Justiça: o que não se lê no mapa (4)*
Fazer justiça nas terras do Douro: Murça, Sabrosa e Mesão Frio
Vila Real foi o distrito do País mais afectado pelo encerramento de tribunais. Além de Boticas, as comarcas de Murça, de Sabrosa e de Mesão Frio tiveram ordem de encerramento, em Setembro de 2014, enquanto a de Mondim de Basto seria transformada numa secção de proximidade.
O advogado Daniel Faceira, ex-vereador na Câmara de Murça, diz que o “avanço do mapa judiciário demonstrou uma profunda imposição aos cidadãos de algo que os mesmos nunca pretenderam – a administração da justiça noutro território que não o do seu município –, pelo que foi mais do que precipitado, foi tirano e profundamente atentatório da honra e dignidade dos cidadãos atingidos”.
Para a delegada da Ordem dos Advogados em Sabrosa, Teresa Pedro, foi impactante o afastamento da Justiça: “Nessa altura, as pessoas viram a Justiça muito afastada, até a nível financeiro, devido ao aumento das custas processuais e das deslocações acrescidas. Logo, desistiam das causas.”
“Antes de qualquer alteração ao mapa judiciário, o tribunal de Mesão Frio existia efectivamente. Era uma comarca na plenitude das suas funções. Ou seja, tinha as competências normais de um tribunal de ingresso ou de pequena instância”, declara o advogado Nuno Almeida Machado, criticando: “Depois das alterações que fizeram, com o novo mapa, nós deixámos de ter tribunal, passando este a ser quase um julgado de paz”.
Na transição entre as regiões duriense e transmontana, no distrito de Vila Real, o município de Murça (cuja instância deveria ser inserida na então nova circunscrição do Médio Douro, ao abrigo da anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, se o segundo executivo de José Sócrates não tivesse decidido suspender o alargamento do respectivo mapa judiciário e se o sucedâneo Passos Coelho também não tivesse limitado a sua prossecução) é igualmente afectado pela diminuição da população.
Em 2001, este concelho tinha 6.752 residentes, mas à data dos Censos 2011 registava 5.954 pessoas (porém, os dados finais do Instituto Nacional de Estatística indicavam 5.952 indivíduos). Ou seja, passou a ter menos 798 habitantes (com uma mudança negativa de 11,82%). E essa propensão é visível no período de 2010 a 2019, tendo a população local diminuído de 6.004 para 5.472 pessoas.
Consultando os resultados preliminares na plataforma de divulgação dos Censos 2021, ficamos a saber que a variação da população residente no concelho de Murça, entre 2011 e 2021 (em que se registam 5.249 habitantes), tem uma tendência negativa de 11,8%, o que implica a perda municipal de 703 pessoas, nos últimos dez anos.
Se atendermos aos aspectos organizativos e aos recursos humanos, verificamos que o Ministério da Justiça tinha agregado as comarcas de Murça e de Sabrosa, ao abrigo da Portaria n.º 412-D/99, de 7 de Junho. Assim, os respectivos tribunais eram de competência genérica e, segundo informação que se reporta a 16 de Junho de 2011, partilhavam um quadro legal com um único juiz, o qual exercia em ambas as comarcas. Igual situação se verificava com um único magistrado do Ministério Público (MP), que respondia às necessidades dos dois tribunais. No que respeitava aos oficiais de justiça, o quadro legal atribuído à comarca de Murça admitia cinco destes profissionais, embora estivessem seis elementos em exercício de funções. Por sua vez, a comarca de Sabrosa acolhia quatro oficiais de justiça no quadro legal, todos a exercerem localmente.
Ao dar conta do movimento processual e da média das entradas, entre 2008 e 2010, a Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) registava 210 processos na comarca de Murça, os quais se distribuíam, por ordem decrescente, da seguinte maneira: 73 execuções, 35 processos no contexto da Família e Menores (FM), 33 processos de média instância cível, 26 processos de média instância criminal, 17 processos de pequena instância cível e 12 de grande instância cível, bem como de nove processos de pequena instância criminal e, apenas, de um processo de grande instância criminal. Não foram assinalados quaisquer processos no âmbito do Comércio.
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Resposta judiciária na antiga comarca de Murça
Em Janeiro de 2012, a resposta judiciária na comarca de Murça abrangia as áreas Cível, Penal, de FM e do Comércio, sendo então encaminhadas as divergências laborais para o Tribunal do Trabalho de Vila Real.
A nível da instância central do Tribunal Judicial do Distrito de Vila Real (TJDVR), a DGAJ avançou com uma proposta de organização que assegurava a Secção Cível e a Secção Criminal, ambas com sede na cidade de Vila Real e com competência territorial distrital.
No que concerne às secções de competência especializada, o Ministério da Justiça (MJ) garantia a existência da Secção do Trabalho em Vila Real, tendo esta uma competência territorial distrital. Por sua vez, a Secção de Família e Menores em Vila Real tinha competência territorial para os concelhos de Alijó, de Mondim de Basto, de Murça, de Sabrosa, de Vila Pouca de Aguiar e de Vila Real. A este propósito, a DGAJ anotava que a deslocação entre os municípios de Murça e de Vila Real, a uma distância de 36 quilómetros, demoraria 34 minutos. Porém, à Secção de Execuções, embora sediada em Chaves, era-lhe confirmada competência territorial para todo o distrito.
No envolvimento das instâncias locais do TJDVR, o volume processual expectável subsistente à dita especialização, foi suposto, no seio da comarca de Murça, o movimento de 50 processos em matéria cível e de 35 na área criminal, totalizando 85 processos, o qual constitui, para a DGAJ, “um volume processual muito reduzido”.
Conforme informava o MJ, além do Julgado de Paz em Santa Marta de Penaguião e do Posto de Atendimento ao Cidadão (PAC) em Chaves, igualmente no âmbito do TJDVR, os concelhos de Alijó, de Murça, de Peso da Régua e de Vila Real dispunham de postos de atendimento dos Julgados de Paz.
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Argumentos para a extinção da comarca
Consequentemente, no Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária, publicado em Janeiro de 2012, a DGAJ sugeria a extinção da comarca de Murça, a par do encerramento de mais três tribunais neste distrito: em Boticas, em Mesão Frio e em Sabrosa. A proposta de extinção da comarca de Murça fundamentava-se no facto de apresentar “valores, quer de movimento processual quer de população, inferiores relativamente à comarca de Alijó”, considerando que o tribunal deste município dispunha de “instalações adequadas”. Ao informar que ambos “os edifícios são da propriedade do IGFIJ, I.P.” (actual IGFEJ – Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça), a DGAJ argumentava que “o município de Murça dispõe de um posto de atendimento de Julgado de Paz” e que “existem bons acessos rodoviários entre Murça e Alijó”.
Curiosa foi a posterior intervenção do vereador social-democrata Pedro Manuel Alves Barroso Magalhães, na reunião ordinária realizada no dia 6 de Março de 2015: “Chegou-me ao conhecimento que iria haver obras no tribunal de Alijó, sendo que as contas seriam repartidas pelos municípios abrangidos pelo tribunal, sendo que a Câmara Municipal de Murça teria que assegurar parte dos custos a realizar. Pergunto se é verdade?” (sic) Sobre esta questão, o então presidente da autarquia, o socialista José Maria Garcia da Costa, respondeu: “Não há qualquer conhecimento da parte do Município da realização de qualquer obra no referido tribunal e da repartição de custos pelos municípios abrangidos pelo tribunal de Alijó.”
Se consideramos o anexo do documento Indicadores de A[c]tividade nos Arquivos dos Tribunais 2014, publicado pela DGAJ, em Março de 2015, ficamos a saber que, também na Comarca de Vila Real, ao ser fechado o núcleo ou tribunal de Murça, o seu arquivo correspondente ao ano de 2014 – contrariamente ao que aconteceu com os arquivos dos núcleos de Boticas, de Mesão Frio e de Sabrosa, os quais foram guardados num armazém da instância de Vila Real – foi transferido para o Núcleo de Alijó, abrangendo uma extensão de 150 metros de prateleiras e uma extensão documental com 135 metros, de que ressalta um saldo positivo de 15 metros. O mesmo relatório menciona que o total de processos eliminados e remetidos para o arquivo distrital, entre 2003 e 2014, foi de 4.865 processos.
Em 17 de Outubro de 2012, a edição do Público noticiava que o então presidente da Câmara de Murça, o socialista João Fernandes – enquanto esperava “novamente uma acção concertada entre as várias autarquias afectadas” pela nova reforma da Justiça – lamentava que fechar os tribunais “é decapitar a simbologia do poder judicial no interior e fazer a Justiça regressar aos pelourinhos”, salientando que tal medida iria “reforçar a desertificação do interior”.
Ao consultarmos a acta da reunião ordinária da Câmara Municipal de Murça, realizada a 1 de Fevereiro de 2013 e presidida por João Luís Teixeira Fernandes (autarca que foi eleito, pelo PS, com maioria absoluta nas eleições autárquicas de 2001, de 2005 e de 2009), sabemos ter informado que, se o tribunal fechasse, seria “sempre mantido um funcionário para prestar atendimento aos cidadãos do Concelho”. Ainda sobre esta matéria, o antigo presidente da edilidade disse que a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) não descartava “a hipótese de promover nova manifestação”.
A este propósito, diga-se que sinalAberto tentou contactar, múltiplas vezes, o presidente da ANMP – o socialista Manuel Machado (que, nas recentes eleições autárquicas, voltou a recandidatar-se, mas que perdeu a possibilidade de iniciar um terceiro mandato, tendo já dirigido a Câmara de Coimbra entre 1990 e 2001, depois de, em 1993, ter ali exercido como vereador) –, o qual nunca se disponibilizou para prestar quaisquer declarações sobre os impactos da nova reforma judiciária e do respectivo mapa judiciário, especialmente nos municípios cujos tribunais estiveram encerrados durante mais de dois anos.
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ANMP reitera oposição ao projecto do mapa judiciário
Meses depois, a 23 de Outubro de 2013, a ANMP divulgou um comunicado reiterando “a sua mais profunda oposição ao projecto do mapa judiciário, o qual faz do direito de acesso à justiça, já difícil e oneroso, uma prerrogativa geográfica, em detrimento de um direito fundamental e inalienável dos Cidadãos”.
No mesmo documento, a ANMP manifestava que, com efeito, “a contínua penalização dos cidadãos, já tão flagelados e esquecidos, e das camadas mais desfavorecidas da população acentua-se com esta recomposição atomística e a conta-gotas de uma reforma desgarrada e ora vertida em anteprojecto de decreto-Lei, que denega, verdadeiramente, aos Cidadãos a justiça a que têm direito”.
Então, a ANMP comprometia-se a continuar “a bater-se, em todos e cada um dos Municípios afectados, contra o encerramento de serviços públicos essenciais às populações, custos justificados e inderrogáveis que uma verdadeira Democracia deve suportar se e quando pretenda efectuar uma verdadeira Reforma do Estado” (sic).
A 5 de Dezembro de 2013, o presidente da ANMP defendia, em Coimbra, a introdução de “racionalidade em toda a reforma da justiça”, insistindo na ideia de que o fecho de tribunais tinha de “ser repensado”. Nessa altura, depois de ter reunido com o ainda bastonário da Ordem dos Advogados (AO), António Marinho Pinto, e com a sua sucessora, Elina Fraga (a qual tinha sido recentemente eleita e que seria empossada no cargo a 10 de Janeiro de 2014), Manuel Machado sublinhava ser preciso concertar “soluções com os municípios portugueses”.
No referido encontro, foi reflectido “um problema que preocupa muito [a ANMP], que é o ímpeto de fecho de tribunais em diversos municípios do país”, o que, para o presidente – como dava conta o Diário de Notícias – constituía “uma matéria muito importante para a afirmação do Estado”, tendo em vista “a presença do Estado, que deve ser mantida”.
Na ocasião, o mesmo dirigente sustentou que a ANMP – enquanto entidade que se afirma na promoção, na defesa, na dignificação e na representação do Poder Local – “não partilha o ponto de vista de quem defende o encerramento de tribunais, em diversos sítios, como é sabido”, manifestando-se, então, “satisfeito por saber que também a OA contesta[va] essa orientação”.
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ANMP solidária com municípios ameaçados com fecho de tribunais
Na mesma oportunidade, o socialista Manuel Machado informou estarem a decorrer “reuniões de diversos municípios com o Governo, visando alertar para os perigos que decorrerão dos encerramentos que têm vindo a ser anunciados”, reforçando que “a ANMP é solidária com todos os municípios que estão ameaçados com o fecho de tribunais”.
Retomando a consulta das actas da edilidade de Murça, vemos que, na primeira reunião ordinária da Câmara Municipal (a 25 de Outubro de 2013) por si presidida, o recém-eleito José Maria Garcia da Costa (pelo Partido Socialista, que deixou de ter maioria absoluta no executivo) informava que a autarquia “recebeu, através da Associação Nacional de Municípios Portugueses[,] o Anteprojecto de Decreto-Lei que aprova o Regime de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, cuja principal alteração introduzida relativamente ao documento anterior, se relaciona com a manutenção dos tribunais de Melgaço e Oleiros e a criação de mais Secções de Proximidade”. Contudo, em “Murça nada se altera”, manifestava o presidente da edilidade, esclarecendo que, em relação àquele município transmontano, o documento então apresentado não registava “qualquer alteração”. Por isso, José Garcia da Costa declarava: “[…] esta autarquia não pode estar de acordo com o novo desenho da Reforma Judiciária proposto, contrapondo com os fundamentos já apresentados em deliberações e tomadas de posição anteriores”.
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“Prática governativa que não respeita as pessoas nem os territórios”
“Desta forma[,] continuaremos a assistir a uma prática governativa que não respeita as pessoas nem os territórios, impondo decisões que são autênticos mandatos de encerramento das terras do interior e do meio rural”, garantia o recém-eleito autarca murcense, adiantando que, perante tal constatação, “esta autarquia reserva-se o direito de vir a ado[p]tar medidas mais drásticas de protesto e manifestação de desagrado e sentimento de revolta da população deste concelho”. Refira-se que, sobre o mesmo assunto, a posição da edilidade foi unânime, no “sentido de encetar todos os esforços tendo em vista a manutenção do tribunal” no concelho.
Na primeira reunião ordinária da Câmara Municipal de Murça em 2014 (a 3 de Janeiro), a vereadora socialista Ana Paula Rodrigues da Cruz interveio dizendo que, a 27 de Dezembro, ficou “deveras surpreendida pela entrega de um documento na mesa da Assembleia Municipal precisamente pelo Deputado Dr. Daniel Faceira no qual apresentou alguma crítica ao procedimento do executivo especialmente na pessoa do Sr. Presidente da Câmara, com as atitudes tomadas em relação [à] extinção dos serviços de proximidade no Concelho de Murça”. Como consta na acta de 3 de Janeiro de 2014, a vereadora do PS, expressa que a sua “surpresa assentou exactamente” na condição de não poder “aceitar que cerca de 2 horas antes tivesse terminado uma reunião de trabalho na qual o Sr. Deputado [o advogado Daniel Faceira] esteve presente e que, na mesma foram tomadas decisões em consenso e em respeito por todos os grupos e todas as pessoas presentes, e depois no seguimento dessas decisões seja entregue um documento contradizendo as tomadas de posição dos representantes do PSD, nesse grupo de trabalho”.
Ao exercer o direito de contraditório, o vereador social-democrata Albertino José Castro Lousa esclareceu haver “uma comunhão de esforços e princípios face [à] extinção dos serviços locais de proximidade que devem ser preservados e salvaguardados”. Assim, este vereador do PSD reafirma que foi “este aliás o sentido decorrente do grupo de trabalho criado para esse efeito da decisão tomada pela Assembleia Municipal”.
“Quanto ao conteúdo do documento ele nada tem a [ver] com a matéria relativa à reunião do grupo de trabalho, mas surge na sequência do documento apresentado pelo Sr. Presidente da Câmara na reunião da Assembleia Municipal de 19/12/2013”. Ou seja, para o aludido vereador do PSD, o mencionado “documento não contradiz a tomada de posição[,] apenas se insurge com o facto de tratar em pé de igualdade serviços que potencialmente poderão vir a encerrar no curto médio prazo, merecendo os quais a nossa maior preocupação e repúdio, com outros que objectivamente funcionam que poderão eventualmente carecer de aperfeiçoamento mas que não vislumbra o seu encerramento” (sic). Entretanto, o outro deputado social-democrata, Pedro Barroso Magalhães, reiterou a posição do seu colega de partido.
Segundo é ainda registado na acta da primeira reunião ordinária da Câmara de Murça em 2014, o presidente do executivo frisou que, independentemente das análises e interpretações feitas ao documento apresentado por si à Assembleia Municipal de 19 de Dezembro do ano transacto, “o importante para o Município é que a discussão aconteceu, os responsáveis políticos assumiram em consenso e em compromisso”. Em consequência, o autarca socialista José Garcia da Costa congratulava-se com isso, na esperança de que, “no essencial”, houvesse união e determinação na edilidade “contra qualquer encerramento ou diminuição de serviços locais de proximidade”.
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Ofício dirigido ao chefe de gabinete da ministra da Justiça
Como consta no ofício dirigido, em 8 de Janeiro de 2014, ao chefe de gabinete da ministra da Justiça (o Ministério da Justiça – MJ – era, nessa época, dirigido por Paula Teixeira da Cruz, que tomou posse a 21 de Junho de 2011), a ANMP relembra que já tinha enviado ao MJ, em 7 de Novembro de 2013, o seu parecer sobre o anteprojecto de decreto-lei relativo ao regime de organização e funcionamento dos tribunais judiciais. “Informámos, então, da decisão dos municípios de solicitar a Sua Excelência a Senhora Ministra que, antes da tomada de qualquer decisão relativa a tal anteprojecto, fosse realizada uma reunião conjunta com os 47 Presidentes das Câmaras Municipais para cujos tribunais existia proposta de encerramento”, refere a ANMP, no ofício assinado pelo histórico socialista de Melgaço, Rui Solheiro, na qualidade de secretário-geral desta entidade.
Conforme relembrava ainda a ANMP, no mesmo ofício dirigido ao chefe de gabinete de Paula Teixeira da Cruz, esta estrutura associativa dos municípios portugueses tinha reafirmado, em 16 de Dezembro de 2013, “a necessidade de ser efectuada uma reunião com Sua Excelência a Ministra da Justiça, para tratamento da relevante problemática de reorganização judicial, solicitando, então, que […] fosse facultada a informação da data em que Sua Excelência a Ministra da Justiça poderia reunir com o Presidente e Vice-Presidente da ANMP”.
Dois dias depois, a 18 de Dezembro, decorreu “uma reunião técnica entre o representante da ANMP e o Grupo de Trabalho que nesse Ministério acompanha esta matéria”, como é contextualizado no mesmo ofício, registando-se que, em tal reunião, “o representante da ANMP salientou ao então Chefe do Gabinete de Sua Excelência a Ministra da Justiça a necessidade de ser realizada a reunião com os membros do Conselho Directivo da ANMP, tendo então o Dr. António Costa Moura informado que se procederia ao agendamento de tal encontro, o que não ocorreu até este momento”. Note-se que Costa Moura coordenou as negociações com a Troika (a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional) para cumprimento do Memorando de Entendimento na área da Justiça, tendo também presidido aos grupos de trabalho sobre a reforma do mapa judiciário.
No mencionado documento dirigido ao MJ, a ANMP declara que não é demais “sublinhar […] que a matéria em causa se revela de inegável interesse para os municípios e para as populações, razão pela qual a ANMP tem acompanhado este processo com especial preocupação”. Nesse sentido, a mesma entidade reafirmava “a necessidade da marcação de uma reunião com elementos do Conselho Directivo desta ANMP, bem como com os Presidentes das Câmaras Municipais para cujos tribunais existe proposta de encerramento”.
Insistente, o secretário-geral (Rui Solheiro) solicitava que “tais reuniões se possam realizar com urgência, antes de qualquer apreciação em Conselho de Ministros do Decreto-Lei relativo ao regime de organização e funcionamento dos tribunais judiciais”.
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Anúncio do encerramento do tribunal de Murça
Na reunião camarária de 7 de Fevereiro de 2014, o presidente José Garcia da Costa informou o executivo municipal, antes da ordem do dia, da aprovação, por parte do Conselho de Ministros, do mapa judiciário, no “qual está definitivamente inscrito o encerramento do Tribunal de Murça”.
Nessa ocasião, o autarca socialista anunciava que a “Câmara vai avançar” também “definitivamente com uma providência cautelar, além de outros procedimentos que aqui se possam gizar”. José Garcia da Costa disse ainda ter contactado os municípios de Sabrosa, de Boticas, de Armamar e de Mesão Frio, a fim de “reunir a [CIMDOURO – Comunidade Intermunicipal do Douro] para tomar uma posição em conjunto sobre o encerramento” (sic).
A comprovar “um ponto de consenso entre a Câmara Municipal e a Assembleia Municipal”, o vereador social-democrata Pedro Barroso Magalhães manifestou “o profundo desagrado com a decisão”. E que a providência cautelar deveria “ser sempre conciliada com outros organismos ([CIMDOURO], ANMP)”. Entretanto, o presidente da Câmara de Murça manifestava: “No dia 13 de [F]evereiro, dia de feira, podemos fazer uma concentração no Largo da Porca para informar a população”.
A propósito da manifestação marcada para 14 de Fevereiro de 2014 (sexta-feira), junto da Porca de Murça (monumento localizado no centro da vila e símbolo do concelho) o então presidente da autarquia (José Maria Costa) alegava que, por exemplo, “o número de processos existentes no tribunal de Murça excede os 250 por ano”. Conforme então divulgou a agência noticiosa Lusa, o edil socialista advertia que, com o encerramento do tribunal, todos os cidadãos e empresas de Murça que pretendessem recorrer à justiça teriam de passar a fazê-lo em Alijó, em Vila Real ou em Chaves, “acarretando com todos os custos de deslocação e suportando todos os inconvenientes que daí decorrem”.
Na mesma ocasião, José Maria Costa antecipava que a implementação do novo mapa judiciário iria levar ao encerramento do tribunal de Murça, o qual está instalado num edifício construído de raiz na década de 90 e que custou ao Estado 2,5 milhões de euros. Por isso, esta autarquia transmontana repudiava “veementemente” o fecho de serviços locais, com base “apenas em critérios economicistas que desprezam as mais elementares necessidades das pessoas” e “que não têm outro objetivo que não seja tornar ainda mais difícil e precária a manutenção da população no interior”.
Passados mais de dois anos da extinção, já em final do mandato do socialista José Maria Garcia da Costa, na reunião ordinária de 6 de Janeiro de 2017, é anunciada, antes da ordem do dia, a abertura do Juízo de Proximidade de Murça, tendo o presidente da autarquia referido: “Contamos com a presença da Sra. Secretária de [E]stado adjunta da Justiça que visitou Murça, Sabrosa e Mesão [Frio], assinalando a reabertura dos respectivos serviços. Deixamos um registo particular e uma nota ao governo por reabrir o tribunal[,] o que representa um momento marcante na história do nosso concelho.”
Na mesma sessão camarária, o vereador social-democrata Pedro Barroso quis associar-se às palavras de José Maria Garcia da Costa a respeito do Juízo de Proximidade, que, “depois do injustificável encerramento do tribunal de Murça, reabre”. “Assim, espero[,] como referiu[,] que este seja um primeiro passo que reaproximará alguns dos serviços prestados pelo poder central que entretanto foram sendo encerrados ou diminuídos nas suas funções”, comentou aquele vereador.
Meses depois, a 1 de Outubro, a presidência da edilidade fica nas mãos do economista Mário Artur Correia Lopes, eleito pelo PPD/PSD, por maioria relativa, com 47,82% dos votantes (o que permitiu à sua força política conseguir três mandatos no executivo municipal).
No quadro da nossa investigação jornalística sobre as repercussões da aprovação e da consequente aplicação do novo mapa judiciário (ao abrigo da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), importando, sobretudo, saber dos impactos do funcionamento da justiça no desenvolvimento económico e social do município de Murça, o edil social-democrata, apesar de várias tentativas em ocasiões diferentes, recusou sempre o agendamento de uma entrevista com o jornal sinalAberto, possivelmente mais preocupado com a dinâmica da campanha eleitoral. Neste meio tempo, Mário Lopes foi reeleito com maioria absoluta (pelo PPD/PSD, obtendo a confiança de 56,97% dos votantes), nas eleições autárquicas de 26 de Setembro de 2021. Ficamos, porém, sem saber o que pensa a propósito da organização do sistema judiciário e das alterações que terá observado em domínios como o acesso à justiça e o da própria orgânica judiciária no seu concelho.
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“A metodologia não foi correcta”
Na opinião do advogado Daniel Anjos Faceira, a metodologia utilizada para o encerramento, em 2014, de 20 tribunais, no âmbito do novo mapa judiciário “não foi correcta, porque não atendeu às especificidades e nem às necessidades das populações locais, baseando-se em critérios aritméticos (de processos existentes por habitante)”. Para o causídico, que foi vereador social-democrata e que integrou o grupo parlamentar do PSD na assembleia municipal desta autarquia transmontana, “o encerramento do Tribunal Judicial de Murça teve fortíssimo impacto no município”. “Sobretudo, indignação por parte das pessoas, quer pelo facto de lhes ser retirado o local de administração da justiça, quer ainda pelo aumento dos custos processuais, decorrentes das deslocações das partes e das testemunhas (inicialmente para Alijó e, depois, para Vila Real)”, declara Daniel Faceira ao sinalAberto.
Questionado sobre o índice de criminalidade nos municípios que ficaram sem tribunal, entre 1 de Setembro de 2014 e 1 de Janeiro de 2017, o nosso entrevistado refere não ter elementos documentais que lhe permitam “dizer se houve aumento ou diminuição da criminalidade durante o período de encerramento”. Todavia, parece-lhe “que os números da criminalidade se mantiveram muito similares aos já existentes, existindo um volume processual praticamente idêntico àquele que já existia antes do encerramento”.
Na perspectiva do mesmo causídico e assistente convidado da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), “o encerramento de alguns tribunais consubstancia, directa e necessariamente, um claro distanciamento da administração da justiça relativamente aos cidadãos atingidos por esse encerramento”. A seu ver, “é fundamental que a justiça seja feita no local onde os factos aconteceram e não em concelhos vizinhos, sob pena de se violar a legítima expectativa dos cidadãos quanto ao princípio da igualdade e da não discriminação, bem como quanto ao conhecimento efectivo do desfecho dos processos”. Ou seja, “as pessoas pretendem que a justiça se faça no respectivo território municipal, porque é aí que se repercutirão as decisões tomadas pelos tribunais”.
A respeito da reactivação do tribunal, ajustado às competências do Juízo ou Secção de Proximidade de Murça, o advogado Daniel Faceira pensa “que não existiu qualquer reactivação ou reabertura”. “Com a criação dos juízos de proximidade, o poder político procurou, acima de tudo, calar os cidadãos dos municípios atingidos, dizendo-lhes que a justiça voltou a ser administrada nos respectivos territórios”, reconhece, admitindo que, “na prática, tal não aconteceu”.
No que concerne “às diligências dos processos cíveis e criminais no Juízo de Proximidade de Murça, apenas aí são realizadas as audiências de julgamento; e desde que os senhores juízes o determinem, uma vez que não é legalmente obrigatório que tal aconteça”.
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Políticas de proximidade postas em causa
Por conseguinte, Daniel Faceira salienta que, “mesmo com a abertura de portas das instalações dos antigos tribunais, torna-se evidente que as políticas de proximidade – entre a justiça e os cidadãos – continuaram a ser postas em causa, dado que a administração da justiça continua a ser feita num tribunal adstrito a um município vizinho”.
Aludindo a eventuais pressões economicistas na concretização do mapa judiciário, o causídico sustenta que “o encerramento dos tribunais não trouxe qualquer poupança ao Estado”. “Com efeito, os funcionários judiciais e os magistrados que, habitualmente, exerciam funções nos extintos tribunais, foram recolocados noutros tribunais. No caso do antigo tribunal de Murça, o Estado não tinha de suportar qualquer custo decorrente da utilização das instalações, sobretudo porque o município de Murça se ofereceu para suportar o pagamento de todas as despesas”, confirma ao sinalAberto. “Seja como for, a justiça não se pode basear em critérios economicistas porque há valores fundamentais – certeza e segurança – que são postos em causa quando olhamos apenas para a questão da eventual poupança”, sublinha Daniel Faceira, actual docente no Departamento de Economia, Sociologia e Gestão da UTAD.
Nesta conformidade, o advogado de Murça (com residência em Vila Real) considera que “a reorganização do mapa judiciário serviu, apenas, para enaltecer o papel de alguns políticos, não tendo daí resultado qualquer benefício, nem para o Estado em geral, nem para os cidadãos em particular”. “A justiça é um sector particularmente sensível do ponto de vista social e não pode deixar de ser ministrada nos locais onde as pessoas residem, sob pena de se perder a sua identidade pessoal e histórico-social”, reforça o jurista, para quem o “avanço do mapa judiciário, em Setembro de 2014, demonstrou uma profunda imposição aos cidadãos de algo que os mesmos nunca pretenderam – a administração da justiça noutro território que não o do seu município –, pelo que foi mais do que precipitado, foi tirano e profundamente atentatório da honra e dignidade dos cidadãos atingidos”.
Quanto a uma eventual relação no aumento da desertificação dos municípios em face do encerramento, mesmo que temporário, dos tribunais, o nosso entrevistado diz que não pode afirmar que, por exemplo, “o aumento da desertificação no concelho de Murça se deveu ao encerramento do tribunal judicial”. “Todavia, tenho de referir que esse encerramento, a par de outras políticas centrais erróneas, poderá ter contribuído para o aumento da desertificação, sobretudo porque as pessoas se sentem desacompanhadas e discriminadas, preferindo residir num local onde têm acesso a todos os serviços públicos”, interpreta este advogado murcense.
“Parece-me que o pressuposto fundamental para a reorganização do mapa judiciário – melhoria da qualidade da justiça ministrada aos cidadãos – não foi tomado em consideração, pelo que o poder político descurou, em absoluto, as especificidades das pessoas e dos territórios abrangidos pelo encerramento”, expressa Daniel Faceira, relevando: “E quando se esquecem as pessoas, o resultado não será, obviamente, positivo.”
Nesse entendimento político e social, “o novo mapa judiciário prejudicou, sobretudo, os cidadãos residentes nos territórios cujos tribunais foram encerrados”. Porém, sob o ponto de vista deste advogado, “há também aspectos positivos; sobretudo, pela criação de um maior número de tribunais de competência especializada, os quais reduziram bastante a pendência processual, permitindo que as decisões sejam proferidas num período de tempo mais reduzido”.
“Entendo que a redefinição do mapa judiciário atingiu grande parte dos objectivos traçados pelo Ministério da Justiça”, adiantou o jurista, reconhecendo que “a pendência processual reduziu bastante e que os processos são agora resolvidos mais rapidamente”. “Todavia, importa que o Governo reabra os tribunais encerrados, para que funcionem como tribunais de competência genérica ou mesmo de competência especializada. Só assim é que os cidadãos passarão a valorizar mais a justiça”, comenta Daniel Faceira.
De facto, os tribunais reabriram as suas portas a 4 de Janeiro de 2017 (dois dias antes, algumas secretarias já tinham iniciado funções), como informa o Diário de Notícias, na edição de 24 de Janeiro desse ano. Assim, depois de o Governo (XXI Governo Constitucional, liderado pelo socialista António Costa) “ter conseguido fazer aprovar” a reactivação das 20 circunscrições extintas, em 2014, pela reforma do mapa judiciário, o que “desagradou a autarcas e às populações”, o Juízo de Proximidade de Murça foi o primeiro dos tribunais reactivados a realizar uma audiência, com 25 intervenientes.
Contudo, na óptica de Daniel Anjos Faceira, “a reorganização judiciária veio, em certa medida, pôr em causa o acesso à justiça por parte de alguns cidadãos”. “Com efeito, algumas pessoas, apesar de beneficiarem de protecção jurídica, pensam duas vezes antes de instaurarem qualquer processo, uma vez que não têm dinheiro para suportar as despesas de deslocação a um tribunal de um município vizinho”, elucida o advogado, especificando: “Sobretudo, aqui em Murça, há pessoas que mal têm dinheiro para comer, pelo que dificilmente vão instaurar processos cuja resolução ocorre em Vila Real, implicando despesas que exorbitam, manifestamente, do orçamento familiar”.
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“A justiça é transversal a todo o cidadão”
“Como cidadão com fortes ligações ao município de Murça e com um trabalho cultural aqui à volta – além de ser pai de uma jovem advogada, o que também me permite inteirar na lógica do Direito –, penso que a justiça é transversal a todo o cidadão, no seu pleno”, expressa o director artístico e encenador David Carvalho. Por isso, “efectivamente, o argumento dos custos está esbatido”, nota o responsável pelo grupo de artes e espectáculo Filandorra – Teatro do Nordeste, convidado pelo sinalAberto a falar dos impactos da nova reforma da justiça e da extinção da comarca de Murça. “Até agora, nós vemos que, dentro daquilo que é o racional e o normativo, a narrativa – mesmo no discurso político – é que aquilo que se poupa implicando, cada vez mais, desertificar o Interior, não é justo”, explicita David Carvalho, relevando: “De facto, o que isso pode trazer à economia não representa nada, na lógica do desenvolvimento do País, sobretudo agora, com as almofadas da Europa.”
Segundo este encenador e estudioso das artes cénicas, “seria bom retornar a modelos que aproximassem as pessoas do valor mais importante, que é o da justiça”. Ao admitir que “a justiça é cega”, falando de metáforas e indo buscar referências ao escritor e dramaturgo Gil Vicente, David Carvalho aludiu à peça emblemática Auto da Barca do Inferno ou Auto da Moralidade, que também já encenou, destacando as personagens do Corregedor e do Procurador, enquanto representantes da Lei que vão para o Inferno, acusados de se servirem da justiça em função de interesses particulares. “No caso do Corregedor, vem muito bem demonstrado um papel [social] agora em desuso, pois estamos na era da informática e das tecnologias da comunicação”, observa, alegando que “o factor de proximidade” constitui “um lado simbólico muito importante, principalmente, nas pequenas comunidades”.
Como constata o director artístico do Filandorra – Teatro do Nordeste, “os símbolos evoluem desde as grutas de Lascaux [complexo de cavernas, no Sudoeste da França, conhecido pela suas pinturas rupestres, as quais teriam sido pintadas entre 15.000 e 13.000 a.C.] ou dos homens primitivos do Côa [o Vale do Côa apresenta mais de mil rochas com manifestações rupestres, com predomínio das gravuras paleolíticas, feitas há cerca de 25.000 anos] até à simbologia de hoje, muito impregnada da narrativa do mundo audiovisual”.
Nesse contexto do simbólico, David Carvalho considera que “a presença do juiz ou de um corpo de justiça, no contacto directo e na proximidade, seria um pequenino luxo, mas também teria um efeito preventivo”. “Além de preventivo, penso que não é assim tão caro!”, expressa, privilegiando a condição da proximidade e da imediação: “Importa que a pessoa sinta que o seu pequeno burgo tem, realmente, a lógica da justiça próxima de si.”
“Esse elemento, parece-me, pode servir a identidade [comunitária] e a consciência de se lutar contra os males do Mundo, no seu tempo”, diz o encenador deste colectivo que desenvolve, na região de Trás-os-Montes e Alto Douro, um projecto inovador de descentralização teatral. “E, admitamos, o tempo da justiça, aqui (pelo que é julgado neste tipo de tribunais), teria essa facilidade de interagir e de dar uma noção mais global, mais entendida…”, prossegue David Carvalho, reiterando que “a justiça de proximidade talvez seja um dos valores mais importantes”.
“Ter um tribunal em proximidade é vantajoso. As populações querem sentir-se próximas do tribunal, naturalmente, apesar de algum desalento, que começa a ser exacerbado, pela lentidão da justiça”, regista o encenador. “Embora as distâncias de Murça a outros centros possam hoje ser percorridas rapidamente, preconizo a proximidade, porque a presença física de um tribunal dá, naturalmente, um corpus mais integrador”, sublinha, assumindo-se como “um lutador pela regionalização, no seu conceito mais primordial”, expurgado dos “defeitos dos novos ditadorzinhos, num respeito mais democrático”. Assim, “tudo se entrelaça numa rede mais fina, dando valor e identidade a um país que está virado para o mar”, nota David Carvalho, ao compreender que estes “são sinais cada vez mais importantes” e perfilhando algumas ideias defendidas por Adriano Moreira, apercebendo-se (ao jeito de Jean Monnet) que a “Europa de hoje é um projecto a que faltam as bases culturais”.
“Parece óbvio, a esta distância temporal [mais de sete anos depois da entrada em vigor da nova reorganização judiciária, que dividiu o País em 23 comarcas, tendo sido encerrados 20 tribunais], pensarmos na possibilidade de a lei [n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que aprova a Lei da Organização do Sistema Judiciário] ser (ou não) actualizada”, em função dos impactos que podem causar prejuízo nas próprias comunidades, como argumenta o encenador e também docente universitário.
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Juízos de proximidade: “Um abuso do conceito”
A propósito dos juízos de proximidade, que resultam da conversão das anteriores secções de proximidade e da reactivação das antigas comarcas encerradas em 2014 e das competências que perderam relativamente às anteriores instâncias judiciais, David Carvalho diz tratar-se de “um abuso do conceito”. “Porque a proximidade implica, de facto, estar próximo; na observação e no acompanhamento, mas também na decisão. É um problema das artimanhas do processo legislativo, o qual, muitas vezes, vai cedendo a pressões ou a coisas que há que corrigir”, adverte o director artístico do grupo transmontano Filandorra, recordando que, por isso, a população de Murça (incluindo autarcas e advogados) se manifestou contra o encerramento do tribunal, a 28 de Fevereiro de 2014 e noutras ocasiões.
Alertando para a necessidade de trazer estas questões para a “praça pública”, David Carvalho diz que, para além da “celeridade na Justiça” (a qual julga “incontornável”), deve haver “uma proximidade real”. E que também não se procure “esconder, com artifícios e artefactos, que isto [as terras do Interior] se está a tornar o deserto do Saara”.
A respeito do projeto Reportórios, Territórios e Identidades – iniciativa da Companhia de Teatro Filandorra, na qual a UTAD é entidade parceira –, este encenador e director artístico transmontano assevera que “a coesão territorial é fundamental”. Nesse contexto, tenciona avançar com “um grande projecto, a partir da simbologia da Porca de Murça, envolvendo toda a comunidade, desde as crianças do pré-escolar até aos outros níveis etários, abordando assuntos como a ida a um tribunal ou a perda de valores importantes”, para fazer saber das “desgraças que nos acontecem, mesmo no mundo da modernidade”.
“O grande drama é fixar a gente nova, com empregos razoáveis, para que possam dar continuidade a estes povoados”, destaca David Carvalho, criticando as “políticas desumanizadas que, por uma mera economia de uns euros, retiram os símbolos [a exemplo dos tribunais] e a proximidade [à Justiça]”.
Enquanto “homem de Cultura”, o aludido encenador apercebeu-se “com mágoa” do impacto, no município de Murça, causado pelo encerramento do tribunal local (ou antiga comarca), em Setembro de 2014. Para si, “a justiça, na sua proximidade, é um dos factores essenciais da Humanidade e da democracia”.
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A DGAJ recomendou a extinção da comarca de Sabrosa
Ainda no distrito de Vila Real, o município de Sabrosa (que também passaria a estar na área de acção da circunscrição do Médio Douro, atendendo à anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais ou Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, cuja aplicação foi interrompida; sobretudo, quando o XVIII Governo Constitucional – no segundo mandato de José Sócrates – tomou a decisão de suspender o alargamento do “novo” mapa judiciário, em Maio de 2010) viu decrescer a sua população de 7.032 para 6.367 indivíduos (saliente-se que os dados definitivos do INE – Instituto Nacional de Estatística indicam 6.361 residentes locais, não coincidindo com os então resultados preliminares avançados pela Direcção-Geral da Administração da Justiça – DGAJ), no período de 2001 a 2011. Perdendo, assim, 665 habitantes, o que corresponde a uma variação de 9,46%. A Pordata diz-nos que o número de idosos por cada 100 jovens aumentou no concelho de Sabrosa, entre 2010 e 2019, cujos índices de envelhecimento são de 194 e de 276. De modo concomitante, neste mesmo período, o número de residentes locais diminuiu de 6.418 para 5.918.
Ao consultarmos os resultados preliminares do XVI Recenseamento Geral da População e VI Recenseamento Geral da Habitação (Censos 2021), divulgados pelo INE em 28 de Julho, verificamos que a variação da população residente neste município transmontano, entre 2011 e 2021 (agora, com 5.556 indivíduos contabilizados), é de -12,7% (acentuando-se, assim, a tendência para a diminuição populacional), correspondendo a menos 805 pessoas no saldo demográfico da última década.
Integrado no Alto Douro Vinhateiro e tido como um município representativo da mais antiga região vitícola regulamentada no Mundo, Sabrosa viu a sua comarca ser agregada à comarca de Murça, na sequência da Portaria n.º 412-D/99, de 7 de Junho. Sob o ponto de vista organizativo e dos recursos humanos, tanto o tribunal de Sabrosa quanto o de Murça eram de competência genérica e, partilhavam um quadro legal com um único juiz, o qual exercia em ambas as comarcas. Conforme informação de 16 de Junho de 2011, semelhante situação se observava com um único magistrado do Ministério Público, o qual respondia às actividades judiciárias dos dois tribunais. O quadro legal então atribuído à comarca de Sabrosa admitia quatro oficiais de justiça, estando todos em exercício de funções locais.
Entre 2008 e 2010, relativamente ao movimento processual e à média das entradas de peças processuais, a Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) inscrevia 241 processos na comarca de Sabrosa, os quais foram repartidos, por ordem decrescente, deste modo: 82 execuções, 48 processos de média instância cível, 36 processos no foro da Família e Menores (FM), 25 processos de média instância criminal e 15 processos de pequena instância criminal, a par de 15 processos de grande instância cível e de 12 processos de pequena instância cível. A DGAJ dava ainda conta de cinco processos de instrução criminal, de dois processos de grande instância criminal e de, somente, um processo na área do Comércio.
Na ocasião da publicação do Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária (que consolidou o documento Linhas Estratégicas para a Reforma da Organização Judiciária), a resposta judiciária na comarca de Sabrosa continha as áreas Cível, Penal, de FM e do Comércio, sendo então encaminhadas as divergências laborais para o Tribunal do Trabalho de Vila Real. Refira-se que, a nível da instância central do Tribunal Judicial do Distrito de Vila Real (TJDVR), a DGAJ demarcava, em Janeiro de 2012, uma proposta de organização que confirmava a Secção Cível e a Secção Criminal, ambas com sede na cidade de Vila Real e com competência territorial distrital.
Relativamente às secções de competência especializada, o Ministério da Justiça (MJ) caucionava a existência da Secção do Trabalho em Vila Real, tendo esta uma competência territorial distrital. Quanto à Secção de Família e Menores, igualmente com sede em Vila Real, era-lhe atribuída competência territorial para os concelhos de Alijó, de Mondim de Basto, de Murça, de Sabrosa, de Vila Pouca de Aguiar e de Vila Real. De forma complementar, a DGAJ informava que a deslocação entre os municípios de Sabrosa e de Vila Real, a uma distância de 26 quilómetros, seria efectuada em 26 minutos. No que respeita à Secção de Execuções, sediada em Chaves, foi-lhe dada competência territorial para todo o distrito.
No contexto das instâncias locais do TJDVR e no que concerne ao volume processual expectável subsistente à dita especialização, foi calculado, para a comarca de Sabrosa, o movimento de 61 processos na área cível e de 40 em matéria criminal, totalizando 101 processos, o que constitui, segundo a Direcção-Geral da Administração da Justiça, “um volume processual muito reduzido”.
Assim, a DGAJ recomendava a extinção da comarca de Sabrosa, a par do encerramento de mais três tribunais no distrito de Vila Real: em Boticas, em Mesão Frio e em Murça. O encerramento da comarca de Sabrosa apoiava-se no facto de apresentar “valores, quer de movimento processual quer de população, inferiores relativamente à comarca de Vila Real”. Aliás, “no que se refere à evolução demográfica, nos últimos 10 anos (Censos 2011 Preliminares), a comarca de Sabrosa apresenta uma diminuição de 9,46%, enquanto na comarca de Vila Real houve um aumento de 4,53%”, justifica o MJ, através da DGAJ.
Ao comparar as acomodações dos tribunais de Sabrosa e de Vila Real, a DGAJ alegava que “ambos os tribunais estão instalados em edifícios da propriedade das respectivas Câmaras Municipais” e que “o Tribunal de Vila Real dispõe de instalações adequadas”, mas não registou quaisquer apreciações sobre as instalações do Tribunal de Sabrosa. Além de considerar existirem, então, “bons acessos rodoviários entre Vila Real e Sabrosa”, a DGAJ salientava ainda que “o município de Sabrosa dispõe de um Posto de Atendimento de Julgado de Paz”.
Na posse do anexo do documento Indicadores de A[c]tividade nos Arquivos dos Tribunais 2014, publicado pela Direcção-Geral da Administração da Justiça, em Março de 2015, somos informados que, igualmente na Comarca de Vila Real, ao ser extinta a instância de Sabrosa, o seu arquivo, referente ao ano de 2014, tal como se verificou com os arquivos dos núcleos de Boticas e de Mesão Frio, foi transferido para um armazém da instância de Vila Real, apresentando uma extensão de 139 metros de prateleiras e uma extensão documental com 115 metros, de que resulta um saldo positivo de 24 metros. O dito relatório indica que o total de processos eliminados e remetidos para o arquivo distrital, entre 2003 e 2014, foi de 2.797 processos.
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“Não é um concelho conflituoso, nem há registos de crimes”
Às nove horas e dez minutos da manhã da primeira quarta-feira do recente Verão (a 23 de Junho), o autarca socialista Domingos Manuel Alves Carvas recebeu o sinalAberto, enquanto principal responsável pela gestão quotidiana e pela planificação do rumo do município de Sabrosa.
Na entrevista, agendada há algum tempo, procurámos saber dos impactos do novo mapa judiciário e do encerramento do tribunal local, durante mais de dois anos. Hoje, todos os que lêem esta peça de reportagem, já sabem que é Maria Helena Marques Pinto da Lapa (também socialista) quem assume o cargo deixado por Domingos Carvas, o qual tinha sucedido a José Manuel Carvalho Marques, líder da lista do PS que, em 2013, ganhou as eleições para a Câmara Municipal com maioria absoluta (tendo merecido a confiança de 55,74% dos votantes). Quatro anos depois, Domingos Carvas obtém igualmente maioria absoluta nas eleições autárquicas (com 53,33% dos votos, mantendo os três mandatos do PS, nos cinco atribuídos ao executivo camarário).
Curiosamente, os resultados locais das últimas eleições, a 26 de Setembro, foram muito próximos no que respeita às três listas que conseguiram mandatos para a nova vereação, tendo os socialistas obtido 28,86% dos votos, enquanto a candidatura do movimento independente JÁ! alcançou 27,32% (conquistando dois mandatos no executivo, tal como o PS) e os social-democratas 27,25% dos votos validados neste acto eleitoral.
Domingos Carvas reiterou, na conversa que estabeleceu connosco, que Sabrosa é um concelho que “possui um rico e vasto património paisagístico”, proporcionando aos seus munícipes “uma elevada qualidade de vida”.
“É um concelho situado na margem direita do rio Douro”, reforça, lembrando que o Alto Douro Vinhateiro, Património Mundial da UNESCO, tem condições únicas, tornando-o “diferenciador de todo o restante território”.
“Tem uma área de 158 quilómetros quadrados [segundo a Wikipédia, a superfície concelhia é de 156,4 km2] e 6.150 habitantes, antes dos Censos 2021 [os dados definitivos dos Censos 2011 indicavam 6.361 residentes no município de Sabrosa]. Depois dos Censos 2021, será menos”, antevia o autarca, confrontado com os 5.918 habitantes assinalados pela Pordata, relativamente ao ano de 2019.
“Aqui, vive-se, essencialmente, da viticultura e do turismo. É um concelho berço de gente importante, como Fernão de Magalhães, Miguel Torga [que trouxe, de forma privilegiada, o universo geográfico de São Martinho de Anta e dos territórios transmontanos para a sua obra literária, na convicção de que “O universal é o local sem paredes”] e Aires Torres [escritor, actor, militar e revolucionário que nasceu em 1893, na localidade de Parada do Pinhão, e que morreu em 1979]”, observou Domingos Carvas, relevando a sua comunidade e esta “gente que deu nome a Portugal, à Europa e a outras latitudes do Mundo”.
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“O tribunal é um símbolo do Poder em qualquer lugar”
“É um concelho fácil e de pessoas fáceis, dedicadas ao trabalho, na viticultura e em alguns poucos serviços”, garante o nosso entrevistado, acentuado que “não é um concelho conflituoso, nem há registos de crimes”. “Isto é quase um oásis!”, gracejou.
“Sendo assim, faz falta um tribunal em Sabrosa?”, questionamos, pelo que redargui: “Faz falta, sim. Quanto mais não fosse, pelo símbolo do Poder. O tribunal é um símbolo do Poder em qualquer lugar. Independentemente de ter muitas ou poucas acções, não deixa de ser a representação do Poder e do Estado, junto das populações, onde se faz sentir.”
“A comarca foi instituída em 1836 [por desmembramento de Vila Real] – há quase duzentos anos – e Paula Teixeira da Cruz tirou-nos o tribunal! Pelo facto de termos poucos crimes registados, não significa que não haja acções judiciais. As acções judiciais são o que são. Atendendo a que o nosso tribunal era generalista, o juiz resolvia aqui todas as acções”, recordou o edil, notando que a antiga comarca tratava das matérias cível e criminal, mas não de assuntos do foro administrativo e fiscal.
Ao criticar os supostos critérios de encerramento do tribunal de Sabrosa, o qual “tinha um pouco mais do que os 250 processos [em média anual], como era minimamente exigido”, Domingos Carvas sublinhava: “Entraram nessa reorganização pouco justificada, porque não despediram ninguém. Nenhum juiz foi para o desemprego. Nenhum delegado do Ministério Público [MP] foi para o desemprego. E também nenhum oficial de justiça requereu o fundo de desemprego. Não vejo que fosse necessário encerrar qualquer tribunal.”
O, então, ainda autarca deste município transmontano declarava ao sinalAberto não se ter apercebido de quaisquer vantagens económicas com tal decisão política. Localmente, “o tribunal vive em instalações da Câmara Municipal”. “Não pagavam a renda nem a água; apenas tinham a despesa da electricidade e das telecomunicações”, esclareceu o edil, que não encontrava razões para tal determinação do Ministério da Justiça. “Se eu quiser dizer porque foi, não sei; e quase ninguém saberá. Uma decisão meramente política não terá sido. Terá sido mais uma teimosia da então ministra Paula Teixeira da Cruz”, equacionava o anterior presidente da Câmara de Sabrosa, especulando: “Se calhar, tinha de mostrar algum serviço a alguém e avançou com a reforma judiciária!”
No seu entender, “a reforma judiciária deveria ter partido da reorganização dos serviços e não do encerramento das comarcas, dotando-as de mais capacidades e descentralizando algumas situações, como [a comarca] de Vila Real, a abarrotar pelas costuras”. “Se colocassem mais recursos humanos nas comarcas com peso suficiente, provavelmente, não teriam os tribunais centrais ou distritais cheios, como estavam… E que ficaram piores, ainda!”, referiu Domingos Carvas.
Os tribunais “foram muito pouco valorizados”
“Depois [em 2017], veio a nova reorganização que reactivou os tribunais (não na mesma forma, nem tão-pouco mais ou menos…), os quais perderam competências e foram muito pouco valorizados”, prosseguiu o dirigente municipal, afirmando que “a Câmara dispensou um funcionário administrativo ao tribunal, para talvez atender o telefone e fazer alguns registos”.
No dia anterior ao da reunião com sinalAberto – ou seja, na terça-feira (22 de Junho) –, decorreu uma audiência que ali fez deslocar o juiz e o procurador do MP. Como repara Domingos Carvas, a realização de audiências no actual Juízo de Proximidade de Sabrosa “depende da vontade do juiz presidente”. A justiça local “mudou porque o regime era generalista e, logo, mais abrangente”. “Hoje só se julgam casos que, em termos indemnizatórios, não ultrapassam os 50 mil euros. Antes, a comarca até tinha um colectivo de juízes; isso desapareceu”, mencionou o nosso entrevistado, relevando que, ao abrigo do “protocolo da reorganização de 2017, seriam aqui realizadas todas as acções possíveis, dentro desses parâmetros, que dissessem respeito a Sabrosa”. “Não sei se o fazem; penso que não”, supõe, reconhecendo que os impactos advenientes do mapa judiciário e da extinção da antiga comarca se reflectem “muito mais na economia local do que a outro nível”. “Se um julgamento trazia vinte testemunhas e se a audiência seguia para a tarde, teriam de almoçar aqui. Alguns vinham de táxi. Tudo isso fazia gerar a economia local, o que, para um concelho com a denominada baixa densidade, é importante”, argumentou Domingos Carvas, manifestando que “não é uma boa política encerrar serviços públicos”.
Em relação aos transportes públicos, o anterior presidente da Câmara de Sabrosa garante que “não há problema nas deslocações a Vila Real, da qual estamos a 10 minutos”. Porém, a DGAJ informava, em 2012, que a distância entre os municípios de Sabrosa e de Vila Real seria efectuada em 26 minutos.
Com efeito, Domingos Carvas está, sobretudo, preocupado com “a falta de soberania no concelho”. Para este representante do Poder Local, “a Justiça é um forte pilar do Poder; logo, se não a temos, falta um pilar”.
“Hoje, Sabrosa não perde tanto. Sobretudo, a partir de 2017, com a reposição de alguma situação de poder. O tribunal estava fechado e hoje está aberto! Até tiraram o Registo Criminal! Agora, o tribunal está aberto e a secretaria também, podendo ser marcada uma audiência local. Tem todos os quês e os porquês para a audiência se realizar: sala para o juiz, sala de audiências, secretaria e sala do Ministério Público. Tem todas as condições para funcionar. E funciona. Ainda ontem funcionou. E é uma mais-valia para o território. Não tenho dúvida nenhuma!”, confirmou o autarca transmontado ao sinalAberto.
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“O tribunal nunca mais foi a mesma coisa!”
Relativamente à desertificação do Interior e à coesão territorial, o novo mapa judiciário veio – na perspectiva de Domingos Carvas – pôr muita coisa em causa: “É aquela política de Lisboa! São anunciados, no Terreiro do Paço, os chavões bonitos da coesão, de unir, de juntar e de combater a desertificação do Interior… Mas, depois, não se criam políticas para esse efeito”, critica o socialista, confessando estar “farto disso”. “Retira-se, pelo contrário, capacidade ao Interior, extinguindo tribunais ou ameaçando que se vai fechar a Caixa Geral de Depósitos ou os balcões das Finanças; ou, ainda, diminuindo as capacidades dos centros de saúde e de outras instituições”, expõe o antecessor de Maria Helena Marques Pinto da Lapa, na autarquia de Sabrosa.
Convicto de que “retirar serviços ao Interior é levá-los para a centralização, seja num centro urbano ou no Litoral”, Domingos Carvas reconhece que o acesso à justiça “melhorou a partir de 2017”. “A Justiça teve um novo élan. Porém, depois de ter sido retirado, o tribunal nunca mais foi a mesma coisa!”, alega o nosso entrevistado, manifestando: “Com a reforma de Paula Teixeira da Cruz, em termos de Justiça, ficámos zerados, ficámos sem nada!”
Além do Protesto Nacional de Cidadania contra o Novo Mapa Judiciário, convocado pela Ordem dos Advogados para 15 de Julho de 2014, junto da escadaria da Assembleia da República, os municípios também organizaram “grandes manifestações”. Vários presidentes de câmaras da região duriense chegaram, inclusivamente, a reunir com a então ministra da Justiça. “Mas ela foi sempre muito rígida! Muito pouco flexível na sensibilidade para com os autarcas. Se lhe perguntássemos porque foram estes 40 concelhos e não outros, nem respondia… [Domingo Carvas refere-se aos 47 municípios que perderam tribunais ou que passaram a receber secções de proximidade] Fizemos manifestações na Praça do Império, mas aquilo era inflexível”, descreve, verificando que “a reposição dos tribunais em 2017 veio, de alguma forma, amenizar o que antes era negativo”.
Sem esperar por mais alterações na justiça que ali se pratica, este político “nascido e criado em Sabrosa” (e que estudou Ciências da Comunicação na UTAD, no domínio das Relações Públicas) nota que os cidadãos locais “já se habituaram ao tribunal que têm”.
“A ausência do tribunal, durante mais de dois anos, de certa maneira, reflectiu-se na qualidade de vida das pessoas. Mais em alguns cidadãos, sim. Mas a coisa não foi generalizada, como é óbvio. Quem precisou da estrutura, provavelmente, sentiu-se lesado. Quem precisava, por exemplo, de tirar um registo criminal e tinha de ir a Vila Real sentiu-se lesado, por ter de fazer uns tantos quilómetros ou pelo facto de estar à porta de um outro tribunal para ser atendido, quando aqui apenas demorava cinco minutos… Não posso dizer que essas pessoas não foram lesadas, porque foram”, sustentou o anterior autarca socialista.
Domingos Carvas gostaria que o tribunal de Sabrosa viesse a recuperar “as condições que tinha antes da reforma judiciária de Paula Teixeira da Cruz”. Ou seja, “com todas as competências repostas, tornando-o um tribunal de competência genérica e mantendo um juiz, como estava destinado – o qual já era dividido entre as comarcas de Sabrosa e de Murça; que até se aceitava”. “No entanto, se o número de causas aumentasse, que colocassem aqui um juiz. E que o tirassem de Vila Real, onde estão ao monte e alguns, até, com condições pouco aceitáveis. Que venham ocupar os lugares no território em que bem falta fazem!”, sugeriu o edil de Sabrosa, explanando: “Era uma forma de o Estado se colocar no território; e deixarmo-nos de palavras vãs, de que estamos a combater a desertificação. Com isso, também criávamos aqui postos de trabalho, começando pela Justiça. O que já era bom!”
Denotando algum desalento no final do seu único mandato de presidente de câmara (embora tenha sido vereador em três mandatos anteriores), Domingos Carvas, que nos diz ter entrado na vida política mais activa em 1993, declarou “não querer ir novamente à disputa autárquica”. “A política começa a não me dizer grande coisa, quase nada. Era uma paixão, mas tratam-na tão mal, que hoje não me seduz. Enquanto vereador, gostei de estar, mas hoje não. Estou farto e afasto-me!”, confirmou ao sinal Aberto, três meses antes das eleições autárquicas.
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“Tudo é largado daqui para fora. Isto está envelhecido!”
Ao jeito das muitas outras conversas de café, a que está habituado devido às suas circunstâncias profissionais e enquanto proprietário de um estabelecimento do sector em Sabrosa, Manuel Lopes Parafita da Fonseca, diz-nos que, “por causa do fecho do tribunal, a terra tinha menos gente”. “Deixou de ter tanta gente como tinha”, acentua, recordando que, antes, “havia julgamentos em quase todas as semanas”.
Como testemunha este sabrosense, o encerramento da antiga comarca local deixou marcas na vila e no pequeno comércio local: “Claro que se notou! Deixou de aparecer pessoal. Houve dias sem julgamentos em que, aqui, não aparecia ninguém. As audiências sempre traziam os réus, as testemunhas, as famílias e os outros que queriam ver o que se estava a passar.”
“Os cafés perderam clientes. Eles sempre vinham tomar o pequeno-almoço e, depois do julgamento, vinham quase sempre almoçar ou comer qualquer coisa”, menciona Manuel Parafita da Fonseca, adiantando que os cidadãos deste concelho transmontano “sentiram muito a falta do tribunal”. Ao incómodo apercebido pela população do município, com a extinção da sua antiga comarca, acresceu a obrigatoriedade de se deslocar para outros tribunais fora do concelho. “É que, aqui, os transportes são fracos! Há só uma camioneta de manhã e outra à tarde. Assim, as pessoas tinham de ir de táxi, apesar das suas dificuldades económicas”, repara o proprietário do estabelecimento misto de restauração e bebidas, perto do tribunal (actual juízo de proximidade) e praticamente sem clientes, cerca das oito horas matinais de um dia muito agradável.
Com a reactivação do tribunal, em 2017, Manuel Parafita da Fonseca não se apercebe de “grande diferença” no movimento de pessoas em Sabrosa. “Há que apostar mais, agora! O tribunal reabriu mas, praticamente, não há julgamentos nem há nada. Tudo continua a ser em Vila Real, excepto alguma documentação ou para se apresentar alguma queixa. Quase não há, aqui, sentenças”, declara este cidadão de 63 anos que, “até ao momento”, não precisou de “entrar nessas ondas” judiciais.
Puxando a conversa para o envelhecimento da população do concelho, Manual Parafita da Fonseca reconhece: “Ainda o que nos vale é que, aqui, ainda temos os centros de saúde, as Finanças e a Conservatória. De resto, tudo é largado daqui para fora. Isto está envelhecido!”
No seu ponto de vista, um tribunal ou juízo também contribui para a importância da terra. “Sempre me lembro do tribunal em Sabrosa. Não se compreende porque, há uns anos, quiseram acabar com isto. Contudo, penso que também já não vai ser o que era. Por aquilo que se vê, nunca mais!”, conclui.
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Delegada da OA em Sabrosa critica falta de transportes
Para a delegada da Ordem dos Advogados (OA) em Sabrosa, Teresa Pedro, a metodologia utilizada para o encerramento, em 2014, de 20 tribunais, no âmbito do novo mapa judiciário, “não foi a mais correcta”. “Foi de tal maneira que nos deparámos com situações muito incómodas, principalmente para as pessoas que lidavam com os tribunais. Como, por exemplo, a nível dos transportes. As pessoas de Sabrosa têm dois meios de transporte: um às oito da manhã, na ida de Sabrosa para Vila Real.; e, ao fim do dia, têm unicamente um transporte de Vila Real para Sabrosa”, explicita a causídica local.
“Isso criou muitos entraves às pessoas que precisavam de ir a julgamentos em Vila Real, porque o tribunal daqui fechou completamente. E tínhamos, aqui, todas as competências, à excepção de Trabalho e de Família e Menores”, recorda Teresa Pedro, que, na sua qualidade de advogada, a partir de 2014, também teve de se deslocar mais vezes à capital de distrito e transportar, no seu próprio automóvel, “vários clientes e testemunhas para efectuar os julgamentos”.
Os impactos resultantes do fecho das antigas comarcas concelhias fizeram-se sentir mais “nas pessoas que iam a tribunal”. No entanto, os advogados queixam-se em relação “ao próprio apoio judiciário”. “Principalmente, porque as deslocações não nos são pagas. Deslocamo-nos a Vila Real sem qualquer tipo de ajuda monetária”, salienta a representante da OA em Sabrosa, considerando o período entre Setembro de 2014 e Janeiro de 2017, quando vários tribunais dispersos no País “foram encerrados totalmente, como aconteceu aqui”. “Os impactos do novo mapa judiciário foram, essencialmente, socioeconómicos e simbólicos”, reitera a causídica, insistindo na forçada deslocação das pessoas de Sabrosa a Vila Real, “para defenderem os próprios interesses”.
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Políticas de proximidade postas em causa
Ao ser questionada sobre uma eventual inoperância ou inadequação das políticas de proximidade, com a concretização desta reforma judiciária, Teresa Pedro admite que, “em certa medida, isso se verificou”, por causa do fecho desses tribunais. Todavia, no intervalo entre o encerramento das antigas comarcas e a sua reactivação, não terá havido aumento da criminalidade no município de Sabrosa. “Não, não houve. Isso não. Foi pacífico!”, sustenta a advogada, apesar de reconhecer que um tribunal, como órgão de soberania, tem um peso simbólico e, simultaneamente, um efeito dissuasor na comunidade.
Para esta defensora de causas, foi impactante o afastamento da Justiça: “Nessa altura, as pessoas viram a Justiça muito afastada, até a nível financeiro, devido ao aumento das custas processuais e das deslocações acrescidas. Logo, desistiam das causas”. “Fomos, todos, bastante prejudicados. Bastante!”, acentua.
“A população e nós, enquanto advogados, fomos bastantes prejudicados, porque as pessoas iam, por exemplo, consultar outros nossos colegas de Vila Real. O que lhes parecia muito mais barato. Era muito mais económico. Não vinham buscar um advogado de Sabrosa para irem a julgamento defender uma causa em Vila Real”, afirma Teresa Pedro, que exerce advocacia junto da comunidade sabrosense desde 1992.
“Embora não seja daqui, conheço muito bem a comunidade e também o processo que levou ao encerramento da antiga comarca de Sabrosa”, nota, esclarecendo: “É uma comunidade que vive, principalmente, da agricultura e que tem as suas dificuldades. A nível criminal, há mais divergências do que aquilo que eu pensava. Muitos processos-crime e muitas acções de Direitos Reais, por causa das águas, dos terrenos e da disputa de muito pequeninas áreas. A este respeito, são pessoas, por vezes, bastante difíceis e muito ciosas da sua própria propriedade. Mas, no aspecto civilizacional, são óptimas. São bastante cordatas.”
Admitindo que a reforma judiciária de 2014 se deveu a pressões da Troika, Teresa Pedro sente que “não se poupou nada”. “Neste aspecto, ao encerrarem aqui o tribunal, teve de haver mais funcionários no de Vila Real. Acho que, assim, houve ali aumento de funcionários, mais custos e maiores despesas”, particulariza. “Eles diziam que a finalidade deste mapa judiciário era a de conseguir menos custos. A ideia foi essa mesmo. Mas julgo que não conseguiram”, expressa a advogada, que não sabe explicar o que terá falhado com esta reorganização judicial.
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“Achei que estávamos muito injustiçados”
Teresa Pedro, assumindo as funções de delegada local da OA, teve um importante papel nas manifestações a favor da reabertura do tribunal de Sabrosa. “Cheguei a pedir um autocarro ao presidente da Câmara e estive na organização, porque achei que estávamos muito injustiçados. Assim, em 2014, fomos mesmo a Lisboa, ao Ministério da Justiça, para conseguirmos a abertura. E conseguimos! Agora, é o juiz da comarca de Vila Real que já se desloca a Sabrosa e que aqui vem fazer julgamentos”, exterioriza com alguma satisfação.
Recorde-se que a ministra da Justiça Francisca Van Dunem (no primeiro período de governação de António Costa) anunciava, a 24 de Maio de 2016, que iriam ser reactivados os tribunais encerrados na última reforma do mapa judiciário, na sua maioria em municípios “no interior rural e envelhecido”. No mesmo dia, o ex-autarca de Sabrosa José Marques (que, em 2005, liderou uma lista independente à Câmara Municipal e ganhou) declarava à Lusa que “o anúncio da reabertura do tribunal, encerrado pelo anterior Governo PSD/CDS-PP, é uma excelente notícia porque devolve à população o acesso à justiça”.
“Ainda ontem houve uma audiência e, às onze horas da manhã, também ali tive uma inquirição, por videoconferência. Nos julgamentos, se os crimes ocorreram neste concelho, o juiz de Vila Real desloca-se à comarca de Sabrosa. No Cível, se os factos sucederem em Sabrosa, o juiz desloca-se igualmente aqui. É muito melhor, porque é menos dispendioso para as testemunhas e para os próprios intervenientes (para os autores, para os réus, para os arguidos…). E isso nós conseguimos. Para nós, é uma vitória”, declara ao sinal Aberto.
Teresa Pedro confirma que os juízes estão todos concentrados no Tribunal Judicial de Vila Real, sendo “eles que se deslocam”. “Aqui, vem só uma pessoa: o juiz; e, em matéria de crime, o juiz e o procurador do Ministério Público. Quer dizer, deslocam-se cá menos pessoas do que se formos todos nós a irmos para Vila Real. Cá só estão dois funcionários, um cedido pela Câmara Municipal e outro do Ministério da Justiça”, clarifica a advogada, não acreditando que o aumento da desertificação dos territórios do Interior se deva ao mapa judiciário. “Acho que não. Não devemos ir por aí!”, expõe, vincando que, com os ajustamentos ao mapa judiciário e com as alterações introduzidas na Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), em 2017, se “aproxima a justiça dos cidadãos”
Ainda a respeito da LOSJ, a delegada da OA em Sabrosa diz que, “nesta decisão política, falhou tudo”. “Foi uma coisa feita à pressa. Por isso, se voltou atrás. Não foi tanto quanto queríamos, mas o tribunal reabriu, embora como juízo de proximidade. O que, para nós, já é alguma coisa”, afirma, na expectativa de “voltar a ver o tribunal de Sabrosa com as competências de antigamente, antes de 2014”. “E nós temos pendência suficiente para que este tribunal volte a ser o que era. Penso que deveríamos ter o tribunal em função da pendência do próprio tribunal”, sustenta, não descurando os moldes da antiga comarca local, em agregação com a de Murça. “Ambas tinham o mesmo juiz e funcionavam muito bem. Cada tribunal estava no seu sítio, o juiz e o magistrado do Ministério Público é que eram os mesmos. Os oficiais de justiça eram autónomos: Murça tinha os seus e Sabrosa também os seus”, informa, garantindo que “Sobrosa não tinha processos acumulados. Era uma comarca que estava em dia”. Daí não entender porque foi extinta. Actualmente, constata que as populações têm mais acesso à justiça: “Penso que sim. Com o apoio judiciário, está tudo garantido.”
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Critérios de extinção da comarca de Mesão Frio “não corresponderam à realidade”
Conhecido como a Porta do Douro, o município de Mesão Frio, também no distrito administrativo de Vila Real e que faria parte da proposta circunscrição do Médio Douro, nas expectativas não realizadas da anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), tinha 4.926 habitantes em 2001. Porém, os dados censitários de 2011 (avançados pela Direcção-Geral da Administração da Justiça – DGAJ, com base nos resultados então preliminares do Instituto Nacional de Estatística – INE) indicam uma redução populacional de 503 indivíduos, com uma variação demográfica de 10,21%. Os dados populacionais da Pordata, relativos ao intervalo de 2010 a 2019, atestam a tendência para a redução dos residentes em Mesão Frio, de 4.482 para 3.980 indivíduos. Comparando com os resultados preliminares dos Censos 2021 que o INE divulgou, em 28 de Julho, é clara a amplificação da variação da população residente em Mesão Frio, entre 2011 e 2021 (agora com o registo de 3.555 indivíduos), verificando-se uma tendência negativa de 19,8%, tendo o concelho perdido 878 pessoas na última década.
A Comarca de Vila Real assentava, em Janeiro de 2012 (data da publicação do Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária, texto que alicerçou o documento Linhas Estratégicas para a Reforma da Organização Judiciária, divulgado seis meses depois, também pela DGAJ), no correspondente distrito administrativo e compreendia as comarcas de Alijó, de Boticas, de Chaves, de Mesão Frio, de Mondim de Basto, de Montalegre, de Murça, de Peso da Régua (incluindo Santa Marta de Penaguião), de Sabrosa, de Valpaços, de Vila Pouca de Aguiar (abrangendo Ribeira de Pena) e de Vila Real.
Ao abordarmos a organização e os recursos humanos da comarca de Mesão Frio, cujo tribunal era de competência genérica, vemos que lhe foi concedido um juiz no quadro legal, o qual exercia aí funções, segundo informação de 16 de Junho de 2011. O mesmo acontecia com um magistrado do Ministério Público (MP), também único no quadro legal e em exercício nesse tribunal. A comarca tinha ainda seis oficiais de justiça no seu quadro legal, todos em exercício.
A respeito do movimento processual e da média das entradas, entre 2008 e 2010, a DGAJ notava que, na comarca de Mesão Frio, a concernente actividade totalizava 185 processos. Estes são distribuídos, por ordem decrescente, do seguinte modo: 55 execuções, 29 processos no domínio da Família e Menores (FM), 24 processos de média instância cível, 21 processos de média instância criminal, 21 processos no foro do Trabalho, 13 de pequena instância criminal e de 10 processos de pequena instância cível, além de sete processos de grande instância cível e de três de instrução criminal, a par de um processo de grande instância criminal e de outro que teve a ver com o Comércio.
Em 2012, a resposta judiciária na comarca de Mesão Frio era efectuada nas áreas do Cível, do Penal, da Família e Menores (FM) e do Comércio. Contudo, as causas laborais eram resolvidas no Tribunal do Trabalho de Lamego, no vizinho distrito de Viseu.
Na instância central do Tribunal Judicial do Distrito de Vila Real (TJDVR), a DGAJ confirmou a Secção Cível e a Secção Criminal, ambas sediadas na cidade de Vila Real e com competência territorial distrital.
No que se refere às secções de competência especializada, o Ministério da Justiça assegurava a existência da Secção do Trabalho em Vila Real, tendo esta uma competência territorial distrital. A DGAJ assinalava também a Secção de Família e Menores em Vila Real, cuja área de competência territorial abrangia os municípios de Alijó, de Mondim de Basto, de Murça, de Sabrosa, de Vila Pouca de Aguiar e de Vila Real. Por sua vez, a Secção de Execuções ficaria em Chaves, com competência territorial para todo o distrito.
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Volume processual expectável em Mesão Frio
Ao apreciar-se o volume processual expectável subsistente à mencionada especialização, foi calculado, no seio da comarca de Mesão Frio, o movimento de 70 processos da área cível e de 34 de matéria criminal, totalizando 104 processos, o qual representa, para a DGAJ, “um volume processual muito reduzido”.
No Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária, publicado em Janeiro de 2012, lemos que a população residente no distrito de Vila Real “sofreu uma redução de 7,40% nos últimos 10 anos (Censos 2011 Preliminares)” e que essa diminuição se verificou em todos os municípios, com excepção do de Vila Real, “que teve um aumento de 4,53%”.
Na sequência da análise de vários factores, como o movimento processual e a evolução demográfica, a par de instalações tidas como adequadas e da existência de alternativas de acesso à informação da justiça por parte do cidadão, a DGAJ justificava a extinção de quatro tribunais neste distrito: em Boticas, em Mesão Frio, em Murça e em Sabrosa. O Ministério da Justiça afirma também ter analisado “a existência de alternativas de acesso à informação para apoio ao cidadão, nomeadamente, a existência de Julgados de Paz e seus postos de atendimento, assim como Postos de Atendimento ao Cidadão” (PAC). Em nota de rodapé, a DGAJ esclarece que os PAC funcionam como uma extensão das Lojas de Cidadão e que se localizam, em regra, nas câmaras municipais. “Este serviço constitui um ponto único de contacto personalizado, a partir do qual são fornecidos diversos serviços da Administração Pública”, sublinha a mesma entidade. Assim, a DGAJ tem representação em todos os PAC, para efeitos de recepção de pedidos de certificado de registo criminal e para a respectiva emissão, quando negativos, tarefa que é igualmente assegurada pelos tribunais judiciais.
O jurista Nuno Garoupa escreve, em Setembro de 2011, que “o pacote de medidas de descongestão dos tribunais cíveis não cria em muitos casos os incentivos adequados a uma saudável desjudicialização, na qual ambas as partes optam por mecanismos alternativos de resolução de conflitos”. Para o autor do ensaio O Governo da Justiça, na verdade, “este pacote impõe uma desjudicialização forçada, isto é, obriga as partes a não utilizar os tribunais quando pelo menos uma delas eventualmente o pretendia”. Por conseguinte, o referido académico admite que “é o que acontece, por exemplo, ao proibir certos litígios de baixo valor ao alterar o regime aplicável aos cheques sem provisão ou ao pagamento de prémios de seguro”. “Naturalmente, por efeito de substituição quer dos meios de pagamento quer dos comportamentos regulados por estas alterações, outros tipos de litígios irão aumentar a médio prazo”, acrescenta o ensaísta.
Na mencionada publicação da DGAJ, em 2012, salienta-se que a “comarca de Mesão Frio apresenta valores, quer de movimento processual quer de população, muito inferiores relativamente à comarca de Peso da Régua”, relevando o facto de este tribunal dispor de “instalações adequadas”. Refere-se ainda que o edifício do Tribunal de Mesão Frio é propriedade da Câmara Municipal e que o de Peso da Régua pertence ao IGFIJ, IP (actual IGFEJ – Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça). Além disso, a DGAJ dizia, então, existirem “bons acessos rodoviários entre os municípios em causa”.
Outro aspecto sublinhado, na ocasião, pela Direcção-Geral da Administração da Justiça era o de que, embora “sem infra-estrutura judicial, o município de Santa Marta de Penaguião dispõe de um Julgado de Paz”. Por conseguinte, era proposta a extinção do Tribunal de Mesão Frio. O que veio a suceder com a reforma implementada a 1 de Setembro de 2014, ao abrigo da Lei da Organização do Sistema Judiciário, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março.
Conforme o anexo do relatório Indicadores de A[c]tividade nos Arquivos dos Tribunais 2014, publicado pela Direcção-Geral da Administração da Justiça, em Março de 2015, divisamos que, igualmente na Comarca de Vila Real, ao ser encerrada a instância de Mesão Frio, o seu arquivo, referente ao ano de 2014, a exemplo do que sucedeu com os arquivos dos núcleos de Boticas e de Sabrosa, foi transferido para um armazém da instância de Vila Real, e que abarcava uma extensão de 192 metros de prateleiras e uma extensão documental com 116 metros, de que ressalta um saldo positivo de 76 metros. O mesmo documento anota que o total de processos eliminados e remetidos para o arquivo distrital, entre 2003 e 2014, foi de 1.676 processos.
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“Foi um massacre e um ataque sem precedentes ao interior do País”
Na manhã de 28 de Maio, o jornal sinalAberto foi recebido pelo autarca Alberto Monteiro Pereira, a poucos meses de terminar o seu terceiro mandato como presidente da Câmara Municipal de Mesão Frio. Foi uma dúzia de anos de liderança autárquica que começou com uma vitória, apenas com a margem de oito votos, sobre a lista social-democrata encabeçada por Marco António da Silva, nas eleições de 2009. Então, o Partido Socialista obteve 1.784 votos (49,17%), enquanto o PPD/PSD conseguia 1.776 votos (48,95%).
Nas duas eleições autárquicas seguintes, a lista socialista alcançou duas maiorias absolutas, tendo a candidatura liderada por Alberto Monteiro Pereira reforçado politicamente a sua expressão, em 2017, com 61,55% dos votos, o que lhe permitiu conquistar quatro mandatos nos cinco atribuídos ao executivo camarário local.
Hoje, ao ler esta peça de reportagem, Mesão Frio tem uma nova cara na presidência da edilidade, o também socialista Paulo Jorge Peres Teixeira da Silva, cuja candidatura venceu por maioria relativa (com 48,63% dos votos), contando o actual executivo com também dois mandatos do Movimento Mais Mesão Frio (MMF), encabeçado pelo gestor e consultor de empresas Mário Sousa Pinto (com 32,55% dos votos).
Com uma agenda bastante preenchida naquele dia de Primavera (28 de Maio), Alberto Monteiro Pereira disponibilizou-se para a entrevista com sinal Aberto, enquanto, ao abrigo de um protocolo estabelecido com a Câmara, a companhia de teatro nordestina Filandorra se preparava para, no Auditório Municipal de Mesão Frio, levar Gil Vicente às escolas. Assim, às 10h30, foram apresentadas as peças Auto da Barca do Inferno e, às 14h30, Farsa de Inês Pereira.
Como nos explicou o ex-autarca, nessa manhã um pouco mais agitada, “antes de 2014, a resposta judiciária em Mesão Frio era semelhante à que acontecia em todos os concelhos do País, envolvendo todos os processos dos seus habitantes e não só”. Porque, este município transmontano “tem a particularidade, muito própria, de manter uma vida social com as freguesias dos concelhos vizinhos, muitas delas mais perto da vila de Mesão Frio do que das respectivas sedes concelhias”. “Por isso, na altura, o nosso tribunal tinha um número de pendências superior ao mínimo que estabeleceram como critério para encerramento das comarcas. Aliás, foi o meu argumento quando procurei, no meu primeiro mandato, reunir com a ministra Paula Teixeira da Cruz, a qual não nos quis ouvir”, elucidou o socialista Alberto Monteiro Pereira.
“As verdadeiras e únicas vantagens do mapa judiciário traduzem-se, sobretudo, na qualidade da justiça, que passou a ser especializada, uma vez que os processos de Mesão Frio (cíveis, crimes, família, comércio e executivos), passaram a ser tramitados por funcionários que trabalham exclusivamente nesse tipo de processos a nível distrital/comarca, conseguindo assim, uma maior uniformização da Justiça”, disse. Para o ex-presidente da edilidade, “o encerramento do Tribunal Judicial de Mesão Frio, no ano de 2014, juntamente com o encerramento de mais 19 tribunais do País, significou o agravamento da interioridade, foi um massacre e um ataque sem precedentes ao interior do País”. “Esta medida causou um enorme obstáculo aos cidadãos do município de Mesão Frio no acesso à Justiça e, consequentemente, foi uma machadada para o comércio local”, realçou o edil, muito preocupado com o facto de, “nos últimos dez anos, o concelho ter perdido mais de 10% da sua população”.
Por conseguinte, “as deslocações passaram a ter de ser feitas até ao Tribunal Judicial de Peso da Régua (a 13 quilómetros de distância da sede do concelho), ao tribunal de Chaves (a 100 km de Mesão Frio) e ao tribunal de Vila Real (a 40 km da vila de Mesão Frio), sendo que, neste caso, por se tratar de processos de Família e Menores, há uma maior pessoalidade do processo, o que obriga a que as pessoas tenham de se deslocar várias vezes, para a resolução dos problemas”.
Como argumenta o ex-responsável autárquico, “devido aos parcos recursos económicos da população e à insuficiente ou à inexistente rede de transportes públicos (para Vila Real e para Chaves não existe rede de transportes a partir de Mesão Frio), principalmente em dias de julgamento, houve um condicionalismo no acesso à Justiça”. “Além disso, o meu receio e o da população, na altura, era que, juntamente com o encerramento do tribunal, fossem encerrados outros serviços, vontade que chegou a ser expressa, nomeadamente, a de encerrar o Serviço de Finanças e os CTT”, confessava o anterior presidente do executivo camarário.
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“Mais do que uma medida desnecessária, foi completamente descabida”
A respeito da reforma do mapa judiciário, através da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do Decreto-Lei n.o 49/2014, de 27 de Março, avançados pela então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, o socialista Alberto Monteiro Pereira disse que, “no caso do Tribunal Judicial de Mesão Frio, mais do que uma medida desnecessária, foi completamente descabida, até porque as instalações desta comarca receberam obras de remodelação, na ordem dos 150 mil euros; e também porque, poucos meses depois de já estarem a decorrer as obras, com a empreitada contratada, foi anunciada a intenção do seu encerramento”. “Portanto, não fez absolutamente nenhum sentido e todos os pressupostos que estiveram na base deste encerramento não corresponderam à realidade”, repara o nosso entrevistado.
“Na altura, a análise da quantidade de processos entrados foi feita pelo Ministério da Justiça e não correspondia minimamente à verdade”, acusa o ex-presidente da edilidade, especificando: “A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, apontava como número mínimo 250 processos; e, pelas contas apresentadas pelo tribunal de Mesão Frio, em 2012, tivemos 256 processos entrados. No ano de 2011, tivemos 314 processos entrados e 453 processos pendentes, o que quer dizer que, em 2011, ficaram mais 46 processos pendentes do que no ano anterior. Portanto, na altura, o Ministério da Justiça baseou-se em pressupostos errados, porque considerou a base de dados do ano de 2008, mas aconteceu que depois desse ano, houve um aumento da pendência processual no Tribunal Judicial de Mesão Frio.”
Na oportunidade da entrevista ao sinalAberto, o mesmo dirigente autárquico lamentava que, “durante o período em que Paula Teixeira da Cruz esteve com a pasta da Justiça, os órgãos de soberania locais nunca foram tidos nem achados em toda esta reforma do mapa judiciário”. “Inclusivamente, numa das deslocações a Lisboa, os presidentes de câmara afectados por esta reforma, com o intuito de serem recebidos pela Senhora Ministra, foram recebidos pela polícia, à porta do Ministério, tendo sido autorizada a entrada de apenas um presidente, para ser recebido pela Chefe de Gabinete”, recordou, notando que com o Governo de António Costa, as necessidades dos municípios “foram auscultadas pela ministra Francisca Van Dunem”, tendo sido possível “reverter, em parte, esta situação”.
“O ideal e o nosso desejo seria ter o tribunal de Mesão Frio a trabalhar em pleno”, expõe este ex-líder autárquico transmontano. Todavia, reconhece que “o novo mapa judiciário veio facilitar o acesso da população à Justiça e reaproximá-la, uma vez que as pessoas deixaram de ter a necessidade de se deslocar à Régua, a Chaves ou a Vila Real”. Ou seja, “podem, agora, prestar declarações ou praticar qualquer acto processual, através do Tribunal Judicial de Mesão Frio, além das declarações através de videoconferência e de conseguirem dar entrada de qualquer requerimento ou solicitação para os vários tribunais, a par dos processos cíveis até aos 50 mil euros e de os crimes de penas inferiores a cinco anos poderem ser julgados no tribunal de Mesão Frio”.
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“Reforma judiciária veio intensificar o isolamento da população idosa”
Na óptica do mesmo político local, “a reforma judiciária veio intensificar, ainda mais, aspectos como o isolamento, especialmente da população idosa”. Pelo que observa: “Retirou-nos por completo a justiça. Assim, considero que este novo mapa judiciário [Alberto Pereira refere-se às alterações introduzidas na Lei da Organização do Sistema Judiciário, em 2017] veio facilitar o acesso da população à Justiça. Porém, nem sempre os julgamentos decorrem no Tribunal Judicial de Mesão Frio, por falta de vontade da magistratura e por ser mais cómodo para os senhores magistrados; mas não para os munícipes, pois grande parte dos habitantes do concelho não dispõe de recursos financeiros suficientes, nem de viatura automóvel própria, para deslocações aos tribunais de Peso da Régua, de Vila Real ou de Chaves. Uma vez que quase não existem transportes públicos. E pagar a um táxi pelo serviço prestado não está ao alcance de todos. Já para não referir que grande parte da população de Mesão Frio é maioritariamente idosa.”
Em relação à efectiva razão dos atrasos na Justiça e ao eventual contributo do novo mapa judiciário na agilização da respectiva engrenagem, Alberto Monteiro Pereira argumenta que “a redução da pendência ou entrada de novas acções ou processos poderá ter uma leitura que se justifica pelo facto de as pessoas que vivem nas zonas mais rurais e do Interior não terem os meios necessários para poderem recorrer à justiça; ou também por desconhecimento do novo mapa judiciário”. Por isso, admite que, “com este afastamento da justiça, esse tipo de situações agravou-se”. Consequentemente, “as pessoas do Interior passaram a ter dificuldades acrescidas no acesso à justiça”.
Atendendo à reactivação das 20 instalações encerradas em 2014, o nosso entrevistado constata que “não foram repostas, na totalidade, as competências da antiga comarca do tribunal de Mesão Frio, até porque este deixou de ter processos de Família e Menores, assim como processos de execuções e Ministério Público”. “Contudo, foram encurtadas distâncias da população no acesso à justiça e, por outro lado, foram repostos os direitos que o povo tem e que lhes foram retirados por critérios que nunca entendemos”, acrescentou o anterior presidente do executivo camarário.
Apesar de deixarem de ser opcionais e passarem a ser obrigatórios os julgamentos no município onde os factos foram praticados, nem sempre isso acontece. “No Tribunal Judicial de Mesão Frio, passaram a ser obrigatórios os julgamentos da área criminal e cível do concelho e julgamentos por videoconferências. As execuções passaram a ser tramitadas em Chaves e os crimes relacionados com família e menores passaram a ser em Vila Real”, informa Alberto Monteiro Pereira.
Relativamente a declarações prestadas por testemunhas, o nosso entrevistado diz que “houve um benefício introduzido, uma vez que os munícipes de Mesão Frio não precisam de se deslocar para qualquer sítio, independentemente do local onde se realize o julgamento, prestando declarações por videoconferência no tribunal de Mesão Frio”. Quanto aos crimes mais graves, “os julgamentos são realizados em Vila Real, podendo, no entanto, as testemunhas de Mesão Frio prestar declarações através de videoconferência”. Nestas circunstâncias, “não sendo o ideal, é o possível, uma vez que se perdeu a justiça de proximidade quanto a esses processos, porque antes da reforma judiciária, os juízes de círculo deslocavam-se à comarca de Mesão Frio para a realização desses julgamentos”.
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Dificuldades sentidas e identificadas pelo município
Admitindo que, nos juízos reactivados, seriam colocados oficiais de justiça em permanência de segunda a sexta-feira. E que, assim, estaria prevista a afectação de trabalhadores a cada um dos juízos de proximidade. Tendo o sinalAberto perguntado se isso se justifica, o então responsável autárquico de Mesão Frio respondeu afirmativamente, porque constata que “são necessários recursos humanos para permanecerem no atendimento ao público, para registos criminais e para os dias de julgamentos”. “Quando o funcionário de justiça, que se encontra afecto ao Tribunal Judicial de Mesão Frio, tem julgamentos ou diligências externas ou quando necessitar de faltar por qualquer motivo, o tribunal teria de encerrar. Assim, existe um serviço permanente e ágil”, alegou o edil transmontano, dando conta de que, em Mesão Frio, foi celebrado um protocolo com a autarquia, no sentido de, ali, colocar uma funcionária do município. “Nos juízos de proximidade, foi prevista a afectação de dois funcionários do Ministério da Justiça, mas isso nunca veio a acontecer em Mesão Frio, nem em outros municípios”, comentou.
Indagado sobre se as soluções tecnológicas e de racionalização ajudam a atenuar uma inadequada realocação ou redistribuição dos oficiais de justiça para servir as instalações aqui reactivadas, o então presidente da Câmara Municipal, considera que, “sem dúvida, vieram ajudar a atenuar a racionalização dos oficiais de justiça no tribunal de Mesão Frio, porque se evitam deslocações aos tribunais”. Contudo, a seu ver, “deveriam ser colocados, pelo menos, dois funcionários judiciais, terminando assim, o protocolo entre o município e o Ministério da Justiça”.
As dificuldades que foram sentidas e identificadas pelo município, relativamente aos agentes judiciários, “consistem na deslocação de vários advogados, que tinham escritório em Mesão Frio e que deixaram de o ter, tendo aberto escritório noutros municípios, onde existiam tribunais abertos”, notou Alberto Pereira, que jamais foi recebido pela anterior ministra da Justiça. Daí a apreciação: “Paula Teixeira da Cruz nunca demonstrou abertura para tal. Porém, fui recebido pela actual ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, num espírito de diálogo, auscultando sempre as minhas preocupações e as inquietações dos munícipes, que lhe foram transmitidas”.
“O ideal para os cidadãos e para os agentes económicos era que a justiça que se pratica no município fosse dentro dos mesmos moldes da reforma de 2014, com as necessárias adaptações a todas as novas tecnologias, o que faria com que houvesse uma justiça muito melhor para os nossos munícipes”, exprimiu o anterior presidente da edilidade, o qual não considera que faltem mecanismos que permitam à sociedade (sobretudo, no contexto das comunidades locais e regionais) identificar o papel primordial do poder judicial e judiciário. “Até porque toda a população reconhece o valor primordial do poder judicial e judiciário e prova disso foi quando, em 2014, encerraram os tribunais, os munícipes manifestaram-se contra esse encerramento, com várias acções de protesto, terminando com mais de uma ida a Lisboa”, sublinhou, notando que, “nessa altura, o município não teve condições para transportar todas as pessoas que mostraram interesse em participar nessas manifestações”.
Mais de dois anos depois de estabelecida a nova organização judiciária do território (entre 1 de Setembro de 2014 e 4 de Janeiro de 2017), a ministra Francisca Van Dunem avançou com um novo mapa judiciário que possibilitou a reabertura de 20 tribunais de primeira instância. A esse respeito, Alberto Pereira supõe que “os princípios constitucionais de acesso ao Direito e aos tribunais foram repostos, tendo sido, desta forma, corrigidos todos os constrangimentos causados aos munícipes”. “Apesar de que, no entender da Câmara Municipal, poderíamos ter ido mais longe e ter acrescentado mais valências judiciais”, complementa.
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“As pessoas deixaram de exercer o direito à Justiça”
No que se relaciona com os impactos locais, a nível sociodemográfico, económico e cultural, que se verificaram (ou que ainda se fazem sentir) devido ao encerramento do tribunal local, o nosso entrevistado reafirma que “são os que todos já conhecemos e já debatemos”. Porém, “o encerramento do tribunal veio acentuar assimetrias, provocar um maior isolamento e vedar o acesso da população mais carenciada à Justiça”. Para o ex-autarca transmontano, “o encerramento do Tribunal Judicial de Mesão Frio veio causar constrangimentos e a negação do acesso à Justiça foi um deles, sobretudo quando estamos a falar de uma população economicamente carenciada e que sofre com todos os factores da interioridade, nomeadamente, a fraca ou inexistente rede de transportes”.
Na, então, qualidade de representante do município, o socialista Alberto Pereira relevou que “aquilo que há a corrigir é a reabertura integral do Tribunal Judicial de Mesão Frio”. Pois, na sua percepção, “um dos resultados mais visíveis face ao encerramento do tribunal local foi o facto de as pessoas deixaram de exercer o direito à Justiça, porque a nível económico tornou-se ainda mais caro”.
Segundo reparou, “com a nova reforma houve alguns constrangimentos”. Todavia, o anterior presidente da edilidade de Mesão Frio não considera “que os grandes males da Justiça, em Portugal, tenham origem no novo mapa judiciário”. “Aquilo que a política poderá explicar relativamente ao problema que ganhou dimensão, ou seja, o aumento das pendências nos tribunais das grandes cidades terá a ver com a proximidade da justiça aos grandes grupos ou sociedades de advogados e ao afastamento do advogado de escritório e da população”, denuncia o ex-autarca deste concelho já sob a influência do Douro e que, sob o aspecto sociodemográfico, “é composto, maioritariamente, por população envelhecida e com nível económico baixo, o que faz com que qualquer alteração seja um factor decisivo na economia local, como foi a questão do encerramento do tribunal”.
“No tecido empresarial, ficaram marcas profundas; sobretudo, no comércio local e na restauração”, menciona Alberto Monteiro Pereira. “Quem tinha de se dirigir a Mesão Frio para um julgamento, nomeadamente, testemunhas e advogados, acabava por ter de passar o dia por cá, fazer refeições e, em alguns casos, recorrer ao transporte de táxi e fazer compras em Mesão Frio”, especifica, concluindo: “Hoje, sabemos que isto não acontece com a mesma regularidade. As deslocações que eram feitas às pequenas comarcas passaram a ser feitas, ainda mais, aos grandes centros. Para as populações locais, os gastos avultados com as deslocações fizeram com que reconsiderem recorrer à Justiça.
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“As pessoas tinham de ir de carro de praça”
Com 75 anos de idade, é um agricultor aposentado no concelho que o viu nascer e fazer-se homem. Natural do município de Mesão Frio, Manuel Martins recorda-se da altura em que as pessoas andavam revoltadas com o encerramento do tribunal concelhio. “Eu nunca tive problemas com os tribunais, mas acho que o nosso tribunal não deveria ter sido fechado. Se não sou eu a precisar, outros precisarão! E as pessoas tinham de ir para a Régua ou para Vila Real”, relembra.
Relativamente às despesas com as deslocações, Manuel Martins salienta as dificuldades sentidas por quem tinha de apanhar um táxi, a fim de estar presente nas sessões de julgamento ou para tratar de outros assuntos no tribunal. “Naquele tempo [no período de 2014 a 2017], porque quase não havia camionetas, as pessoas tinham de ir de carro de praça, o que era um dinheirão”, rememora este antigo trabalhador da terra e dos vinhedos. “Para Vila Real, eram 10 contos [ou seja, aproximadamente 50 euros] e para a Régua eram três ou quatro contos”, refere o cidadão Manuel Martins, dizendo que muita gente “andava incomodada com isso”, até porque “tinha o tribunal de Mesão Frio a dois passos e via-se obrigado a andar muitos quilómetros para outro fora do concelho”. Algum tempo depois, o antigo agricultor viu ser reaberto o tribunal local, mas não sabe como agora funciona.
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“Preferiam desistir dos casos, em vez gastarem dinheiro em táxis”
“Parte da população, quando tinha processos em tribunal e necessitava de se deslocar para Vila Real ou para Chaves, como era o caso, desistia dos processos”, rememora o taxista Vítor Benedito, com carro de praça em Mesão Frio.
“Eu cheguei a falar com advogados e eles próprios diziam que os clientes preferiam desistir dos casos, em vez de andarem a gastar dinheiro em táxis e nessas coisas todas”, confirma o motorista de automóvel destinado ao transporte de passageiros e provido de um taxímetro que não pára em serviço. Por isso, pesa bastante nos parcos proventos de quem, por vezes, deixa de comprar pão para adquirir medicamentos, atendendo à reforma que não estica.
Actualmente, de Mesão Frio a Chaves, incluindo a bandeirada e os quilómetros rodados, a viagem fica em cerca de 120 euros, com ida e volta, informa Vítor Benedito, “não esquecendo que o carro também conta o tempo de espera”. “As pessoas receiam e começam a fazer contas à vida e desistem de muitos casos”, repete este profissional no transporte de passageiros há oito anos, o qual não se lembra de ter efectuado, pelo menos, um serviço para o tribunal de Chaves ou para o de Vila Real. “Nada disso!”, garante Vítor Benedito, um dos seis taxistas da vila.
Acerca do encerramento da antiga comarca do concelho, este cidadão de Mesão Frio observa que “um tribunal fechado pouco representa, porque as pessoas sabem que o têm ali, mas que não vale nada”. “E ao ser reaberto com menos condições é, praticamente, o mesmo que estar fechado. É, basicamente, a mesma coisa. Assim, as pessoas preferem desistir das causas. Na actual conjuntura, fazem muitas contas à vida!”, expressa ainda Vítor Benedito.
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“Isto foi feito para que diminuíssem as despesas com a Justiça”
“A reactivação dos tribunais é um exagero de linguagem!”, começa por fazer notar o advogado Nuno Almeida Machado, com escritório aberto em Mesão Frio, com o qual abordámos um conjunto de questões relacionadas com o novo mapa judiciário e com os ajustamentos posteriores, já em 2017, tendo em vista uma justiça mais próxima dos cidadãos. Para este causídico, a situação relativamente aos tribunais “está muito pior do que o que estava, antes de 2014”. “Porque nós, em Mesão rio, tínhamos um tribunal que acumulava com Resende – localidade que, de carro, fica a quinze minutos – e também tínhamos aqui o juiz, dois a três dias por semana, quando não estava a tempo inteiro. De facto, nessa altura, havia o exercício da justiça, atempadamente”, expressa o advogado.
“Antes de qualquer alteração ao mapa judiciário, o tribunal de Mesão Frio existia efectivamente. Era uma comarca na plenitude das suas funções. Ou seja, tinha as competências normais de um tribunal de ingresso ou de pequena instância. Nós víamos, por exemplo, processos que entravam em Janeiro ou Fevereiro e em Junho ou Julho já tinham sentença. Depois das alterações que fizeram, com o novo mapa, nós deixámos de ter tribunal, passando este a ser quase um julgado de paz”, recorda o causídico em tom crítico.
“A partir de Setembro de 2014, tiraram-no de vez, fechou tudo!”, lamenta Nuno Almeida Machado, notando que, “agora, temos um juízo de proximidade”. “O que é que isto quer dizer?”, questiona. “Quer dizer que o tribunal competente é o da Régua e que os juízes vêm aqui fazer, apenas, o julgamento. É verdade que fica a uma dúzia de quilómetros. Para os senhores de Lisboa, é fácil decidir isto, porque têm uma rede de transportes que o erário público paga e que o Interior não tem”, comenta o mesmo advogado de Mesão Frio, lamentando a carência de transportes públicos locais. “Se um cidadão de uma aldeia tiver de ir ao tribunal da Régua tem de chamar um táxi. O que lhe fica dispendioso”, salienta.
“Isto foi feito para que diminuíssem as despesas com a Justiça, apenas e só, para tentar ultrapassar um défice de funcionários, concentrando-os”, acusa o causídico transmontano, observando que, entretanto, no juízo de proximidade local, “o funcionário que lá está morre de tédio”. “Ele limita-se a acompanhar os julgamentos (quando os há) na sala de audiências, fazendo as chamadas e elaborando as respectivas actas. Normalmente, durante o seu dia de trabalho, faz as notificações por via electrónica, como se estivesse na Régua. Mas o cidadão comum do concelho de Mesão Frio não tem aqui o juiz nem tem o procurador da República”, afirma Nuno Almeida Machado.
No que se refere ao impacto socioeconómico no concelho, o advogado verifica que, “em termos comerciais, foi bastante grande”, porque, “até ao fecho [no ano de 2014], o tribunal movimentava, semanalmente, cem ou duzentas pessoas”. Depois de ter passado a juízo de proximidade, “durante muito tempo, os juízes não vinham cá; apenas vinha o de Crime”, confirma. “Só depois, talvez por alguma pressão, é que começaram também a haver julgamentos nas áreas de matéria cível e criminal”, particulariza o nosso entrevistado, referindo-se à confusão que tem existido no período pandémico: “Podem-lhe chamar Justiça, mas isto não é a actividade como se perspectiva, porque esses meios de vídeo e de gravação são muito úteis, mas não há nada como o presencial.”
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“O que ainda conta é o distrito”
No entender de Nuno Almeida Machado, a metodologia utilizada para o encerramento, em 2014, de 20 tribunais, no contexto de novo mapa judiciário “não foi a mais correcta, porque, na altura, foi usado o método da pendência dos processos entrados”. O problema consistiu no facto de “eles só contabilizarem determinadas acções, tendo havido uma retirada de processos”. Por exemplo,” as cartas precatórias [cartas dirigidas por um juiz de uma circunscrição, de uma comarca ou de um tribunal a outro magistrado] não entravam, porque eram assuntos judiciais que provinham de outro tribunal para fazer determinadas diligências que, posteriormente, voltavam ao tribunal de origem”. “Eles [Ministério da Justiça, sob a tutela de Paula Teixeira da Cruz, através da Direcção-Geral da Administração da Justiça] retiraram tudo isso. Então, nós [comarca de Mesão Frio] ficávamos ali no limite ou ligeiramente abaixo dos tais 250 processos exigidos”, clarifica Nuno Almeida Machado, para quem o “grande erro dos políticos” é, entre outros, o de seguirem a “divisão administrativa de 1910”, apesar de já, “no tempo de José Sócrates, terem sido extintos os governos civis”. “Eles encurtaram por um lado, mas, para quem se socorre dos tribunais, na nossa zona, o que ainda conta é o distrito!”, repara o causídico, lembrando-se que, porém, o diploma que procedia à aprovação do regime das comarcas-piloto, pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais), estabelecia o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais com base nas NUTS (nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos).
“Os problemas de Família e de Menores são todos tratados no distrito, em Vila Real. Quais são, aqui, as famílias que têm graves problemas? São as famílias de fracos recursos que, muitas vezes, nem têm transportes para resolveram as suas questões em Vila Real, a uma distância de aproximadamente 42 quilómetros. E, se lhes marcarem uma audiência para as nove ou dez horas da manhã, não têm transporte. Assim, terão de ir de táxi ou ir dormir ao hotel. Então, se não têm recursos para uma coisa têm recursos para outra?”, interroga Nuno Almeida Machado, acrescentando: “A situação agrava-se ainda mais porque se socorrem do patrocínio oficioso (ou apoio judiciário) e também porque vai um advogado, daqui para Vila Real, uma, duas ou três vezes… Como é que apresenta despesas de transporte, se vai no seu automóvel?”
Outra situação apresentada pelo causídico de Mesão Frio prende-se com o facto de o tribunal especializado de execuções (ou tribunal de execução das penas) estar situado em Chaves, obrigando as populações de todo o distrito de Vila Real a deslocarem-se para aquela cidade raiana, sempre que necessário. “Chaves fica na ponta do distrito. São cento e tais quilómetros… Gasto mais dinheiro a chegar a Chaves do que daqui ao Porto!”, expõe o advogado. “É bonito falar-se da especialização. O problema é que ter de andar cem ou mais quilómetros, aqui no Norte, não é equivalente a percorrer a mesma distância em Lisboa, onde há uma diversificada rede de transportes, por um valor reduzido”, acentua Nuno Almeida Machado, comentando que, por exemplo, “uma execução de mil euros, às vezes, não compensa”. A seu ver, a coesão social e territorial deveria começar na divisão administrativa dos tribunais. A esse respeito, o advogado recorda que no município de Mesão Frio, “existem pessoas que não têm outra forma de chegar a esses tribunais que não seja de táxi, quando estão a quinhentos metros do tribunal local”. Assim, sabendo da sobrecarga processual de outros tribunais, pergunta: “Não é possível destrinçar isso, esquecendo as capelinhas dos presidentes de câmaras?”
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16/10/2021
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A SEGUIR:
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A reforma da Justiça no distrito de Viseu: impactos em Armamar, Resende e Tabuaço
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* No decurso das próximas semanas, no jornal sinalAberto, continuaremos a desenvolver o dossiê com o título genérico “Justiça: o que não se lê no mapa”, no âmbito das Bolsas de Investigação Jornalística 2020, atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian.