Braga têm mais população que todo o interior do Norte e do Centro. É preciso ter noção disto! Eu não estou a dizer que é bom ou que é mau, é assim”, atesta Eduardo de Castro, lembrando que “a desertificação ou o esvaziamento do Interior tem, pelo menos, 150 anos”.
Segundo Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas, autores do livro Portugal e a Europa: os Números, por “cada mil bebés nascidos, no início dos anos 60, morriam cerca de 80 antes de completarem um ano de idade”, enquanto cada mulher “tinha uma média de 3,2 filhos”. E, como verificam, todos os anos, “as pessoas que saíam do país ultrapassavam em muito as poucas que aqui entravam”. Por sua vez, “os homens jovens que não emigravam arriscavam-se a cumprir o serviço militar em África”.
“Nessa altura – retoma Eduardo de Castro –, em Trás-os-Montes ou no Pinhal Interior, por cada 100 indivíduos que lá estavam, foram-se embora 75! Isto é, ficaram lá 25. Baixou a população toda. E este foi o caso mais espectacular!” Contudo, “a população em idade de trabalhar esteve a aumentar até ao ano 2000”. “Mas as pessoas não têm a noção disso…Sabe porquê? Porque, até essa altura, baixava mais o número de crianças do que aumentavam os velhos”, elucida, confirmando que “nunca tivemos tanta gente a trabalhar”. “Mesmo agora, temos uma percentagem da população em idade de trabalhar maior do que havia em 1970 ou em 1980. Por isso, as questões da insustentabilidade não têm sentido nenhum!”, interpreta o académico que assume funções na CCDRC, há menos de um ano.
Como reitera, “o esvaziamento é uma coisa com centenas de anos”. “E sempre aconteceu porque se vivia com uma agricultura miserável, de subsistência, e as pessoas fartaram-se e foram embora, para Lisboa, para a França e para onde puderam. E é lógico que fossem embora. Então, continuavam a viver na miséria? E o que aconteceu foi que o Interior não conseguiu arranjar empregos alternativos”, fundamenta.
Acerca dos impactos do novo mapa judiciário, Eduardo de Castro não é capaz de responder. “Se estou aqui a argumentar que é preciso saber qual é a população, qual é o movimento e quais eram as consequências, não posso responder honestamente. Se respondesse, estava a ser igual aos outros, que dizem que sim ou que não porque lhes parece. Não sei! Sei é que tenho muitas dúvidas, para não dizer que tenho a certeza de que esses estudos foram feitos assim, por pessoas ligadas às questões jurídicas, baseadas em conselhos de não sei quem, se calhar, com muito pouca informação”, transmite ao sinalAberto.
Para concluir, o vice-presidente da CCDRC e anterior vice-reitor da Universidade de Aveiro considera: “Isto é muito mais uma questão de planeamento e de pessoas ligadas ao ordenamento do território do que de juristas. Os juristas têm de dizer quais são os dados que permitem saber se o sistema está bem ou mal. Disso são eles que sabem. Depois, já não é trabalho dos juristas.”
“Este é um país centralizado”, garante, alegando que “são os ministérios que, por si, tomam as suas decisões”. “Fala-se, agora, que vai aumentar o poder das regiões e que as regiões – não ouvi falar da Justiça – vão tomar conta de várias coisas. Mas este é um processo lento. O hábito e a tradição portuguesa é de que cada divisão vertical da administração faz as suas coisas… E pronto, não olha para o resto! Se olhássemos para tudo ao mesmo tempo, podíamos definir que isto fica com o tribunal, aquilo fica com o hospital, aquilo fica com não sei quantos… Ao distribuir o bem pelas aldeias, por exemplo, garantia-se que todos tinham alguma coisa e alguma vida. Assim, não. Cada um olha para a sua quinta!”, realça em tom crítico.
Nessa linha de pensamento, rebate: “Por exemplo, o Corvo quereria alguma comarca? Tem de haver é boas comunicações para que se façam muitas coisas à distância. Não se vai pôr um tribunal no Corvo, certamente! Aliás, os juízes têm poder e, imediatamente, matariam a ideia. Nunca consentiriam em colocar um colega no Corvo… Mas este é um caso de ultraperiferia.”
“Estou a tentar mostrar que grande parte disto não é um assunto exclusivo do Direito, mas de racionalidade e de eficiência. E, na eficiência, temos também a questão da equidade na oferta dos serviços públicos. Tem isto a ver com uma lógica da oferta dos serviços públicos. Não se pode pôr tudo em todos os sítios, porque não há dinheiro. A não ser que se apliquem mais impostos, mas duvido que as pessoas queiram isso… Há que fazer contas e ver que há limites. Acho piada a quem, num dia, faz grandes discursos contra o economicismo e, no outro, diz que não quer pagar impostos. Isso é complicado. Não pode ser tudo para o meu quintal!”
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30/09/2021
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A SEGUIR:
A reforma da justiça mais a norte: de Boticas a Paredes de Coura
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* Ao longo das próximas semanas, no jornal sinalAberto, continuaremos a desenvolver o dossiê com o título genérico “Justiça: o que não se lê no mapa”, no âmbito das Bolsas de Investigação Jornalística 2020, atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian.