Justiça: o que não se lê no mapa (3)*
A reforma da Justiça mais a norte: de Boticas a Paredes de Coura
Para o presidente de câmara Fernando Queiroga, Boticas é um município que, “agora, tem conseguido atrair alguma dinâmica económica através do turismo e do ecoturismo (ou turismo da Natureza), bem como da gastronomia”. Por isso, o edil social-democrata identifica “Boticas como um concelho de bem-estar, um concelho agrícola e um concelho de Natureza”.
Por sua vez, o autarca socialista Vítor Paulo Pereira salienta que o município de Paredes de Coura “seria um concelho, como muitos, condenado a perder vitalidade e energia”, se os habitantes e os políticos locais se refugiassem “no determinismo da geografia ou no estigma da interioridade”.
Com opiniões partidárias diferentes, ambos os autarcas têm em comum o forte apoio eleitoral dos seus concidadãos e o objectivo de, no âmbito das suas capacidades políticas, facilitar o acesso às populações locais ao primado da oferta judiciária, procurando também combater o despovoamento e a desertificação dos territórios.
Se Vítor Paulo Pereira diz que “é a capacidade de trabalho que transforma os territórios, bem como a criatividade das pessoas e não o chão que pisamos”, o autarca botiquense Fernando Queirós não lhe fica atrás nessa convicção e, tal como o seu homólogo de Paredes de Coura, não procura refugiar-se “no discurso da geografia, a pedir piedade do Estado”.
Um ano depois da introdução do novo mapa judiciário, o advogado Paulo Rocha, enquanto autor de um artigo que publicou, em 2015, na revista Julgar (da Associação Sindical dos Juízes Portugueses), declara que, num “périplo pelo país para aferir genericamente do balanço que se pode fazer sobre os resultados visíveis da aplicação no terreno do novo mapa judiciário, percebemos imediatamente que o mapa teve uma aplicação a nível nacional (intencional ou não), em formato mosaico”. Por isso, o jurista alega que “não podemos ter a veleidade de tentar fazer comparações entre quaisquer diferentes comarcas do país”. Essa advertência vale também para a nossa pesquisa jornalística, sete anos após este marcante processo de reforma da organização dos tribunais.
Mais interior na carta geográfica, o concelho de Boticas, no distrito de Vila Real, acompanha a maioria dos municípios que viram fechar os seus tribunais durante mais de dois anos e que contam com poucos residentes. Integrado na actual Comunidade Intermunicipal do Alto Tâmega (que corresponde a uma sub-região estatística ou NUT III), esperava-se que também viesse a pertencer à circunscrição judicial homónima (do Alto Tâmega), mas as expectativas da anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto) não foram concretizadas. Aliás, o XVIII Governo Constitucional (que correspondeu ao segundo mandato de José Sócrates e que tinha Alberto Martins como ministro da Justiça) decidiu suspender o alargamento desse “experimental” mapa judiciário.
Este município tinha, em 2001, 6.417 habitantes. Contudo, até 2011, a própria recessão demográfica (de 10,44 por cento) implicou a perda de 670 munícipes. A tendência para a diminuição da sua população é, igualmente, expressa na Pordata e relativa ao período de 2010 a 2019. Com efeito, manifesta-se a redução de 778 pessoas, considerando a diferença de 5.807 para 5.029 habitantes. Os resultados preliminares dos Censos 2021, divulgados em 28 de Julho, dão-nos também conta de uma variação negativa (-13%) da população residente neste município transmontano, entre 2011 (com 5.750 pessoas: números que não coincidem com os avançados pela Direcção-Geral da Administração da Justiça – DGAJ) e 2021 (agora com 5.002 indivíduos), a qual se acentuou na última década, com a redução de 748 habitantes.
Em entrevista ao sinal Aberto, o presidente da Câmara Municipal de Boticas, Fernando Eirão Queiroga (que, em 2013, sucedeu ao também social-democrata Fernando Pereira Campos), recebeu-nos com a confiança de quem gere uma autarquia com sucessivas maiorias do Partido Social Democrata (PSD), recandidatando-se ao terceiro mandato nas eleições de 26 de Setembro. Depois de alguns adiamentos no agendamento do encontro com o nosso jornal, que sucedeu na tarde da primeira quarta-feira do Verão, a 23 de Junho, já com uma pré-campanha autárquica que não dava hipóteses ao Partido Socialista – o qual, sem candidato à presidência da edilidade, viria a apoiar “formalmente” uma lista independente –, Fernando Queiroga começa por reconhecer que dirige um município com “pouca gente”. “Mas é gente que tem contribuído muito para o País!”, afirma, alguns meses antes de saber que 73,55% dos eleitores locais o reelegeriam e lhe permitiriam conseguir quatro mandatos para o executivo camarário, contra um do Movimento Independente “Juntos por Boticas”, que obteve 15,99% dos votos.
Na ocasião, o presidente da edilidade reforçava: “Nós não podemos contar só com os que estão cá, residentes. Nos meses de Julho e Agosto, o concelho de Boticas triplica a população. E isso é fruto do surto emigratório dos anos 70, que este município também sofreu; para o Brasil, para os Estados Unidos e, sobretudo, para a França, para a Suíça e para o Luxemburgo.”
.
Região do Barroso: Património Agrícola Mundial
O concelho de Boticas faz parte da Associação de Municípios do Alto Tâmega (AMAT), constituída também pelos concelhos de Chaves, de Montalegre, de Ribeira de Pena, de Valpaços e de Vila Pouca de Aguiar. Tal como o município de Montalegre, Boticas integra a região do Barroso, território paisagístico e natural com características peculiares a nível humano, económico e cultural. Classificada, em 19 de Abril de 2018, como Património Agrícola Mundial, pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a região do Barroso é o único território nacional com esta distinção, o que constitui motivo de orgulho também para Fernando Queiroga, que aposta na preservação do património agrícola, paisagístico e florestal ali existente.
“É um concelho que, agora, tem conseguido atrair alguma dinâmica económica através do turismo e do ecoturismo (ou turismo da Natureza), bem como da gastronomia. Identifico Boticas como um concelho de bem-estar, um concelho agrícola e um concelho de Natureza”, declara o autarca, valorizando os produtos endógenos e a preservação das antigas práticas rurais das comunidades locais.
Atendendo ao Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária, publicado em Janeiro de 2012 pela DGAJ, sob os aspectos organizativos e dos recursos humanos, as comarcas de Boticas e de Montalegre estavam igualmente agregadas, na sequência da Portaria n.º 412-D/99, de 7 de Junho. Com efeito, os respectivos tribunais de competência genérica partilhavam um quadro legal com um único juiz, o qual desempenhava funções em ambas as comarcas.
De acordo com informação reportada a 16 de Junho de 2011, semelhante situação era verificada com um único magistrado do Ministério Público, o qual também exercia nos dois tribunais. Contudo, o quadro legal então atribuído à comarca de Boticas admitia cinco oficiais de justiça, estando todos em exercício de funções locais. Por sua vez, a comarca de Montalegre comportava oito oficiais de justiça no seu quadro legal, encontrando-se sete desses profissionais a exercer localmente.
Numa leitura marginal, sabemos que Boticas foi a primeira comarca onde a carismática Maria José Morgado foi colocada, tendo sido “transferida por conveniência de serviço no mesmo dia em que o Conselho Superior do Ministério Público selec[c]ionou o seu nome para aquela comarca do distrito de Vila Real”, como recorda Luís Rosa, no seu livro 45 anos de combate à corrupção. “Mas nunca lá foi”, ressalta o mesmo autor, observando que esta magistrada – que, já como procuradora-geral adjunta jubilada, seria (décadas depois, em 2019) nomeada coordenadora dos serviços do Ministério Público do Supremo Tribunal de Justiça –, então, como primeira classificada do concurso de entrada no Ministério Público, tinha o direito de escolher a sua comarca de acordo com as vagas disponíveis. “E Lisboa, para onde havia uma vaga, foi a sua opção”, lembra o jornalista Luís Rosa.
No período de 2008 a 2010, em relação ao movimento processual e à média das entradas de peças processuais, a DGAJ anotou 139 processos na comarca de Boticas, os quais foram distribuídos, por ordem decrescente, do seguinte modo: 37 execuções, 32 processos de média instância cível, 30 processos de média instância criminal, 13 processos no âmbito da Família e Menores (FM), 11 processos de pequena instância cível e cinco processos de grande instância cível, bem como outros cinco processos de pequena instância criminal, a juntar aos três processos de grande instância criminal (refira-se que a Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, diz competir “à grande instância criminal proferir despacho nos termos dos artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal e proceder ao julgamento e aos termos subsequentes nos processos de natureza criminal da competência do tribunal colectivo ou do júri”) e aos dois processos de instrução criminal. No mesmo documento, a DGAJ registava ainda um processo em matéria do Comércio.
.
A resposta judiciária na antiga comarca de Boticas
Na época dessa publicação, a resposta judiciária na comarca de Boticas envolvia as áreas Cível, Penal, de FM e do Comércio, sendo então dirigidas as causas laborais para o Tribunal do Trabalho de Vila Real. No contexto da instância central do Tribunal Judicial do Distrito de Vila Real (TJDVR), a DGAJ avançava, em Janeiro de 2012, com uma proposta de organização que assegurava a Secção Cível e a Secção Criminal, ambas com sede na cidade de Vila Real e com competência territorial distrital.
No que concerne às secções de competência especializada, o Ministério da Justiça (MJ) garantia a existência da Secção do Trabalho em Vila Real, tendo esta uma competência territorial distrital. Por sua vez, a Secção de Família e Menores, também com sede em Vila Real, apresentava competência territorial para os concelhos de Alijó, de Mondim de Basto, de Murça, de Sabrosa, de Vila Pouca de Aguiar e de Vila Real. Então, à Secção de Execuções, com sede em Chaves, foi concedida competência territorial para todo o distrito.
Na conjuntura das instâncias locais do TJDVR e no que toca ao volume processual expectável subsistente à aludida especialização, foi previsto, para a comarca de Boticas, o movimento de 57 processos em matéria cível e de 35 na área criminal, totalizando 92 processos, o que consiste, na óptica da Direcção-Geral da Administração da Justiça, num “volume processual muito reduzido”.
Considerando que a comarca de Boticas apresentava “valores, quer de movimento processual quer de população, muito inferiores relativamente à comarca de Chaves”, a DGAJ recomendava a extinção do tribunal de Boticas.
Houve vários raciocínios para encerrarem os tribunais. Um desses critérios era o de que as comarcas que tivessem, em média, menos de 250 processos anuais, seriam encerradas. “Mas não era o que acontecia em Boticas! Até esses dados, a senhora ministra de então aldrabou, adulterou. Porque, enviados da secretaria judicial, dos anos a que se referia, o número de processos ultrapassava, muito, o limite que ela tinha posto. E ela adulterou os resultados para me fechar o tribunal. Eu continuo a dizer: – Foi ela!”, acusa o presidente da edilidade.
Com efeito, ao atender aos dados preliminares dos Censos 2011 referentes à evolução demográfica nesses últimos 10 anos, observou-se que o município de Boticas teve “uma diminuição de 10,44% da população, sendo que na comarca de Chaves esta diminuição apenas atingiu 5,09%”.
“É, na realidade, um concelho despovoado. Pode ter menos gente, se compararmos num quadro de Excel. Mas, agora – e isto vem a propósito de um tema actualíssimo –, anda o senhor primeiro-ministro [o socialista António Costa] muito preocupado, porque quer dividendos do concelho de Boticas. Ai, agora, Boticas já conta! Porque tem a maior reserva de lítio da Europa?”, interroga o autarca Fernando Queiroga.
“Eu estou a fazer a contraproposta, a contestar. Ainda estamos na fase de discussão pública do estudo de impacto ambiental. Estamos a preparar isso, até ao dia 16 de Julho. Sou contra porque nos destrói o concelho e não nos deixa riqueza nenhuma. É que não deixam cá nada! Como presidente da Câmara de Boticas, defendo os interesses do meu concelho. É para isso que fui eleito. Quando não fizer isso, vou-me embora!”, clarifica o edil social-democrata, notando que “o Estado tem de olhar para os territórios da mesma forma como olha para Lisboa”.
.
Instalações dos tribunais e acessos rodoviários
O MJ informa ainda, a propósito das instalações dos tribunais, que as do Tribunal de Chaves são “propriedade do Instituto de Gestão Financeira e Infra-Estruturas da Justiça” (actual IGFEJ – Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça), enquanto o edifício do Tribunal de Boticas pertence à autarquia local.
Ao comparar as instalações dos tribunais, o presidente da câmara botiquense reitera: “Os critérios eram tão obscuros que, acho eu, só essa senhora [a ex-ministra Paula Teixeira da Cruz] é que pode dizer quais foram os que utilizou para fechar o tribunal, porque a alternativa está a mais de uma hora; e o edifício estava em boas condições…”
Um outro argumento da DGAJ (que consultou o serviço ViaMichelin para calcular itinerários) é a existência de “bons acessos rodoviários entre Boticas e Chaves”, localidades que distam 23 quilómetros, num percurso de 28 minutos (segundo a mesma fonte).
“Deixe-me ainda dizer que o juiz, dado em Montalegre, vinha cá uma vez por semana. Quais eram os custos acrescidos? Isto é mentira! A Câmara predispôs-se a pagar os gastos do funcionamento, como está a pagar. Água e luz, e sem cobrar arrendamento. Não me falha a palavra. O Ministério da Justiça não tem custos nenhuns. As obras fi-las eu! E, na altura, também disse à senhora ministra que lhas fazia. Portanto, isso foi uma teimosia. E disse que não. Tanto foi uma teimosia e uma má percepção que, depois, voltou tudo e o Estado não ficou mais pobre por isso”, declara Fernando Queiroga ao sinal Aberto.
Se consultarmos o anexo do documento “Indicadores de A[c]tividade nos Arquivos dos Tribunais 2014”, publicado pela DGAJ, em Março de 2015, observamos que, na Comarca de Vila Real, ao encerrar o núcleo ou a instância de Boticas, o seu arquivo, relativo ao ano de 2014, foi transferido para um armazém em Vila Real, e que envolvia uma extensão de 329 metros de prateleiras e uma extensão documental com 230 metros, não se verificando qualquer saldo na disponibilidade de reserva ou acomodação dos processos. O mesmo documento não nos informa quanto ao total de processos eliminados e remetidos para o arquivo distrital, entre 2003 e 2014.
Na época do anúncio do encerramento da comarca de Boticas, o executivo municipal interpôs uma providência cautelar e participou em duas manifestações que envolveram a população e alguns advogados. Para o social-democrata Fernando Queiroga, que então se opôs à decisão do Governo liderado por Pedro Passos Coelho, um tribunal não faz apenas “parte da natureza das coisas”, porque “é uma obrigatoriedade do Estado”.
.
Abandono dos territórios
Em seu entender, “o Estado não pode largar os territórios que, já por si e fruto da evolução da sociedade, estão a ser abandonados”. Principalmente, porque “as pessoas vão à procura de melhores oportunidades”. “Tempos houve em que não eram criadas as condições necessárias e suficientes para que as pessoas se radicassem cá. Porquê? Não havia emprego e saíram”, salienta Fernando Queiroga, acusando os governantes de terem “acompanhado este desiderato” ou chamamento para além-fronteiras.
“Esta fuga ou abandono dos territórios é muito típica e muito particular”, considera o edil de Boticas, que ficou descontente com o “brinde” que o seu partido (PSD) lhe deu quando, em 2013, tomava posse do primeiro mandato de presidente do município: “Foi fechar-me o tribunal, por decisão da ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz. Aliás, quase nem quero pronunciar esse nome! Tomei posse em Novembro de 2013 e, em Março de 2014, foi a prenda que a senhora ministra me deu.”
Diga-se que, no âmbito deste trabalho de investigação jornalística, procurámos mais esclarecimentos por parte da ex-ministra da Justiça, no XIX Governo Constitucional, através da sua assistente no escritório de advogados onde exerce e também por mensagens electrónicas que não obtiveram resposta. Com esta informação, retomamos a conversa tida nessa quarta-feira de Junho com o presidente da Câmara Municipal de Boticas: “Já enquanto vereador, em 2013, fui lá falar com ela. Até fui de muletas! Tinha tido um percalço a jogar futebol… Foi num sábado, a reunião era numa segunda-feira. Fui para o hospital e queriam operar-me imediatamente. Só me davam alta na segunda-feira à tarde, isto é uma particularidade… Eu disse que não podia ser. Por isso, fui a Lisboa, com a ajuda de muletas, e vim para cima, onde me esperava uma cama do hospital, para ser operado na terça-feira. Quis fazer ver, àquela senhora, o meu interesse e a importância que tem um tribunal nestes territórios.”
“Porquê? Porque grande parte dos processos que estão e que entram nestes tribunais são comunitários, são reais; é preciso ir aos sítios. E, portanto, quanto mais se afastam, as pessoas começam a perder direitos”, prossegue Fernando Queiroga, que (com a solidariedade dos restantes autarcas da Comunidade Intermunicipal do Alto Tâmega) chegou a accionar uma providência cautelar contra o encerramento do Tribunal de Boticas, procurando contrariar a reorganização do novo mapa judiciário, sobretudo como estava definido no ante-projecto de decreto-lei que estabelecia o Regime de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Mesmo por divergências relacionadas com os limites de uma propriedade ou com o acesso e a distribuição de águas, por exemplo, “é preciso ir aos locais para ver os problemas”. Em vez disso, com a dita reorganização judiciária, os cidadãos de Boticas iriam tentar resolver os seus problemas em tribunais fora do seu município, aumentando as despesas com as deslocações. “E isso não tinha jeito. Mas eu fiz-lhe [à ex-ministra Paula Teixeira da Cruz] ver isto. E, depois, é o símbolo do Estado que está em causa. Eu percebo que o Terreiro do Paço não se preocupa minimamente com isso…”, comenta o edil transmontano.
Além de duvidar da eficiência na concretização da justiça, em consequência desta decisão política, Fernando Queiroga alegava, a propósito da referida providência cautelar, que “a população do concelho de Boticas irá ter um custo muito mais elevado no acesso à justiça, desde logo pelo custo das deslocações”.
.
Sem rede de transportes públicos
Por outro lado, “a ausência de uma boa rede de transportes”, por exemplo, para Chaves ou para Vila Real (onde parte da Justiça funcionava em contentores), poderá levar a que as pessoas “tenham de sair no dia anterior” para poderem aí estar às dez horas da manhã. E, no regresso a Boticas, “se a pessoa morar fora da sede de concelho, não terá transporte a partir das 18h00 para a sua localidade”, observava, nessa altura, o autarca botiquense, admitindo a necessidade de várias deslocações para um julgamento, as quais envolvem custos que “poderão ser de tal ordem que leve as pessoas do concelho a desistirem do usufruto do seu direito à justiça, como todo e qualquer cidadão português”.
Quanto aos impactos locais resultantes da reorganização do mapa judiciário, Fernando Queiroga não descura “a questão económica destes territórios”. Nos dias de audiência ou de vinda ao tribunal, “as pessoas que se dirigem à sede do concelho sempre vão aos comércios, comprar uma roupa ou comer num restaurante”. “E esta dinâmica faz falta. Sem ela, o pequeno comércio fecha. E as pessoas, também por isso, abandonam Boticas e vão saber de novas oportunidades”, pensa o autarca. Então, ficou surpreendido com a “insensibilidade” de Paula Teixeira da Cruz, que, desde Novembro de 2012, nunca mais o atendeu: “Eu, por interpostos membros do Governo, fui-lhe dizendo: – Marque a reunião para as sete da manhã! Marque para a meia-noite ou para um domingo, mas tem de ter meia hora para nos receber. E nunca nos recebeu, quando aquilo se efectivou!”
Embora reconheça a impossibilidade de termos “tudo à nossa porta” – como argumenta o também nosso entrevistado Eduardo Anselmo de Castro (vice-presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro), igualmente no âmbito do dossiê “Justiça: o que não se lê no mapa” –, este autarca transmontano releva a importância dos serviços que constituem “o pilar da democracia e da efectividade dos direitos” dos cidadãos, sejam eles de Boticas ou de outro município. Tal princípio estruturante está consagrado no Artigo 20.º da Constituição da República, prevendo que, genericamente, a “todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos” (n.º 1).
Todavia, a 15 de Junho de 2012, com a divulgação do documento Linhas Estratégicas para a Reforma da Organização Judiciária, as populações de Boticas, de Mondim de Basto e de Murça saíram à rua em protesto contra o encerramento dos tribunais. Em Mondim de Basto, o tribunal não chegou a fechar portas, mas perdeu competências. Indagado sobre eventuais desequilíbrios territoriais nesta decisão do então Governo resultante da coligação eleitoral PPD/PSD.CDS-PP, o social-democrata Fernando Queiroga confirma que não se verificou um tratamento igualitário. Na sua perspectiva, “era pesca à linha”. Por conseguinte, ainda hoje, o autarca não perdoa o seu partido por “ter feito o que fez”. “O tribunal não podia continuar como estava, mas fechar as portas não!”, expressa o edil de Boticas, considerando ter sido “uma teimosia da ministra da Justiça”.
“Nunca soubemos dos seus argumentos, porque a senhora nunca falava com ninguém. Podia ter-nos dado uma explicação. E estou à vontade, porque estou a falar do meu partido político”, expressa Fernando Queiroga, acentuando já a capacidade de diálogo e a disponibilidade de Francisca Van Dunem, por exemplo, na sequência de uma carta que previa o encerramento do Gabinete Médico Legal de Chaves. “No meu anterior mandato, eu e o colega de Chaves fomos recebidos no Ministério da Justiça, passados oito dias do nosso pedido de marcação de uma reunião. E a senhora ministra disse-nos que poderíamos vir para cima descansados. Até hoje, aquele serviço está em Chaves. A ministra cumpriu”, confirma o autarca botiquense, compreendendo esta atitude política como “uma questão de planeamento do território”. “Não se pode olhar para o País a partir do Terreiro do Paço, porque só se vê o Tejo. E a realidade aqui, em Trás-os-Montes, é diferente”, adverte o nosso entrevistado.
.
Providência cautelar não evita fecho do tribunal
Em 6 de Fevereiro de 2014, a página electrónica do município de Boticas dava conta da providência cautelar que iria ser avançada para travar o encerramento do tribunal, o qual constituía “uma medida altamente lesiva para a sua população, não só a nível social, mas também economicamente”. “Isto porque o tempo a despender para a deslocação entre a grande maioria das aldeias do concelho e o tribunal de Chaves, onde passariam a ser tratados a maioria dos assuntos, ultrapassa uma hora de percurso”, afirmava-se, considerando também que “a não existência de uma rede de transportes públicos e a incompatibilidade dos horários dos autocarros, obriga a população a recorrer ao transporte em táxi, o que será extremamente dispendioso para a população, que na sua maioria não conseguirá suportar tais custos”. Nessa data, era expectável que a situação viesse a atingir “custos ainda mais elevados no caso dos processos que passam para o Tribunal de Vila Real, dado que na nova avaliação das propriedades, o valor das a[c]ções sumárias obriga a que todas passem para Vila Real, uma vez que Chaves deixa de ter competências perante os novos valores”.
O objectivo, segundo o mesmo autarca, “não era o de facilitar o acesso aos tribunais”. Pelo contrário, “sabemos que cada processo envolve testemunhas e que, por vezes, são precisas dez ou vinte pessoas para testemunharem”. Daí que Fernando Queiroga compreenda que muitos cidadãos de Boticas pudessem ter recusado ir – mesmo se necessário – sucessivas vezes a Vila Real, atendendo aos custos das deslocações e à perda de tempo. Assim, “perdeu-se a justiça”, porque “as pessoas começaram a praticá-la à sua maneira, evitando avançar para os tribunais”.
Questionado sobre um provável aumento da criminalidade no seu município, no período de 2014 a 2017, Fernando Queiroga diz que não dispõe de dados sobre isso, mas é peremptório em declarar que “não houve mais crimes”. “Isto já é gente civilizada, não andamos à sachada uns aos outros! No entanto, a situação criou inimizades maiores entre as pessoas. Porquê? Não foram para a justiça e ficam ad eterno aquelas desavenças! Não se falam. E isso agudizou-se. Deixa-se andar e as pessoas, pura e simplesmente, viram costas!”, expressa o autarca reeleito, agora no seu terceiro mandato.
Ao recorrermos à acta (n.º 14/2014) da reunião ordinária da câmara municipal realizada em 16 de Julho de 2014, verificamos que foi ali ratificado, por unanimidade, o despacho do presidente do executivo (com a data de 14 de Julho), na sequência de um ofício proveniente da Ordem dos Advogados (OA) relativamente à manifestação, em Lisboa, contra o novo mapa judiciário, para a qual foram convidados os eleitos locais a participar (e que, de facto, participaram) no Protesto Nacional contra a Reorganização Judiciária, o qual decorreu no dia 15 de Julho, em frente da Assembleia da República (AR), “em sinal de descontentamento do nosso povo face a este novo mapa judiciário”.
Conforme se regista no Boletim da Ordem dos Advogados, de Setembro de 2015 (n.º 130), nesse Protesto Nacional de Cidadania contra o Novo Mapa Judiciário, realizado no dia 15 de Julho de 2014 e convocado pela OA, os advogados envergaram a toga num acto simbólico de defesa dos direitos de cidadania e de manifestação da força da advocacia portuguesa, no contexto da referida iniciativa, contra o novo mapa judiciário, junto da escadaria da AR. Elina Fraga, na qualidade de bastonária da OA e “perante mais de três mil presentes”, enfatizou: “Quando se afastam os Tribunais dos cidadãos, a reforma não serve os interessados que são afinal os cidadãos”. Nesse mesmo dia e durante a manifestação de protesto, a representante dos advogados “foi recebida pelos grupos parlamentares do Partido Socialista, do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista Português”.
Com base na Pordata, o município de Boticas apresenta, em 2019, uma densidade populacional ou demográfica de 15,6. O que significa que a relação entre a população concelhia e a superfície do território botiquense, expressa em habitantes por quilómetro quadrado, é consideravelmente mais baixa do que a que se verifica, simultaneamente, a nível nacional, a qual assume o valor de 111,5.
A mesma publicação da OA, um ano depois da entrada em vigor do novo mapa judiciário, recorda que a ex-bastonária, a 29 de Janeiro de 2014, no âmbito da Abertura do Ano Judicial, integrou no seu discurso dois apelos para as reformas então anunciadas: a reorganização judiciária e o sistema de acesso ao Direito e aos tribunais. “Prosseguir numa política de desertificação do interior do país, galvanizar as assimetrias que hoje já existem, é condenar Portugal a reduzir-se a um desenvolvimento a duas velocidades e põe em causa qualquer esforço de coesão nacional”, expressou Elina Fraga.
Para a ex-bastonária da OA, encerrar tribunais ou desqualificá-los, “obrigando populações a deslocar-se às capitais de distrito, que nem sequer gozam tantas vezes de centralidade geográfica, representa a página mais negra que possa ser escrita pelos nossos deputados e traduz a capitulação do Estado numa das suas principais responsabilidades que é assegurar a administração da Justiça”.
“Recuso a palavra desertificação no meu concelho”
Recuperando a conversa com Fernando Queiroga, o edil não considera que o seu município seja “um deserto”. “Se formos fazer a comparação, naturalmente, perdemos muita gente. Porém, enquanto o meu concelho tiver um habitante, não é despovoado, porque acredito nas pessoas que cá estão”, salienta o autarca botiquense, garantindo ter sido “eleito para dar qualidade de vida a todos aqueles que cá continuam a resistir”.
“Recuso a palavra desertificação no meu concelho, porque há aqui oportunidades e uma dinâmica, bem como gente que está a regressar do estrangeiro e jovens que se estão a fixar”, realça o presidente da câmara, para quem a aposta assenta na capacidade de “atrair empresas e de criar emprego”. Todavia, admite que o fecho do tribunal local – no qual o município investiu cerca de 150 mil euros em obras de recuperação e manutenção das respectivas instalações – teve impacto negativo não só no pequeno comércio, como também na atractividade das empresas. “Além de pôr aquilo em condições para funcionar, a câmara” – proprietária do edifício, que também acolhe a Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Cartório Notarial de Boticas – “está a pagar a água e a luz”, nota Fernando Queiroga, esclarecendo que a autarquia não dispensou funcionários para qualquer uma dessas entidades públicas.
A este respeito, o edil recordou que a secretária de Estado adjunta e da Justiça visitou as instalações do tribunal local, no dia 13 de Maio de 2016, a fim de registar as necessidades do executivo municipal, antevendo a respectiva reabertura. Nessa ocasião, o edil declarou à governante (Helena Mesquita Ribeiro): “Os botiquenses merecem que lhes devolvam os serviços judiciais que lhe foram retirados. A maioria da população não tem condições para se deslocar a Chaves, ou mesmo Vila Real, para resolver problemas que eram resolvidos aqui.”
Com a reactivação, em Janeiro de 2017, os tribunais encerrados em 2014 (sob o argumento da racionalização das infra-estruturas de modo a possibilitar ganhos de eficiência) passaram a ser juízos de proximidade, mas não foram repostas as competências das antigas comarcas. “De facto, não foram, mas isso também não me importa. Não foi esse o espírito e eu percebo”, confessa ao sinal Aberto, destacando que “o Estado é uma máquina pesada, paga por todos”.
“Sempre pedi um tribunal de proximidade, para que qualquer cidadão, que queira obter um documento ou resolver uma questão, não tenha de se deslocar a outro concelho”, confirma o autarca, sabendo das possibilidades das videoconferências, que também evitam as deslocações a outros serviços judiciais “fora de portas”.
“O que eu pedi é o que está. Não tenho de ser demagogo. E já não pedia muito, porque também tenho noção da realidade. Estou, actualmente, satisfeito com a situação”, assevera. Pois, “de certa forma”, reconhece que a justiça realizada localmente corresponde aos objectivos dos cidadãos e dos agentes económicos. “As pessoas sabem que está ali uma instituição do Estado e reconhecem o seu poder simbólico e de soberania; ficaram contentes e resolveu-se o problema”, garante. Fernando Queiroga apreciaria ter, em Boticas, “um tribunal com todas as competências”, mas compreende que “o Estado não pode comportar tudo”.
No que concerne aos impactos socioeconómicos do novo mapa judiciário na vila de Boticas, o autarca Fernando Queiroga apercebe-se de alguns sinais neste município transmontano. “Não é nenhuma de enormidade, mas notei a insatisfação das pessoas”, confirma ao sinal Aberto, destacando os custos inerentes às deslocações de quem precisava de ir a Chaves ou Vila Real tratar de assuntos do domínio forense, devido à falta de transportes. “Na altura, fiz as contas, eram 117 euros – salvo erro – numa viagem de táxi, de ida e volta, entre Vila Real e Boticas”, especifica o edil, adiantando: “Há uma carreira que chega lá por volta das onze e meia. Para o regresso já não havia, porque o último autocarro saía de lá às três da tarde. Por isso, ainda fizemos [a nível dos serviços municipalizados] alguns transportes, o que, naturalmente, pesou no nosso orçamento”. “Quisemos, acima de tudo, atenuar a insatisfação e a insegurança das pessoas”, justifica Fernando Queiroga.
.
“É, sempre, o povo que paga”
Quando o tribunal de Boticas fechou, Luís Marques Mateus, com 83 anos de idade, ficou descontente. “Claro! Porque é um bem que temos. Pode não ser muito usado, mas tínhamos de o ter quando precisássemos”, manifesta este botiquense agora aposentado, cuja vida activa o levou a conhecer outros horizontes, como o estado de São Paulo, que é o mais populoso do Brasil.
“Se havia um problema qualquer, tínhamos de ir para Chaves ou para Vila Real. E quem é que paga?”, interroga Luís Mateus, redarguindo que “é, sempre, o povo”. Em face de uma rede de serviços rodoviários públicos com reduzida capacidade de resposta, “a ligação de transportes não é grande”: “Não temos nada! Eu já precisei de ir ao médico a Vila Real e, sem camionetas, tive de ir no meu carro.”
Assim, para os residentes em Boticas, sem viatura própria, que se deslocam aos tribunais de Vila Real ou de Chaves, “a vida não é fácil”, constata Luís Mateus, que, ainda recentemente, serviu de testemunha num caso resolvido em Chaves. “Antigamente, a coisa resolvia-se aqui. O povo cada vez está mais pobre e cada vez apresentam-lhe mais despesa”, diz o ex-emigrante, durante mais de duas décadas em terras brasileiras, insistindo na importância do aspecto simbólico dos tribunais: “Todas as vilas deveriam ter tribunal. Mas, aqui, é uma vila a que tiraram o poder judicial. Mesmo agora, quando se quer tratar de alguma coisa, é em Chaves ou em Vila Real.”
De facto, o nosso interlocutor desconhecia que o tribunal de Boticas já tinha sido reactivado, desde 2017: “Eu acho que o tribunal está aberto, mas não funciona.” Todavia, nessa mesma tarde, ocorreu ali uma audiência, onde participou a advogada Guida Nunes Vaz, que também aceitou prestar breves declarações ao sinal Aberto, enquanto a oficial de diligências procedia à chamada das testemunhas.
“O tribunal é um bem que faz sempre falta a qualquer pessoa”, salienta sem sotaque o antigo emigrante, entendendo que “a falta de gente em Boticas”, se deve à circunstância de “ser um concelho de pequena agricultura”. “Por isso, as pessoas têm de emigrar. No Verão, as aldeias têm alguém; no Inverno, não têm ninguém. Se contratamos uma pessoa para tratar de um terreno, pagamos a peso de ouro. Compra-se as coisas mais baratas do que trabalhá-las. Então, a agricultura no concelho de Boticas acabou!”, declara, em tom pessimista.
.
“Havia mais audiências do que agora”
Com o novo mapa judiciário e com o temporário encerramento do tribunal local, ara os residentes em Boticas, sem viatura própria, que se deslocam aos tribunais de Vila Real ou de Chaves, “a vida não é fácil”, constata Luís Mateus. “E isso tem impacto no comércio. Os donos dos restaurantes queixam-se, porque as pessoas que vinham a julgamento sempre consumiam. Antes, havia mais audiências do que agora, porque o Interior se está a esvaziar por completo”, alega a nossa entrevistada, junto da sala do tribunal onde vai decorrer uma audiência em que participa.
“As pessoas ficaram incomodadas. Isto mudou um bocadinho, porque fazemos aqui Crime, há cerca de dois anos; e, depois, também já as acções cíveis novas. Este é um juízo de proximidade, mas houve um tempo em que nem registos criminais tiravam aqui, com um funcionário para receber papéis. Hoje, ainda só há um funcionário, que anda para trás e para a frente! Às vezes, vêm outros oficiais de justiça de Chaves, sobretudo quando se trata do foro criminal”, constata Guida Nunes Vaz, que é a actual delegada da OA em Boticas.
Conforme repara a causídica, que exerce há 36 anos, “as acções cíveis ainda continuam a ser feitas, quase todas, em Chaves; sendo acções que levam muito tempo para serem tramitadas”. “E as de maior valor continuam em Vila Real. Quanto ao crime de pena maior, com mais de cinco anos de prisão, é também resolvido em Vila Real. Imagine-se o absurdo para as pessoas que moram, por exemplo, em Alturas do Barroso e têm de ir para Vila Real!”, expressa a representante local da OA.
Ao progredir na leitura da situação judicial neste município transmontano, a advogada Guida Vaz refere que “deixou de haver juízo colectivo em Boticas”, além de o juízo de proximidade, pela sua competência jurisdicional, “ter igualmente deixado de tratar as acções de maior valor”. Com efeito, como divulga o Ministério da Justiça, nos juízos de proximidade, a “realização de alguns julgamentos no município onde os factos foram praticados deixa de ser opcional e passa a ser obrigatória”. Ou seja, podem também “ser realizadas audições ou testemunhas ou outros a[c]tos processuais, “designadamente com recurso a equipamentos ele[c]trónicos de comunicação à distância”.
Esclarecendo, os julgamentos tidos como obrigatórios no local onde os factos foram praticados são os “julgamentos criminais da competência de tribunal singular”. Mais propriamente, aqueles cuja pena máxima – abstractamente aplicável – não seja superior a cinco anos de prisão.
“Como se vê, o tribunal esvaziou”
Na perspectiva da causídica (nascida há 69 anos e que esteve muito tempo no Brasil, para onde os pais, ambos transmontanos, emigraram), a situação da justiça em Boticas “melhorou um bocadinho”, desde 2017, devido às alterações introduzidas na Lei da Organização do Sistema Judiciário, visando “assegurar a proximidade recíproca da justiça e dos cidadãos”. No entanto, “como se vê, o tribunal esvaziou”, releva Guida Vaz, comentando: “Há uns tempos atrás, no dia de hoje [quarta-feira], seriam feitos dois ou três julgamentos e estavam os restaurantes cheios, com as muitas pessoas que vinham.”
Para esta jurista, é visível “o impacto económico, mas também psicológico”. “Eu sinto, como advogada, que as pessoas – em especial, as de meia-idade, que recordam o tribunal de antigamente – agora sentem que foram jogadas para trás. É claro que sentem”, insiste, acrescentando: “Vemos que as pessoas evitam procurar um advogado e recorrer ao tribunal. O número de processos diminuiu, não vale a pena dizer o contrário. Isso não quer dizer que as pessoas pacificaram. Às vezes, até têm motivos fortes para irem para tribunal. Mas, ao pensarem que terão muitas despesas, não avançam com os processos. Realmente, sinto um pouco isso.”
Apreensiva quanto a eventuais novas modificações ou melhorias no sistema judiciário, Guida Vaz observa: “Já estou como os brasileiros: vou indo devagar, quase parando.” “Lutei muito, mesmo muito, para que este tribunal não fechasse. Fizemos manifestações até em Chaves, que também perdeu competências. Todos os tribunais perderam competências”, declara ao sinal Aberto. “Eu nem deveria dizer isto, porque tenho dois desses profissionais em casa, mas houve um lobby muito grande por parte dos magistrados. Agora, as coisas para eles estão muito facilitadas. Claro que os meios informáticos também vieram fazer com que a vida deles seja mais fácil”, exprimiu, sabendo que, no contexto dos processos de natureza cível e, excepcionalmente, nos processos criminais, as testemunhas residentes fora do concelho onde está localizado o tribunal ou juízo podem ser ouvidas recorrendo a equipamento tecnológico que permita a comunicação em tempo real.
Na opinião da nossa entrevistada, o novo mapa judiciário foi feito também para diminuir custos. “Mas não sei se se poupou alguma coisa. Para as pessoas, certamente que não, porque hoje têm mais gastos do que antes”, sublinha a representante da Ordem dos Advogados. Por outro lado, assegura que “não há falta de juízes”. “Há é falta de procuradores do Ministério Público para irem aos sítios. Por exemplo, antigamente, nós tínhamos um procurador só para Boticas. Não fazia mal nenhum se, em vez de diminuírem, aumentassem as vagas”, considera Guida Vaz
“Contudo, é o que temos. E quem é que fica sempre prejudicado? Somos nós, enquanto advogados, porque o nosso trabalho deixa de ser feito. E as pessoas também deixam de ter os seus problemas resolvidos”, admite a causídica botiquense, achando que o tribunal ou juízo de proximidade local “tem óptimas instalações”. “Mas, pelo que vejo, há por aí outras salas de tribunais que são do tamanho da minha cozinha!”, critica.
Quanto aos critérios para justificar o encerramento dos tribunais, a mesma representante da OA subscreve a ideia de que “eles [os políticos do XIX Governo Constitucional que conduziram as reformas da justiça, na vigência do programa de assistência económica e financeira, através da DGAJ] já tinham a coisa feita; já tinham tudo pronto. Esta coisa de andar a consultar as pessoas foi só linguiça!”, escarnece Guida Vaz, para quem “a justiça afastou-se dos cidadãos”. “As pessoas, agora, pensam três ou quatro vezes antes de irem a tribunal. O acesso à justiça está mais dificultado”, sublinha, verificando que isso também contribui para a desertificação ou para o despovoamento deste município da região do Barroso.
“Não é a única causa da desertificação, evidentemente, mas contribui. É a velha história de quem apareceu primeiro, se foi o ovo ou a galinha. Tudo é psicológico e o tribunal era um marco”, regista a advogada. “O primeiro julgamento a que fui teve a ver com violência doméstica e, então, a sala estava cheia. Agora, as pessoas não ligam, literalmente, a nada!”, relembra a causídica, interpretando que “o tribunal, pelo seu valor simbólico, impunha respeito às pessoas”.
Ao mesmo tempo, Guida Vaz, recorda a época em que o tribunal estava no centro do debate mediático, principalmente com as manifestações das comunidades do Interior, em zonas desertificadas, a que se juntaram os autarcas e os advogados. Por isso, esta defensora de causas ainda pensa que vale a pena lutar, entre outras coisas, pelo acesso à justiça, por uma adequada organização e pelo eficiente funcionamento dos tribunais.
.
.
As comarcas de Paredes de Coura e de Vila Nova de Cerveira estavam agregadas
Seguindo para Oeste, no mapa e nas estradas, chegamos ao distrito de Viana do Castelo e à então desenhada circunscrição judicial do Minho-Lima (que também não chegou a materializar-se, ao abrigo da anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ou Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto; refira-se que, em Maio de 2010, o segundo Governo liderado por José Sócrates suspendeu o alargamento do, então, novo mapa judiciário), onde encontramos o município de Paredes de Coura que, em 2001, tinha 9.571 habitantes.
Todavia, no registo demográfico de 2011, este concelho mostra, segundo a Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ), uma diminuição de 320 pessoas, resultante de uma variação (negativa) de 3,34 por cento. Refira-se que, por sua vez, o Instituto Nacional de Estatística (INE) contabilizou 9.198 indivíduos nos Censos 2011. Seguindo a base de dados da Pordata, é também notória a tendência local para a redução do número de residentes, no período de 2010 a 2019, passando de 9.240 para 8.548 munícipes.
Com a divulgação, a 28 de Julho, dos resultados preliminares do XVI Recenseamento Geral da População e VI Recenseamento Geral da Habitação – Censos 2021, o INE diz-nos que há uma variação da população residente em Paredes de Coura, entre 2011 e 2021 (agora, com 8.636 indivíduos), de -6,1%. Como se observa, esta tendência de redução populacional está a aumentar, tendo o município perdido 562 habitantes na última década.
Situado na região Norte e na sub-região do Alto Minho, o município de Paredes de Coura tem uma área de 138,19 quilómetros quadrados. No âmbito judiciário, a respectiva comarca estava compreendida na Comarca de Viana do Castelo, que assenta no distrito administrativo, bem como as comarcas de Arcos de Valdevez, de Caminha, de Melgaço, de Monção, de Ponte da Barca, de Ponte de Lima, de Valença, de Viana do Castelo e de Vila Nova de Cerveira.
No seguimento da Portaria n.º 412-D/99, de 7 de Junho, as comarcas de Paredes de Coura e de Vila Nova de Cerveira estavam agregadas. Segundo informação reportada a 16 de Junho de 2011, as aludidas comarcas partilhavam um quadro legal com um único juiz, o qual desempenhava funções nos dois tribunais de competência genérica. Ainda no que respeita à organização e aos recursos humanos, ambas as comarcas asseguravam um magistrado do Ministério Público (MP) no quadro legal conjunto, mas dispunham de dois magistrados do MP em exercício de funções.
A nível dos oficiais de justiça, estes tribunais dispunham de um quadro legal próprio e com um número desigual de profissionais. Assim, a comarca de Paredes de Coura garantia um quadro legal de cinco oficiais de justiça, todos em exercício de funções. Por sua vez, a comarca de Vila Nova de Cerveira apresentava um quadro legal com sete oficiais de justiça, mas eram seis os elementos que ali trabalhavam.
.
Movimento processual da comarca de Paredes de Coura
A propósito do movimento processual e da média das entradas, entre 2008 e 2010, a Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) informava que, na comarca de Paredes de Coura, a concernente actividade totalizava 244 processos. Como lemos no Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária (publicação que fundamentou o documento Linhas Estratégicas para a Reforma da Organização Judiciária, em 15 de Junho de 2012) estes processos foram distribuídos, por ordem decrescente, da seguinte maneira: 72 execuções, 36 processos de média instância cível, 33 processos no foro da Família e Menores (FM), 30 processos de pequena instância criminal, 29 processos de média instância criminal, 21 processos de pequena instância cível e 15 de grande instância cível, a par de quatro processos de instrução criminal, de dois processos no âmbito do Comércio e de outros dois de grande instância criminal.
Em 2012, a resposta judiciária na comarca de Paredes de Coura era concretizada nas áreas Cível, Penal, da FM e do Comércio. Contudo, as causas laborais eram resolvidas no Tribunal do Trabalho de Viana do Castelo.
Ao propor uma nova organização na instância central do Tribunal Judicial do Distrito de Viana do Castelo (TJDVC), a DGAJ assegurava a Secção Cível e a Secção Criminal, ambas com sede na cidade de Viana do Castelo e com competência territorial distrital.
No âmbito da competência especializada, o Ministério da Justiça confirmava a Secção do Trabalho em Viana do Castelo, tendo esta uma competência territorial distrital. A DGAJ sinalizava igualmente a Secção de Família e Menores em Viana do Castelo, com semelhante área de competência territorial.
Acerca do volume processual expectável subsistente à referida especialização, foi presumido, no contexto da comarca de Paredes de Coura, o movimento de 164 processos de matéria cível (envolvendo 72 execuções e 92 outros processos) e de 59 da área criminal, perfazendo 223 processos, o que constitui, para a DGAJ, “um volume processual muito reduzido”, a exemplo do que também se verificava em Melgaço.
Na mencionada publicação da Direcção-Geral da Administração da Justiça, em Janeiro de 2012, afirma-se que a “população residente neste distrito sofreu uma redução de 2,13% nos últimos 10 anos”, atendendo aos dados preliminares dos Censos 2011 (Recenseamento Geral da População e Habitação de 2011); e que o “município onde se verificou o maior decréscimo foi o de Melgaço, com uma diminuição de 8,09%”, enquanto no concelho de Vila Nova de Cerveira se observou “o maior crescimento […], com um aumento de 5,03%”.
Ao ter em conta vários factores, como o movimento processual e a evolução demográfica, incluindo as instalações tidas como adequadas, a DGAJ fundamentava a extinção de dois tribunais no distrito de Viana do Castelo: em Melgaço e em Paredes de Coura. Porém, só a comarca de Paredes de Coura seria extinta com a reforma implementada a 1 de Setembro de 2014, ao abrigo da Lei da Organização do Sistema Judiciário, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março.
A DGAJ sublinhava, em Janeiro de 2012, que a “comarca de Paredes de Coura apresenta valores inferiores, quer de movimento processual quer de população, relativamente à comarca de Vila Nova de Cerveira”. No que concerne à evolução demográfica, na então última década – seguindo os dados preliminares dos Censos 2011 –, apurou-se que “na comarca de Paredes de Coura existiu uma diminuição de 3,34% da população, sendo que na comarca de Vila Nova de Cerveira houve um acréscimo de 5%”, registava a Direcção-Geral da Administração da Justiça, esclarecendo: “Quanto ao universo populacional das duas comarcas, o mesmo é repartido em partes iguais.”
.
Comparação das instalações dos tribunais
Outro aspecto tido em conta pela DGAJ foi o das instalações. Para aquela entidade, ambos os tribunais dispunham de instalações adequadas. Contudo, notava que “o edifício do tribunal de Vila Nova de Cerveira é de construção recente e com espaços amplos, a sua propriedade é do Estado Português, enquanto o edifício do Tribunal de Paredes de Coura é da propriedade do Instituto de Gestão Financeira e Infraestruturas da Justiça” (actual IGFEJ – Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça).
Na mesma altura, tendo em atenção a situação descrita, a DGAJ – depois de consultar o serviço ViaMichelin – considerava existirem “bons acessos rodoviários entre Paredes de Coura e Vila Nova de Cerveira”, calculando que seriam necessários 41 minutos para percorrer os 26 quilómetros de distância.
Para a autarquia dirigida por Vítor Paulo Pereira, “a rede de transportes públicos existentes em Paredes de Coura é escassa e condiciona a mobilidade, quer no território [quer] nas ligações intermunicipais”. Especificando, existe “apenas uma carreira que faz a ligação a Valença e que parte da vila de Paredes de Coura”. Nestas circunstâncias, os habitantes “de qualquer das freguesias têm de se deslocar até à vila e daí é que têm transporte público para Valença”, registava ainda a edilidade courense.
Se considerarmos o anexo do documento Indicadores de A[c]tividade nos Arquivos dos Tribunais 2014, publicado pela DGAJ, em Março de 2015, vemos que, na Comarca de Viana do Castelo, ao ser encerrada a instância de Paredes de Coura, o seu arquivo, referente ao ano de 2014, foi transferido para o Núcleo de Valença, e que ocupava uma extensão de 225 metros de prateleiras e uma extensão documental com 148 metros, notando-se um saldo positivo de 77 metros. O mencionado relatório não assinala o total de processos eliminados e remetidos para o arquivo distrital, entre 2003 e 2014.
A câmara de Paredes de Coura governa o município local, ultimamente eleita através da lista do Partido Socialista (PS), com a particularidade de, na prática e até às recentes eleições autárquicas, não ter tido representação da oposição política neste órgão executivo, considerando a quase hegemonia do PS nos penúltimos resultados eleitorais.
“Seria um concelho condenado a perder vitalidade”
“O meu concelho seria um concelho, como muitos, condenado a perder vitalidade e energia, se nos refugiássemos no determinismo da geografia ou no estigma da interioridade”, começa por declarar Vítor Paulo Gomes Pereira, em entrevista ao sinal Aberto, na manhã de 5 de Agosto, num vigilante período de preparação da campanha eleitoral, que iria decorrer de 14 a 24 de Setembro. Eleito pelo PS, em 2013 e em 2017 (alcançando, então, o pleno no sufrágio que o confirmou no segundo mandato), o nosso entrevistado recandidatou-se novamente à presidência da Câmara Municipal de Paredes de Coura, nas autárquicas de 26 de Setembro de 2021, tendo a candidatura socialista obtido 65,81% e, assim, conseguido quatro lugares no executivo; enquanto a lista da coligação PPD/PSD.CDS-PP ficou com 20,84% dos votos e, apenas, um mandato atribuído. Recordando um texto posteriormente publicado no suplemento de um diário de referência nacional, da autoria de Valter Hugo Mãe, no qual o escritor realça que gosta de ser livre, “como uma consciência livre que pondera sobre pessoas mais do que sobre regimes e ideologias que se procuram impor”, confirmamos a impressão com que ficámos do autarca Vítor Paulo Pereira, que nos recebeu com as “portas bem abertas” para falarmos sobre os impactos locais do novo mapa judiciário.
Se, para o texto encomiástico de Valter Hugo Mãe, o seu amigo autarca, “em Coura, é das almas mais bonitas que Deus inventou”, nós, que não o conhecemos – como ele – há vinte anos, encontrámos um homem para o qual, pelo que parece, a política fará “esperar dos outros a mesma boa-fé e beleza, quando nos outros existe tanto quem desistiu e optou pela simples ganância”.
E não lhe vou declarar a morte, como o Rui Reininho declara a Morte ao Sol”, expressa o autarca, sustentando: “Se não acreditássemos que é a criatividade, é a imaginação e é a capacidade de trabalho que transforma os territórios, bem como a criatividade das pessoas e não o chão que pisamos, obviamente, estaríamos, como em muitos concelhos, a refugiar-nos no discurso da geografia, a pedir piedade do Estado e sempre a reclamar que nos acharíamos afastados de Lisboa.”
Embora não queira fomentar qualquer “hostilidade a Lisboa”, a seu ver, “às vezes, merecida e necessária”, para o político local e doutorado em História Contemporânea, interessa, “sobretudo, criar uma nova centralidade”. “E o que aconteceu, nestes últimos tempos, é que apostámos muito no emprego e na indústria, e os resultados são visíveis”, argumenta.
“Quando nos fecharam o tribunal, ainda falei com a ministra Paula Teixeira da Cruz e apercebi-me que o processo do tribunal de Coura era uma coisa muito estranha, não no sentido de que houve uma cabala… Mas houve algo de estranho, houve!”, frisou o autarca, adiantando ter também havido uma proposta de integração do Tribunal de Paredes de Coura na Instância Local de Valença, perante a qual o executivo municipal reiterou a sua posição de total discordância.
.
Números do movimento processual do tribunal
Nessa oportunidade, com base na informação estatística oficial, a edilidade apresentou, como argumento, os números do movimento processual do tribunal courense, entre 1 de Janeiro de 2012 e 7 de Dezembro de 2012, relativamente às áreas de Justiça Cível, Justiça Penal, Justiça Tutelar e Instrução Criminal. Assim, em 2012, entraram 353 processos e findaram 380 processos. Antes de 1 de Janeiro, registava-se 434 processos pendentes e depois de 7 de Dezembro de 2012 ficaram 408 processos pendentes.
No que respeita ao ano de 2011, verifica-se (na estatística oficial apreciada pela edilidade) um movimento processual referente ao período de 1 de Janeiro a 31 de Dezembro, no qual entraram 348 processos e findaram 336. Note-se que, antes de 1 de Janeiro de 2011, havia 423 processos pendentes.
Diga-se, ainda, que foi registou um aumento do número de processos entrados no Tribunal de Paredes de Coura, representando um acréscimo de 1,5% no ano de 2012, comparando com o ano anterior.
“Eu tenho essa informação e posso revelá-la”, insiste Vítor Paulo Pereira, observando: “Utilizaram, muitas vezes, os critérios dos 250 processos para fechar tribunais. Nós fechámos com 244 ou 246 processos [segundo a DGAJ, como já referimos, foram 223 processos]. E houve concelhos – como Oleiros e Serpa, entre outros – que não fecharam, apesar de não terem cumprido os critérios. Ou seja, eles [o Ministério da Justiça, através da DGAJ] tinham critérios que foram utilizando, não diria que de acordo com a cor política, mas com alguma penumbra.” Porém, o autarca não põe de parte “a influência política” nestas decisões.
A este respeito, o autarca afirma ter conhecimento de “certas comarcas que sabiam já das intenções da reforma com alguma antecedência e que os advogados receberam informações da Ordem de que estavam no limite do fecho. E, então, eles fizeram litigância de forma artificial para ultrapassar o volume de 250 processos”.
“Nas primeiras entrevistas que dei, logo após o fecho do tribunal, num período de muita melancolia e de muito desânimo, nós éramos vistos como um grupo de rapazes que tinha chegado ao poder sem experiência política, com muita ilusão e muito sonho”, refere o autarca, realçando: “Chegámos aqui e fecharam-nos o tribunal!” “Nessa altura, quando já estávamos a captar investimento, muitos disseram que até éramos boas pessoas, mas que não tínhamos gordura política e não tínhamos influência nenhuma”, recorda o edil de Paredes de Coura, que terá declarado muitas vezes: “Se o Estado fugir do território, nós ficamos cá!” Nessa atitude, o então jovem executivo municipal retorquia: “O Estado fecha-nos o tribunal e nós abrimos fábricas, porque estamos cá para durar. E, se o Estado não acredita em nós, nós acreditamos no território.”
Proposta “sem” ganhos de eficiência
Em desacordo com a proposta governamental de encerrar o Tribunal de Paredes de Coura, o executivo camarário presidido por Vítor Paulo Pereira (naquela época, no seu primeiro mandato) apelou para a sua revisão, não conseguindo “vislumbrar ganhos de eficiência para o erário público nem encontrar uma melhor resposta judicial para as populações”, além de considerar que não contribuía para “combater a morosidade do nosso sistema judicial”. “Ao invés, concorre para aumentar os tempos e as despesas de deslocação dos cidadãos e do próprio Estado”, sublinhava a edilidade local.
Nesse quadro, era defendida a manutenção em funcionamento do tribunal, “numa lógica de rentabilização das condições físicas existentes, de manutenção de uma relação de proximidade da justiça para com os cidadãos”, considerando a inexistência de “soluções de grande mobilidade por transportes públicos”. Em contrapartida, a “mobilidade dos profissionais da Justiça, na razão das necessidades, é, pois, mais sensata e mais racional do ponto de vista da economia, bem como assegura, com maior cuidado, um melhor e mais fácil acesso à Justiça”.
Sob a perspectiva dos impactos socioeconómicos locais dessa decisão política, para Vítor Paulo Pereira, “não há uma relação tão directa entre o encerramento dos tribunais e o afastamento dos empresários”. Porém, o autarca pensa que “a soberania do Estado – atendendo a que os tribunais são órgãos de soberania – tem de estar no território”.
“Até percebo que, nessa altura, no contexto da Troika, houve pessoas que, muitas vezes, sem conhecimento da realidade, obrigavam a reformar. E, então, era preciso mostrar reformas, reformas e reformas, num contexto de muita pressão. Muita gente não imagina a pressão sobre um país que é intervencionado pelo FMI [Fundo Monetário Internacional]”, expõe o edil minhoto, referindo-se à leitura do livro de memórias de Fernando Henrique Cardoso, obra em que o político brasileiro dá conta da pressão que [as entidades credoras internacionais] faziam para reformar a qualquer custo, com cortes orçamentais cegos. Daí que, praticamente citando o antigo presidente do Brasil, Vítor Paulo Pereira também defenda que “os empréstimos se pagam com dinheiro; e não com fechos de fábricas, com desemprego e com desânimo social”.
Ao ter sido fechado o tribunal courense, o autarca não encontra uma relação directa com a eventual fuga de empresários. No entanto, julga que “é uma desqualificação e um sinal de que o Estado não acredita no território, abandonando-o”, quando “deveria ser o principal impulsionador para fixar as pessoas”. “O Estado não tem de fazer o trabalho da Câmara, mas deve ajudar na vitalidade do território”, salienta o autarca, cujo curso de mestrado em História incidiu na área de especialização em Cultura e Poderes.
“Encerraram 20 tribunais! Era esse o prejuízo?”
Surpreendido, Vítor Paulo Pereira chama a atenção para o “insólito”: “Encerraram 20 tribunais! Como se os 20 tribunais, de pequenas comarcas, fossem salvar uma reforma. Era esse o prejuízo?”
“A propósito, conto uma história…” – prossegue o nosso entrevistado – “Em 2014, um secretário de Estado meu amigo (que, como é normal, tinha preparado antecipadamente a reunião ministerial) passa-me a informação de que o Tribunal de Paredes de Coura [o que, segundo o autarca, foi confirmado por um jornalista do desaparecido Diário Económico, que esteve numa conferência de imprensa, nesse âmbito] não seria encerrado. Contudo, passados dois dias, em Conselho de Ministros, fecharam-nos o tribunal.”
Refira-se que, a 20 de Fevereiro desse ano, o Conselho de Ministros (no XIX Governo Constitucional) aprovou o decreto-lei que definiu o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais e que regulamentou a Lei da Organização do Sistema Judiciário. Meses depois, a 1 de Setembro, entrava em vigor a nova reorganização judiciária, que dividiu o País em 23 comarcas. Por conseguinte, dos 311 tribunais em funcionamento, 20 fecharam as portas e 288 foram desqualificados.
“A importância que atribuímos ao encerramento do tribunal não foi só devida a sentimentos de orgulho. Foi, sobretudo, porque desqualificaram o território e afastaram a justiça dos cidadãos. Até podem falar do caminho da especialização, mas utilizaram a reforma, primeiramente, com critérios económicos, esquecendo-se que os tribunais não são hospitais, pois não têm equipamentos de Imagiologia nem de diagnóstico valiosos. Com os cerca de 11 mil euros de despesas anuais, o tribunal, comparativamente, não constituía um considerável peso na despesa do Estado. E nós já fazíamos a manutenção!”, confirma o presidente da Câmara Municipal de Paredes de Coura.
Sobre os custos de funcionamento e com os recursos humanos, o orçamento anual deste tribunal era de 11 mil euros, “não contemplando qualquer encargo com a renda do imóvel, pois pertence ao Instituto de Gestão Financeira e Infraestuturas da Justiça”, onde também funcionam outros serviços públicos, como a Conservatória de Registo Civil, Predial, Comercial e Balcão Casa Pronta, conforme assinala o mesmo documento, sobre o qual se fundamentou a contestação desta autarquia, em pleno Alto Minho, relativamente à extinção da antiga comarca.
No que respeitava aos recursos humanos, a edilidade dava conta de “quatro funcionários ao serviço do Tribunal de Paredes de Coura”. No entanto, como já aludimos – acolhendo informação reportada a 16 de Junho de 2011 (sinalizada pela DGAJ) –, a comarca courense garantia um quadro legal de cinco oficiais de justiça, todos em exercício de funções. No mesmo documento emitido pela autarquia, lemos que, uma vez por semana, o secretário de justiça de Valença se deslocava a Paredes de Coura para efectuar serviços de contabilidade; e que estavam afectos ao tribunal local um juiz e um procurador, sem regime de exclusividade, na medida em que estes profissionais exerciam funções no Tribunal de Vila Nova de Cerveira e se deslocavam, uma a duas vezes por semana, ao município vizinho.
Quanto à desqualificação do território relacionada com o fecho do tribunal, “as pessoas sentiram que a reforma, em vez de as aproximar da justiça, afastou-as ainda mais”, assevera Vítor Paulo Pereira, especificando: “Tinham de ir daqui para Valença, com horários dos transportes públicos que, no mundo rural, estão completamente desajustados e são incompatíveis com a vida destes cidadãos”.
“Por isso, fomos a Lisboa manifestar-nos várias vezes e mostrámos o nosso descontentamento”, reforça o autarca, que pensava haver “condições para o tribunal continuar a existir”. Já em Abril de 2014 (no dia 28), a Câmara Municipal de Paredes de Coura tinha emitido um comunicado conjunto, com a Ordem dos Advogados (OA), no qual expressava “o veemente repúdio pelo novo mapa judiciário”.
“Uma marca histórica de Paredes de Coura foi a criação da comarca, em 1875, por causa deste senhor que está aqui”, disse o autarca, apontando para o retrato do conselheiro de Estado Miguel Dantas, que “foi muito cedo [com 14 anos] para o Brasil e, ao regressar [em 1870], foi deputado e par do Reino”. De facto, Miguel Dantas Gonçalves Pereira, natural da freguesia de Formariz (actual União de Freguesias de Formariz e Ferreira), também chefiou o executivo de Paredes de Coura, entre 1882 e 1895, procurando desenvolver e consolidar politicamente o concelho.
Com a reactivação dos tribunais em 2017 e, posteriormente, com o Decreto-Lei n.º 38/2019, de 18 de Março, Paredes de Coura passou a ter um juízo de competência genérica, com juiz próprio ou residente. O Conselho de Ministros (do XXI Governo Constitucional), através deste diploma, alterou o mapa judiciário, criando mais juízos especializados em algumas regiões do País onde a oferta era considerada “insuficiente”, como então anunciava a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem. Nessa oportunidade, na Comarca de Viana do Castelo, foram extintos o Juízo de Competência Genérica de Ponte de Lima e o Juízo de Proximidade de Paredes de Coura, sucedendo-lhe uma instância de competência genérica, como aludimos.
“Na actualidade, o juiz já não é partilhado com Vila Nova de Cerveira”, clarifica Vítor Paulo Pereira, acrescentando que, “antes da reforma judiciária, o juiz vinha a Coura apenas dois dias por semana”. “As coisas, agora, estão a funcionar bem; e até melhoraram”, assegura o líder autárquico, confirmando outras condições de acessibilidade no edifício, atendendo também às pessoas com deficiência.
Interrogado sobre as marcas que ficaram, localmente, do período em que o tribunal esteve fechado, o presidente desta autarquia minhota responde que, por exemplo, “os advogados viram reforçada a importância de defenderem os direitos das pessoas”. “Como tudo está ligado à economia, a vinda de mais empresas implica uma maior dinâmica local e também cria estímulo para que as pessoas se fixem em Paredes de Coura”, frisa o edil, satisfeito com o facto de o seu município, logo em 2015, “ter aumentado as exportações em cerca de 700%”. “O que acabou por ser importante para exercermos influência política e mostrarmos que merecíamos o tribunal”, considera, reafirmando que “o tribunal cria orgulho e afirmação do próprio território”. “O lado simbólico dos tribunais é mesmo muito relevante, provando que o Estado não abandona as pessoas, neste contexto de sangria demográfica”, conclui o socialista Vítor Paulo Pereira, que (depois de nos prestar declarações) foi reeleito para um último mandato no executivo municipal de Paredes de Coura.
.
Populares revoltaram-se contra o encerramento do tribunal
“As pessoas revoltaram-se contra o encerramento do tribunal de Paredes de Coura, alegando a dificuldade de transporte para [a Instância Local de] Valença”, confirma-nos um cidadão, enquanto acompanha as manobras de um serviço camarário, no centro da vila.
Quem tinha de pedir um registo criminal, de resolver alguma questão ou de atender a uma qualquer diligência judicial via-se, praticamente, obrigado a fazer uma viagem de táxi, se não dispunha de carro próprio para percorrer mais de vinte quilómetros de distância. “Isso era, de facto, muito complicado para os idosos”, refere Domingos Rodrigues Peixoto, que, no entanto, não se apercebeu de grandes impactos económicos e sociais com a nova reforma judiciária avançada, concretamente, a partir de Setembro de 2014.
“Não sei explicar, até porque não sei o trabalho que o tribunal tem. Não posso dizer grande coisa sobre isso!”, confessa este munícipe courense, assinalando que “fechar um tribunal é, sempre, uma perda”. “Depois de ter estado aqui tantos anos, representa uma perda para a população”, repete Domingos Peixoto, observando: “No entanto, parece-me que, pouco depois, ainda fizeram aqui alguns julgamentos”.
A seu ver, actualmente, “o tribunal está a funcionar bem”. Reactivada como juízo de competência genérica, a antiga comarca de Paredes de Coura reforça o seu papel protector dos direitos e garantias dos cidadãos locais e reaproxima-os da justiça.
.
“Um retrocesso civilizacional para a população deste município”
A ex-ministra Paula Teixeira da Cruz foi, para o actual delegado da Ordem dos Advogados (OA) em Paredes de Coura, “uma conquistadora das grandes sociedades de advogados e procurou levar os litígios para esses pólos”. “A Paula Teixeira da Cruz é uma cruz para a Justiça”, ironiza o causídico courense Carlos Sousa Barbosa, conotando-a como uma “daquelas pessoas a quem a Justiça não fica a dever nada”.
Na opinião deste advogado, o encerramento das 20 antigas comarcas, com a reforma da justiça conduzida pelo XIX Governo Constitucional, ao abrigo do Memorando de Entendimento e da vigência do programa de assistência económica e financeira, “não iria, de forma nenhuma”, ter um notório impacto no orçamento nacional. Ou seja, a ideia de uma maior contenção orçamental nos gastos com o funcionamento dos tribunais não fazia sentido com a extinção dessas comarcas, nem se percebia, de facto, uma directa racionalidade económica. “Lembro-me que, em Paredes de Coura, a despesa mensal do tribunal rondava os mil euros”, verifica Carlos Sousa Barbosa, reconhecendo tratar-se de “uma verba absolutamente ridícula”. Como tal, “não era, evidentemente, o critério económico que estava em cima da mesa”.
Por conseguinte, o representante local da OA pensa que as transformações na organização judiciária e no sistema judicial só “podem ter dois propósitos”. Primeiro, “o município de Paredes de Coura tem sido governado por pessoas ligadas ao Partido Socialista e isto foi uma machadada que o, então, Governo central quis dar à sua população”. Por outro lado, “parece que havia, aqui, também o interesse, por parte das grandes sociedades de advogados (e a senhora ministra era sócia de um desses escritórios de Lisboa), de levarem para os pólos do Litoral aquilo que ainda restava de dignidade a uma população como a de Paredes de Coura: a Justiça”.
“Isso foi, visivelmente, um retrocesso”, diz o jurista Carlos Sousa Barbosa, repetindo tratar-se de “um retrocesso civilizacional para a população deste município”. O fecho do tribunal local “nunca foi aceite” e, como salienta o mesmo defensor de causas, “felizmente, a ministra Francisca Van Dunem teve a capacidade de retroceder e de reajustar o mapa judiciário, fazendo justiça à Justiça de Paredes de Coura”.
“A população tinha de se deslocar constantemente para Valença e para Viana do Castelo, a fim de tentar resolver os litígios judiciais do dia-a-dia, como um divórcio, uma regulação das responsabilidades parentais ou uma partilha de bens”, menciona o nosso entrevistado, considerando representar “um incómodo enorme, num território em que a rede de transportes públicos é deficitária”.
“Imaginemos um processo litigioso, que acontece muito, relacionado com propriedades e com águas – uma das matérias tradicionais –, em que o juiz tinha de se deslocar a Paredes de Coura e também nós tínhamos de voltar a Valença para dirimir aquele litígio, quando no nosso tribunal dispúnhamos de instalações adequadas”, realça Carlos Sousa Barbosa, sublinhando que, “já na altura, o tribunal de Coura apresentava melhores condições do que aquelas que encontrávamos nos tribunais para onde íamos decidir os litígios das pessoas de Paredes de Coura”. “Era absolutamente paradoxal, não fazia sentido nenhum!”, expressa o delegado local da OA.
Ao nível dos impactos ou marcas sociais daquela decisão política e judiciária, o mesmo causídico assegura que envolvem sempre “um decréscimo económico”, principalmente na vida dos cidadãos mais necessitados e idosos. “Quer sob o ponto de vista económico quer simbólico, o impacto é gritante”, diz Carlos Sousa Barbosa. “Particularmente, no município de Paredes de Coura (que, ao longo dos anos, tem tido um investimento estrangeiro assinalável), como é que eu consigo explicar a um empresário espanhol ou francês que vai investir milhões de euros numa empresa, mas não encontra aqui um tribunal para decidir os seus litígios?”, questiona.
“O Estado não pode estar a demitir-se daquilo que é mais básico e que tem de dar às suas populações: a justiça”, adverte o advogado courense, denunciando que, neste meio tempo, “o acesso à justiça se tornou muito mais oneroso”. No contexto do encerramento dos tribunais, importa também saber “quantas pessoas tentaram (ou não) resolver, por si, os seus próprios conflitos”. “É perfeitamente inadmissível! Houve ofensas à integridade física, ameaças e injúrias e as pessoas não avançaram para tribunal por causa dos custos e da morosidade que esta mudança, claramente, acarretou. Todavia, Paredes de Coura tem hoje a justiça que merece!”, reconhece o mesmo advogado.
.
07/10/2021
.
………………………
.
A SEGUIR:
Fazer justiça nas terras do Douro: Murça, Sabrosa e Mesão Frio
.
*Ao longo das próximas semanas, no jornal sinalAberto, continuaremos a desenvolver o dossiê com o título genérico “Justiça: o que não se lê no mapa”, no âmbito das Bolsas de Investigação Jornalística 2020, atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian.