Justiça: o que não se lê no mapa (7)*
Sever do Vouga e Penela: os caminhos da Justiça entre o Baixo Vouga e o Pinhal Interior Norte
O advogado Manuel Costa dos Santos, com escritório em Sever do Vouga, considera que a reforma do mapa judiciário avançada pela então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, “foi uma medida correcta”. “Há nisto tudo, como em todas as reformas, umas situações que resultam melhor e outras que resultam pior”, comenta.
Em contraponto, na reunião ordinária do executivo municipal realizada a 12 de Fevereiro de 2014, quanto ao encerramento do tribunal severense, foi aprovado, por unanimidade, “manifestar a sua recusa em aceitar aquela medida” que a edilidade considerava “injusta para o cidadão” e comunicar que estava “absolutamente contra o encerramento do Tribunal”.
O anterior presidente da Câmara Municipal de Penela, Luís Matias, diz que se justifica “a existência de um tribunal, da mesma forma que se justifica a existência de um conjunto de serviços básicos do Estado essenciais para a competitividade dos próprios territórios”.
“A partir do momento em que se fecha um tribunal, as pessoas ficam com a sensação de que se está a dificultar o acesso à Justiça, tendo em conta a proximidade a que estavam habituadas”, considera a causídica Andreia Pascoal (delegada da Ordem dos Advogados), recordando que os processos de Penela passaram a ser tratados no Juízo de Competência Genérica de Condeixa-a-Nova, que tem apenas uma sala de audiências.
No distrito administrativo de Aveiro, na então circunscrição do Baixo Vouga – no quadro da anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto) – e da respectiva comarca-piloto (que avançaria em 2009, por um período experimental de dois anos, enquanto não eram decididos os destinos das restantes comarcas da região), o município de Sever do Vouga, que tinha 13.186 residentes em 2001, viu decrescer a sua população em 6,36%, numa década, tendo aí sido registadas 12.347 pessoas no ano de 2011 (ou 12.356, segundo o Instituto Nacional de Estatística – INE). Essa tendência é confirmada pela Pordata (Base de Dados Portugal Contemporâneo), notando-se que a população residente neste concelho era de 12.449, em 2010, e de 11.367, no ano de 2019.
O INE divulgou, a 28 de Julho de 2021, os Resultados Preliminares do XVI Recenseamento Geral da População e VI Recenseamento Geral da Habitação – Censos 2021, menos de quatro meses após o momento censitário. De acordo com estes dados, o município de Sever do Vouga apresenta uma variação negativa de 10,4% entre os registos populacionais de 2011 e de 2021 (com 11.069 habitantes).
A respeito da anterior proposta de reorganização das comarcas, a Comarca de Aveiro assentava, em Janeiro de 2012, no distrito administrativo e compreendia as comarcas de Águeda, de Albergaria-a-Velha, de Anadia, de Arouca, de Aveiro, de Castelo de Paiva, de Espinho, de Estarreja (incluindo o município da Murtosa), de Ílhavo, da Mealhada, de Oliveira de Azeméis, de Oliveira do Bairro, de Ovar, de Santa Maria da Feira, de São João da Madeira, de Sever do Vouga, de Vagos e de Vale de Cambra.
No que se relaciona com a organização e os recursos humanos, ao tribunal de Sever do Vouga, já no âmbito da Comarca do Baixo Vouga, estavam atribuídos o juízo de média e pequena instância cível (para as causas de valor até cinco mil euros e respeitantes ao pagamento de dívidas, a indemnizações por dano e à entrega de objectos móveis) e o juízo de média e pequena instância criminal, existindo então dois juízes no quadro legal, mas nenhum em exercício, conforme informação reportada a 16 de Junho de 2011. Refira-se que o único magistrado do Ministério Público do respectivo quadro legal exercia funções locais. Dos oito oficiais de justiça previstos no quadro legal, sete estavam a exercer funções em Sever do Vouga.
Relembramos que o tribunal, anteriormente, ocupou parte do edifício da Câmara Municipal, mas hoje está instalado num imóvel pertencente à Santa Casa da Misericórdia, coexistindo com um infantário. Porém, este último edifício foi, numa primeira fase, totalmente ocupado por um lar para idosos.
Como anotação, recordamos que – como escreve o jornalista Luís Rosa, no livro 45 anos de combate à corrupção – o final dos anos 80 “fica marcado na história do Ministério Público pela revolução do Código de Processo Penal de 1987, pela revisão constitucional de 1989 e, acima de tudo, pelo início da implementação de um modelo de especialização preconizado pelo procurador-geral Cunha Rodrigues”. Assim, a “fase de investigação passou a ser exclusivamente liderada pelo Ministério Público, com a coadjuvação de um órgão de polícia criminal”, acrescenta o mesmo autor.
Ao considerarmos o movimento processual e a média de processos entrados entre 2008 e 2010, a comarca de Sever do Vouga totaliza 648, nos quais se incluem (por ordem decrescente) 257 execuções, 100 processos no âmbito da Família e Menores, 64 de média instância criminal, 55 no domínio do Trabalho, 54 de média instância cível, 52 de pequena instância criminal (para os crimes de pequena e média gravidade), 23 de pequena instância cível, 17 de grande instância cível, 13 relacionados com a área do Comércio, 11 processos de instrução criminal e dois processos de grande instância criminal. Nas 20 comarcas que acabariam por ser encerradas pelo Ministério da Justiça (MJ), a partir de Setembro de 2014, o tribunal de competência genérica de Sever do Vouga foi o que o que registou maior média de entradas ou maior movimento de processos contabilizados pela Direcção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ), serviço do MJ que tem por missão assegurar o apoio ao funcionamento dos tribunais.
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Na comarca-piloto do Baixo Vouga
A resposta judiciária no concelho de Sever do Vouga, em 2012, ainda no contexto da comarca-piloto do Baixo Vouga, relativamente às causas cíveis (de Direito Civil), era dada pelo juízo de grande instância cível (JGIC) de Anadia, bem como pelo juízo de pequena e média instância cível (JMPIC) de Sever do Vouga e pelo juízo de execução (JExe) de Águeda. No âmbito do Direito Penal, os cidadãos deste município eram atendidos pelo juízo de instrução criminal (JInsCrim) de Águeda e pelo juízo de instância criminal (JICrim) de Sever do Vouga.
De acordo com a então proposta organizativa, no contexto da instância central do Tribunal Judicial do Distrito de Aveiro, foram consideradas as primeiras secções cíveis e criminais de Aveiro (cujas áreas de competências territoriais abrangeriam os municípios de Águeda, de Albergaria-a-Velha, de Anadia, de Aveiro, de Estarreja, de Ílhavo, da Mealhada, da Murtosa, de Oliveira do Bairro, de Ovar, de Sever do Vouga e de Vagos) e as segundas secções cíveis e criminais de Santa Maria da Feira.
A nível das secções de competência especializada, previa-se a instalação da 1.ª Secção do Trabalho de Águeda, da 2.ª Secção do Trabalho de Aveiro (com uma área de competência territorial que englobaria os municípios de Albergaria-a-Velha, de Aveiro, de Estarreja, de Ílhavo, da Murtosa, de Ovar, de Sever do Vouga e de Vagos), da 3.ª Secção do Trabalho de Oliveira de Azeméis e da 4.ª Secção do Trabalho de Santa Maria da Feira.
No que se relaciona com as secções de Família e Menores (FM), foram então projectadas a 1.ª Secção de FM de Aveiro, a 2.ª Secção de FM de Estarreja (refira-se que a sua área de competência territorial se estenderia aos municípios de Albergaria-a-Velha, de Estarreja, da Murtosa, de Oliveira de Azeméis, de Ovar e de Sever do Vouga), a 3.ª Secção de FM de Oliveira do Bairro e a 4.ª Secção de FM de Santa Maria da Feira.
No que tocava às sugestões de secções de execução, foram salientadas a 1.ª Secção de Execução (SE) de Águeda (com uma área de competência territorial que iria abranger os municípios de Águeda, de Albergaria-a-Velha, de Anadia, de Ílhavo, da Mealhada, de Oliveira do Bairro, de Sever do Vouga e de Vagos), a 2.ª SE de Ovar e a 3.ª SE de Vale de Cambra.
A respeito das secções de instrução criminal (IC), foram mencionadas a 1.ª Secção de IC de Águeda (esta com uma área de competência territorial adstrita aos municípios de Águeda, de Albergaria-a-Velha, de Anadia, da Mealhada, de Oliveira do Bairro e de Sever do Vouga), a 2.ª Secção de IC de Aveiro e a 3.ª Secção de IC de Santa Maria da Feira.
A nível das causas do foro comercial no alcance da instância central do Tribunal Judicial do Distrito de Aveiro (TJDA), foi considerada a 1.ª Secção de Comércio de Aveiro (cuja área de competência territorial iria abarcar os municípios de Águeda, de Albergaria-a-Velha, de Anadia, de Aveiro, de Estarreja, de Ílhavo, da Murtosa, da Mealhada, de Oliveira do Bairro, de Ovar, de Sever do Vouga e de Vagos) e a 2.ª Secção de Comércio de São João da Madeira.
Assim, como é referido pela DGAJ, no Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária, publicado em Janeiro de 2012, a nível das instâncias locais do TJDA e relativamente ao volume expectável subsistente à especialização anteriormente proposta, eram então previstos, na comarca de Sever do Vouga, 77 processos na área cível e 116 processos na área criminal, totalizando 193 peças.
Extinção do tribunal de Sever do Vouga
A análise de vários factores – a exemplo do movimento processual, da evolução demográfica e da inexistência ou insuficiência de instalações adequadas – terá servido de argumento para justificar a extinção de tribunais no distrito de Aveiro (sobretudo, em Castelo de Paiva e em Sever do Vouga). Todavia, apenas o tribunal de Sever do Vouga encerrou, com a reforma implementada a 1 de Setembro de 2014, através da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março.
Tendo em conta que a comarca de Sever do Vouga apresentava “valores inferiores, quer de movimento processual, quer de população, relativamente à comarca de Albergaria-a-Velha”, a DGAJ propôs a extinção do Tribunal de Sever do Vouga, cujo edifício era arrendado, em detrimento do edifício do Tribunal de Albergaria-a-Velha, que é propriedade do Estado, além de ter considerado que “existem bons acessos rodoviários entre os dois municípios”.
De acordo com o anexo do documento Indicadores de A[c]tividade nos Arquivos dos Tribunais 2014, publicado em Março de 2015, pela Direcção-Geral da Administração da Justiça, com o encerramento do núcleo ou instância de Sever do Vouga, o seu arquivo, relativamente a 2014, foi transferido para o núcleo de Albergaria-a-Velha, tendo uma extensão de prateleiras com 184 metros e uma extensão documental com 161 metros, a que corresponde um saldo positivo de 23 metros. O mesmo documento não indica o total de processos eliminados e remetidos para o arquivo distrital entre 2003 e 2014.
Considerando a LOSJ (de 26 de Agosto de 2013), uma das 23 comarcas previstas para o País é a Comarca de Aveiro, com sede na capital do distrito, que integra, entre outros, o município de Sever do Vouga. Menos de um ano depois, o Decreto-Lei n.º 49/2014 (de 27 de Março) veio regulamentar a Lei da Organização do Sistema Judiciário e estabeleceu o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais, criando o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro (TJCA), o qual integra secções de instância central e secções de instância local.
O concelho de Sever do Vouga passou a estar inserido na área de competência territorial das seguintes secções de competência especializada da instância central do TJCA: 1.ª Secção Cível e 1.ª Secção Criminal de Aveiro; 1.ª Secção de Família e Menores de Aveiro; 1.ª Secção do Trabalho de Aveiro; 1.ª Secção de Comércio de Aveiro; 2.ª Secção de Instrução Criminal de Águeda e 1.ª Secção de Execução de Águeda.
Ainda de acordo com o Mapa III do Decreto-Lei n.º 49/2014 (de 27 de Março), o município de Sever do Vouga fica, por outro lado, compreendido na área de competência territorial da instância local (secção de competência genérica) de Albergaria-a-Velha.
Entrevista em período pré-eleitoral
Na manhã de 24 de Agosto de 2021, numa terça-feira de Verão, o então presidente da Câmara Municipal de Sever do Vouga recebeu o sinalAberto para falar dos impactos do novo mapa judiciário e das consequências do encerramento, durante mais de dois anos, do tribunal local. Um mês e dois dias depois, o socialista António José Martins Coutinho não foi reeleito para o seu terceiro mandato no executivo severense, tendo sido substituído pelo social-democrata Pedro Amadeu Fernandes Lopes Lobo, cuja lista obteve 43,51% dos votos, garantindo três dos sete lugares disponíveis na vereação. A candidatura do Partido Socialista (PS) registou 28,85% dos votos, perdeu dois mandatos e passou a ocupar dois lugares na edilidade, os mesmos que os centristas, actualmente, a terceira força política neste concelho.
Refira-se que, entre 2009 e 2021, o PS presidiu à autarquia local, com maioria relativa (conseguindo votações pouco acima de 46%, nos actos eleitorais de 2009, de 2013 e de 2017) e sempre com quatro lugares na vereação. António José Coutinho sucedeu ao também socialista Manuel Silva Soares, o qual, já no final do seu terceiro mandato, se viu confrontado com a possibilidade de extinção do tribunal de Sever do Vouga.
No início da nossa conversa, António José Coutinho faz notar que “Sever do Vouga é o concelho mais interior não do distrito de Aveiro, mas da Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro” (CIRA), criada a 1 de Setembro de 2008, por extinção da Grande Área Metropolitana de Aveiro e da Associação de Municípios da Ria. “Nós pertencemos à CIRA e, entre os onze municípios [Ovar, Murtosa, Estarreja, Sever do Vouga, Aveiro, Albergaria-a-Velha, Ílhavo, Águeda, Vagos Oliveira do Bairro e Anadia], somos o mais interior e o que faz a ligação entre o litoral e a serra. Estamos, aqui, já no limite serrano. Diria que, em termos territoriais somos muito mais da serra e muito mais parecidos com Lafões [território, outrora conhecido por Terra de Lafões, situado na região hidrográfica do rio Vouga] ou, até, com o Norte – por exemplo, com Vale de Cambra – do que com a zona litoral”, observa o autarca.
Com uma área de 129,9 quilómetros quadrados (km2), sete freguesias e uma densidade populacional de 93,4 habitantes/km2, segundo a Carta Administrativa Oficial de Portugal (CAOP) 2013 e os Censos 2011 (ano de referência: 2012 – INE), este município, a nível das características humanas dos seus residentes, “não se distingue muito dos outros concelhos” limítrofes. “Há algumas coisas que são nossas. Sejam elas da serra ou do litoral, são marcas da nossa gente. Talvez pelo facto de estarmos um pouco mais isolados. Penso que terá também a ver com o espírito solidário e com um nível de acolhimento espectacular. As pessoas são bastante acolhedoras. Temos boa gente. O melhor que cá temos são as pessoas!”, expressa o edil socialista.
Ao aproveitarmos esta deixa, perguntámos qual a necessidade de um tribunal local. O então presidente da Câmara de Sever do Vouga respondeu que “as valências que um tribunal tem são sempre precisas, embora, actualmente, sejam poucas; hoje, têm a ver com o pequeno crime e com o foro cível [em que se julgam causas cíveis, procurando reconhecer em tribunal um direito, bem como prevenir a sua violação ou impor a sua realização], sobretudo, relacionado com as propriedades e com o comércio”.
Não querendo designar o presente atendimento público, a nível da justiça local, como uma prestação de serviços através de “guichê” (envolvendo, por exemplo, a consulta de processos judiciais ou o requerimento de emissão de qualquer certidão judicial, que também podem ser efectuados por via electrónica), António José Coutinho afirma que são, ali, realizadas “audiências e diligências”, entre outros actos judiciais.
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“As coisas vão funcionando”
Como constata o edil severense, o juiz está presente de acordo “com a necessidade”. “Parece-me que as coisas vão funcionando sem grande acumulação nem grandes atrasos. Quando é necessário, o juiz vem cá!”, refere, embora gostasse que o actual juízo de proximidade tivesse mais competências: “As coisas não estão totalmente bem. O ideal seria que nós tivéssemos tudo, como têm outros!” “Eu penso que continuamos a deslocarmo-nos para tratar de casos que tenham a ver com a Família e Menores ou com o Trabalho. E, portanto, isso implica grandes deslocações, porque qualquer uma dessas especialidades não está localizada num sítio, apenas. Para algumas coisas vamos a um lado e para outras vamos a outros!”, manifesta António José Coutinho, o qual nota que, “antes de fechar [em Setembro de 2014], funcionava, mais ou menos, nos moldes em que funciona agora”.
Questionado sobre se o antigo tribunal dispunha de competências genéricas, o ainda (em Agosto de 2021) presidente da autarquia responde: “Não tinha assim tantas, por aí! Teve também a ver com a reorganização, na altura [o autarca alude à Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto]. Mas, o que se fazia aqui era muito banal.”
No entanto, em Novembro de 2014, no editorial da primeira edição do Boletim Municipal do seu primeiro mandato autárquico que, então, se tinha iniciado há um ano, António José Coutinho escreve: “Um mandato autárquico é um percurso de lutas e conquistas, mas acima de tudo de esperança na resolução de problemas do município e dos munícipes. Mas não existem apenas conquistas e sucessos, também tivemos coisas más como o encerramento do Tribunal, embora pela a[c]ção do governo, e que constitui para nós uma grande perda. Trata-se da perda do direito à justiça ou da dificuldade do acesso à mesma.”
Num breve apontamento, em relação à organização judiciária neste município, recordamos que, através do Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio (que aprovava o regulamento da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, denominada Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – LOFTJ; este diploma seria, posteriormente, revogado pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), foi criado o Tribunal da Comarca de Sever do Vouga, o qual era uma instância com competência genérica, estando integrado no Círculo Judicial de Aveiro, do Distrito Judicial de Coimbra.
Já em 2008, com a reforma do mapa judiciário impulsionada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto (NLOFTJ), foi extinta a comarca de Sever do Vouga [tendo em conta o artigo 19.º, n.º 2 alínea i, do Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de Janeiro: “São extintas as seguintes comarcas: a) Albergaria-a-Velha; b) Águeda; c) Anadia; d) Aveiro; e) Estarreja; f) Ílhavo; g) Oliveira do Bairro; h) Ovar; i) Sever do Vouga; j) Vagos.”]. Assim, o município de Sever do Vouga passou a fazer parte da Comarca do Baixo Vouga (com sede em Aveiro), uma das três comarcas-piloto da reforma inerente à NLOFTJ.
Com efeito, Sever do Vouga passou a ser sede do juízo de média e pequena instância cível e sede de juízo de instância criminal (conforme o artigo 15.º, n.º 2 alínea l e n.º 3 alínea g do Decreto-Lei n.º 25/2009).
Com todas estas alterações, o Tribunal da Comarca de Sever do Vouga foi, na realidade, transformado no Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Sever do Vouga e no Juízo de Instância Criminal de Sever do Vouga (igualmente, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 25/2009), “tendo os processos pendentes no Tribunal da extinta Comarca de Sever do Vouga transitado, consoante as áreas, para o Juízo de Comércio de Aveiro, para o Juízo de Execução de Águeda, para o Juízo de Instrução Criminal de Águeda, para o Juízo de Grande Instância Cível de Anadia […] e para os respe[c]tivos juízos de média e pequena instância cível e de instância criminal”, como nos informa a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, no Relatório Final da Petição n.º 419/XII/3.ª – “Contra o encerramento do Tribunal de Sever do Vouga”, de que falaremos mais adiante.
No seguimento do mesmo diploma (Decreto-Lei n.º 25/2009, mapa I do Anexo), o concelho de Sever do Vouga configurou a sua integração na área de competência territorial dos juízos de competência especializada indicados: Juízo de Trabalho de Aveiro, Juízo de Família e Menores de Estarreja, Juízo de Comércio de Aveiro, Juízo de Instrução Criminal de Águeda, Juízo de Execução de Águeda, Juízo de Grande Instância Cível de Anadia; Juízo de Média e Pequena Instância Cível de Sever do Vouga e Juízo de Instância Criminal de Sever do Vouga.
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“Medida injusta para o cidadão”
Sabemos que, na reunião ordinária do executivo municipal realizada a 12 de Fevereiro de 2014, no ponto que dizia respeito ao encerramento do tribunal severense, foi aprovado, por unanimidade, “manifestar a sua recusa em aceitar aquela medida” que a edilidade considerava “injusta para o cidadão” e comunicar que estava “absolutamente contra o encerramento do Tribunal”. Na mesma reunião, como regista a aludida edição do Boletim Municipal, foi deliberado mandatar o presidente da Câmara para “avançar com as medidas junto da ANMP [Associação Nacional dos Municípios Portugueses], CIRA e o conjunto de municípios afe[c]tados por esta medida para travar a decisão tomada, podendo avançar com a providência cautelar.”
Diga-se ainda que, na reunião ordinária de 9 de Julho de 2014 (ano em que se celebrava cinco séculos da Carta de Foral atribuída a Sever do Vouga pelo rei D. Manuel I, a 29 de Abril de 1514), o executivo municipal “tomou conhecimento do conteúdo da carta enviada ao município pela bastonária da Ordem dos Advogados [Elina Fraga], a convidar a Câmara Municipal para participar num protesto nacional”, no dia 15 de Julho de 2014, em frente à Assembleia da República; ou seja, uma manifestação contra a reorganização judiciária (novo “mapa judiciário”).
Mesmo considerando os critérios da DGAJ para a extinção da comarca de Sever do Vouga, “na minha perspectiva, nunca haveria justificação”, supõe o autarca. “Por isso é que lutámos pela sua continuidade. Penso que, mesmo assim, nessa altura, foi duplamente injusto, também pelo número de processos que tínhamos. Então, nós apresentámos as razões que justificavam a continuidade do tribunal. E tínhamos mais do que os 250 processos exigidos”, reafirma António José Coutinho, comentando: “Foram feitas, aí, umas contagens estranhas. Nós provámos isso e fizemos a nossa contestação, em todas as reuniões que tivemos, de forma a não sermos nós a encerrar… Mas isso não foi tido em conta!”, expressa ao sinalAberto.
Ao perguntarmos se haveria outros critérios, a exemplo da proximidade geográfica em relação a outros tribunais, o ainda presidente da edilidade responde que “havia outras vontades por parte dos tribunais e do próprio tribunal distrital”. Contudo, não sustenta a opinião de que a Justiça tenha ficado cativa do partidarismo. “Não vou por aí! Não penso que tenha a ver com isso. Tem, sim, a ver com umas necessidades e umas vontades acima, não só ao nível da organização do Estado e dos ministérios, mas também na Justiça, mais centralizada nas sedes de distrito, que continuam a achar que Sever do Vouga é muito longe”, critica.
No seu ponto de vista, “houve uma leitura enviesada” de todo o processo ligado ao novo mapa judiciário. O agora vereador sem pelouro, no executivo camarário liderado pelo social-democrata Pedro Lopes Lobo, não supunha ter havido “má intenção”, mas um propósito “centralizador dos tribunais, sobretudo dos tribunais distritais e das comarcas mais abrangentes”. “Esse era um processo que já vinha a ser preparado, há algum tempo!”, assegura.
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Poupanças discutíveis
Quanto a supostas poupanças com a decisão de extinguir tribunais, o autarca admite que tal argumentação não corresponde à realidade. “Não sei até que ponto essas contas foram sempre bem feitas. Tenho dúvidas de que se tenha poupado muito com isso. Não me parece. Aliás, acho que uma das grandes necessidades dos tribunais, hoje, ainda é o pessoal; os recursos humanos são diminutos, pelo menos, nos tribunais maiores, o que atrasa os processos. Todavia, eu penso que nós, aqui, nem temos isso!”, acentua o socialista António José Coutinho.
O município de Sever do Vouga remeteu à então presidente da Assembleia da República (AR), Assunção Esteves, uma petição em que contestava a decisão, aprovada em Conselho de Ministros de 6 de Fevereiro de 2014, de encerramento do tribunal local. Nesse documento, datado de 10 de Março e assinado pelo presidente da Câmara, António José Martins Coutinho, é peremptória a posição municipal de não aceitar o fecho do tribunal, “porque esta decisão constitui uma grave violação de direitos constitucionalmente garantidos, nomeadamente do direito de acesso à justiça e do princípio da igualdade de tratamento, sendo por isso uma decisão discriminatória em desfavor dos munícipes de Sever do Vouga”.
No texto da aludida petição, é referido que, com “a criação da Comarca do Baixo Vouga – experiência piloto na criação das grandes comarcas a nível nacional – a competência do Tribunal de Sever do Vouga foi quase esvaziada, limitando-se a ter legitimidade para investigar pequenos delitos e julgar a[c]ções de pequeno valor; razão pela qual entende agora o Ministério da Justiça que não tem um número de processos que justifique a sua manutenção”. Porém, a autarquia afirma que, “mesmo com a redução das suas competências, o número de processos/ano é superior a 250”.
O mesmo documento dirigido à ex-presidente da AR regista ainda: “Sucede que o Tribunal de Sever do Vouga perdeu competência em matéria cível (a[c]ções de elevado valor), crime (na fase de investigação da generalidade dos delitos), trabalho, comercial, família e execução, e que tais competências foram transferidas para Municípios de maior dimensão, que viram reforçada a sua legitimidade de intervenção em matéria judicial. Sendo certo que esses mesmos Tribunais sentem-se completamente asfixiados e sem capacidade de resposta, atrasando e consequentemente impedindo a realização da verdadeira justiça, em desfavor do cidadão que a ela recorre.”
“Do exposto resulta que, incompreensivelmente, sendo o Município de Sever do Vouga o que tem uma localização mais interiorizada e distante, dentro da Comarca piloto do Baixo Vouga, aqueles que aqui residem, independentemente da matéria que pretendam apresentar à justiça, têm indubitavelmente que percorrer inúmeros Municípios e quilómetros (Albergaria, Anadia, Aveiro, Águeda), sem uma rede de transportes públicos capaz, tratando-se de pessoas com escassos recursos e graves problemas económicos [sic]”, prosseguem os peticionários, representados, neste acto, pelo anterior presidente da edilidade. “E não estão em causa razões economicistas[,] pois se há Municípios que viram as suas competências reforçadas, tiveram que procurar novos imóveis onde se instalar, pagando rendas bem mais dispendiosas e equipando-os”, justificam os peticionários.
Nesso contexto, o município de Sever do Vouga mostrou querer “continuar a ser um dos melhores a nível nacional para se viver”; por isso, “não pode aceitar que continuem a eliminar discriminatoriamente áreas de serviço tão essenciais como o Tribunal”. “Ao invés de aceitar a sua extinção[,] exige o reforço das suas competências em matéria judicial”, bem como “impõe que os seus munícipes sejam tratados de igual modo aos demais cidadãos nacionais, sendo certo que tal só será possível se lhes forem disponibilizados os mesmos serviços”, acrescentam os peticionários.
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Solicitada a atribuição de competências
De acordo com o mesmo documento remetido à antiga presidente da AR, Assunção Esteves, o executivo camarário de Sever do Vouga não se opõe à especialização em matéria judicial. Porém, exige, “a bem da própria celeridade e bom funcionamento da justiça, que lhe seja atribuída competência, em matéria de execução, administrativo, família, cível, trabalho, comercial ou crime”. “E esta atribuição justifica-se não só porque dispõe de espaço adequado para o efeito, a custos bem mais reduzidos que qualquer outro dos Municípios para onde têm sido transferidos os processos relativamente aos quais anteriormente dispunha de competência para decidir, como também porque o princípio da igualdade de tratamento assim o exige”, alegam os peticionários, observando que, “sendo um concelho que nos últimos anos tem perdido alguma população, fruto da conjuntura nacional e internacional, e da sua interioridade, necessita imperativamente deste serviço para garantia do seu desenvolvimento, sendo certo que, o crescimento sustentado do país deve ser cada vez mais uma preocupação geral”.
A aludida petição foi disponibilizada a toda a população severense. Depois de a lerem e “mediante aposição da sua assinatura e documento de identificação”, os subscritores confirmaram “não concordar com o encerramento do Tribunal, exigindo antes a atribuição de um juízo de competência especializada ao Tribunal de Sever do Vouga, por forma a garantir a sua manutenção, [a] diminuir a incapacidade de resposta de outros Tribunais, [a] garantir um crescimento sustentado de todos os Municípios que integram a Comarca do Baixo Vouga e [a] assegurar a igualdade de tratamento”.
Alguns meses após, Fernando Negrão, na qualidade de presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias enviou um ofício (n.º 1127/XII/1.ª – CACDLG/2014), em 29 de Outubro, ao cuidado da presidente da AR, relativamente ao Relatório Final da Petição n.º 419/XII/3.ª – “Contra o encerramento do Tribunal de Sever do Vouga”, subscrita pelo Município de Sever do Vouga, envolvendo 1441 assinaturas. De acordo com o parecer, “aprovado por unanimidade com ausência do PEV [Partido Ecologista “Os Verdes”], na reunião da mesma Comissão, naquela data, foi dado conhecimento da aludida petição e do respectivo relatório aos grupos parlamentares “para a apresentação de eventual iniciativa legislativa”, bem como à ministra da Justiça (Paula Teixeira da Cruz), através do então primeiro-ministro (Pedro Passos Coelho), também “para ponderar a apresentação de eventual medida legislativa”, ao abrigo da Lei do Exercício do Direito de Petição – alínea d) do n.º 1 do artigo 19.º.
Como se regista na nota prévia do Relatório Final, a petição – cujo primeiro peticionário é o Município de Sever do Vouga – deu entrada na Assembleia da República em 5 de Agosto de 2014, tendo sido remetida, na mesma data, por despacho da vice-presidente da AR (a deputada Teresa Caeiro), à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias para apreciação. A dita petição foi “admitida liminarmente” pela Comissão na sua reunião de 10 de Setembro, tendo sido nomeada relatora.
Posteriormente (a 23 de Outubro), aquela Comissão da AR procedeu à audição (obrigatória) dos peticionários, tendo contado com as presenças do presidente da Câmara Municipal de Sever do Vouga (António José Coutinho), do vice-presidente da edilidade (José Manuel de Almeida e Costa) e da jurista Ana Maria Tavares Mendes.
Como é reiterado no mesmo documento, os peticionários pretendiam “a atribuição de um juízo de competência especializada ao Tribunal de Sever do Vouga, por forma a garantir a sua manutenção”, contestando o fecho deste tribunal. Estava, assim, em causa, na mencionada petição, a reforma do mapa judiciário, operada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (ou Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), e pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março (que regulamenta a LOSJ e estabelece o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais), que procedeu ao encerramento do Tribunal de Sever do Vouga.
No âmbito do exame da petição, confirma-se que esta lei veio instituir uma nova matriz territorial, adoptando-se “os distritos administrativos como base territorial das circunscrições judiciais, passando o território nacional a dividir-se em 23 comarcas”. Por outro lado, esta lei também prevê um novo modelo de gestão. Ou seja, “a gestão de cada Tribunal Judicial de 1.ª Instância passa a ser assegurada por um Conselho de Gestão, centrado na figura do juiz presidente, mas com uma estrutura tripartida, composta por este último, por um magistrado do Ministério Público coordenador e por um administrador judiciário”. A LOSJ estabelece, ainda, um novo modelo de competências, em que o tribunal judicial de primeira instância, em cada comarca, é organizado em instâncias centrais e instâncias locais.
Recorde-se que as instâncias centrais “têm, em regra, competência para toda a área geográfica correspondente à comarca e desdobram-se em secções cíveis” (que tramitam e julgam as questões cíveis de valor superior a 50 mil euros), “em secções criminais” (destinadas à preparação e julgamento das causas crime da competência do tribunal colectivo ou de júri) e “nas restantes secções de competência especializada (Comércio, Execução, Família e Menores, Instrução Criminal e Trabalho), que preparam e julgam as matérias cuja competência lhes seja atribuída por lei”.
Conforme é explicitado no próprio Relatório Final da Petição “Contra o encerramento do Tribunal de Sever do Vouga”, as instâncias locais “integram também secções de proximidade, às quais compete prestar informações de carácter geral; prestar informações de carácter processual; proceder à rece[p]ção de papéis, documentos e articulados; operacionalizar e acompanhar as diligências de audição através de videoconferência; praticar os a[c]tos que venham a ser determinados pelos órgãos de gestão, incluindo o apoio à realização de audiências de julgamento; acolher as audiências de julgamento ou outras diligências processuais cuja realização aí seja[m] determinadas”.
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Petição implicava alterações legislativas
Como é recordado no mesmo documento, a regulamentação da LOSJ foi operada pelo Governo (XIX Governo Constitucional, em funções entre 21 de Junho de 2011 e 30 de Outubro de 2015, o qual resultou das eleições legislativas de 5 de Junho de 2011, em que o Partido Social Democrata ganhou com maioria relativa), através do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março. Decorre deste diploma legal, que entrou em vigor em 1 de Setembro de 2014, o encerramento de 20 tribunais (entre os quais o Tribunal da Comarca de Sever do Vouga) e a conversão de 27 tribunais em 27 secções de proximidade, das quais nove têm um regime especial.
A satisfação do que era solicitado pelos 1441 peticionários severenses implicava alterações legislativas, o que – como é também avançado no aludido Relatório Final – impunha que esta matéria fosse “ponderada pelas entidades que dispõem de poder de iniciativa legislativa”. Resolução que, então, não se verificou.
Retomando a entrevista com António José Coutinho, o edil socialista declarou ao sinalAberto que não havia morosidade nos processos judiciais no tribunal local: “Não. Como hoje não há! Em face do número de processos, as coisas vão andando normalmente.”
O tribunal de Sever do Vouga reabriu na primeira semana de Janeiro de 2017, por ordem da actual ministra da Justiça, Francisca Van Dunem (a qual, a 4 de Dezembro de 2021, também tomou posse como ministra da Administração Interna, acumulando a tutela das duas pastas na sequência da demissão do ministro Eduardo Cabrita). Hoje, funciona com um oficial de justiça e com uma funcionária administrativa disponibilizada pela Câmara Municipal, com base num protocolo de colaboração interinstitucional. Acautelando incompatibilidades e restrições de acesso previstas na lei, “a funcionária que lá colocámos, desde a reactivação do tribunal, não pode aceder a determinada informação e penso que faz um trabalho exclusivamente administrativo, a redigir ofícios e comunicações, entre outras tarefas”, anota o autarca.
Interrogado sobre os impactos locais, a nível sociodemográfico, económico e cultural, que se verificaram ou que ainda se fazem sentir no município de Sever do Vouga devido ao encerramento do tribunal, António José Coutinho diz que, “sem exagerar muito, todos os impactos foram negativos, começando pelo acesso à justiça”. “A forma como isso foi alterado [ou seja, a reforma judiciária] retirou às pessoas também, por vezes, a vontade de irem a tribunal e de procurarem resolver muitas questões”. O nosso entrevistado mostra-se convicto de que “muito litígio e muita causa ficou por resolver, porque as pessoas inibiram-se de o fazer”. “Primeiro, por dificuldades de acesso aos tribunais e de mobilidade; porque a interioridade do nosso concelho não permite que haja, ainda hoje, uma grande circulação de transportes intermunicipais. Aliás, estamos a tratar disso, na Comunidade Intermunicipal da Região de Aveiro [CIRA], com a preparação de uma rede de transportes adequada. Temos freguesias bastante afastadas e os seus habitantes têm muita dificuldade, até, de chegar à sede do concelho. Quanto mais para Albergaria-a-Velha, para a Anadia ou para Estarreja!”, expressa este dirigente local.
“Por outro lado, a forma como isto estava distribuído [o nosso entrevistado alude à distribuição geográfica das instâncias judiciais, consoante as áreas dos processos] convidou muita gente a deixar de procurar a Justiça, porque isso era complicado”, comprova, assegurando “ter havido, directamente, outros impactos na população”. “Isso foi-nos referido pelos proprietários dos restaurantes, por exemplo”, adianta o autarca, destacando “a movimentação das pessoas que vinham ao tribunal, incluindo os próprios funcionários judiciais e os juízes, quando havia sentenças, os quais almoçavam na vila” de Sever do Vouga.
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Impactos na economia local
“Tudo isso gerava um movimento económico bastante representativo localmente”, reconhece António José Coutinho, embora não se aperceba que o fecho do tribunal, durante mais de dois anos, tivesse repercussões directas nos balanços económicos municipais anuais.
“A grande fatia do nosso orçamento e das câmaras pequenas é atribuída pelo Estado, através do FEF [Fundo de Equilíbrio Financeiro, que corresponde a uma subvenção geral estipulada por lei e que estabelece o regime financeiro das autarquias locais e das entidades intermunicipais], resultante do Orçamento de Estado”, elucida. “Essa subvenção, normalmente, é concedida pelo número de habitantes e pela área do município. Neste caso [com o fecho do tribunal], altera muito pouco. Portanto, não há um reflexo directo, a nível da Câmara, de mais ou de menos economia. Poderá haver, depois, no IRS [imposto sobre o rendimento das pessoas singulares], no IVA [imposto sobre o valor acrescentado] e em outros aspectos”, atenta o autarca severense. Recorde-se que o FEF, previsto no n.º 1 do artigo 25.º conjugado com o artigo 27.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de Setembro, equivale a 19,5% da média aritmética simples da receita proveniente do IRS, do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) e do IVA, deduzido do montante afecto ao Índice Sintético de Desenvolvimento Regional (ISDR).
Sob o aspecto simbólico, “o tribunal é o mais importante numa terra”, acredita o socialista António José Coutinho, reforçando: “O tribunal é um órgão de soberania e é uma instituição vital para o funcionamento de qualquer município. Eu penso que essa é, se calhar, a perda mais importante.”
Perante a tradição municipalista, a existência de um tribunal constitui, “de certa forma”, uma reserva de soberania para as gentes severenses. “O direito à justiça de proximidade é um direito inalienável das pessoas”, sustenta o presidente da Câmara Municipal, já na fase final do seu mandato. Conhecedor da Constituição da República Portuguesa, o edil bem nos poderia recordar que o artigo 20.º (relacionado com o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) é claro, no seu ponto 1, quando diz: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.”
“Acho que nós todos, pequeninos ou grandes, devemos ter os mesmos direitos. Apesar das diferenças, como é óbvio! Por isso, penso que retirar um direito principal [neste caso, a justiça de proximidade, com o fecho do tribunal] é o mesmo que fecharmos as escolas todas”, compara o dirigente autárquico. Atendendo à sua experiência de professor e de ex-presidente do Conselho Directivo e Executivo da Escola EB 2,3 de Sever do Vouga, prossegue: “Nós temos assistido a um processo, a nível da Educação, que, ao longo dos anos, por diminuição do número de alunos, tem vindo a forçar o encerramento de algumas escolas. Porém, seria inimaginável que todas as escolas do concelho fechassem. Isso era negar o acesso à Educação das pessoas. Por conseguinte, a Justiça é igualmente fundamental.”
No que respeita aos resultados preliminares dos Censos 2021, divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, a 28 de Julho, António José Coutinho confirma que a população concelhia “decresceu bastante”, com uma variação negativa de 10,4% entre os dois últimos registos populacionais. “Temos uma população muito envelhecida e assistimos a reduções drásticas na natalidade, nos últimos anos”, constata, o autarca, discordando dos seus opositores políticos locais, quando “apontam para a falta de medidas de incentivo”, sobretudo no domínio industrial. “Penso que não tem a ver, muito, com isso. Neste momento, temos praticamente emprego para toda a gente. Quase não temos desemprego. Há, sim, necessidade de emprego especializado”, manifesta.
“Isso sucede por via de uma coisa que também é muito nossa: se calhar, mais de 90% dos alunos que terminam o ensino secundário vai para a universidade e não regressa, porque não tem emprego aqui”, averigua o presidente da Câmara, pouco tempo antes das eleições autárquicas. “E não há nenhum concelho, como o nosso, que tenha capacidade para incluir, logo, todos os licenciados ou mestres. Até porque há uma variedade de cursos que não têm, aqui, aplicação; adequam-se a postos de trabalho que o município de Sever do Vouga não pode oferecer”, esclarece o edil, actualmente vereador sem pelouros atribuídos.
“Eu tenho visto isso!», expressa António José Coutinho, também professor e licenciado em Educação Visual e Tecnológica. “Nos últimos quatro anos, foram cerca de 600 alunos para o ensino superior e muitos deles não voltam. Quem volta? Voltam aqueles que são das áreas das engenharias [metalomecânica, construção civil e na produção de bens em série] e alguns de Medicina ou de cursos ligados à Educação e ao Serviço Social”, explicita, sublinhando que “a diversidade do emprego também se provoca, procurando atrair outros tipos de empresas”.
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O fecho do tribunal e o tecido empresarial
Focados num modelo judiciário reconhecidamente eficiente, justo, equitativo e com credibilidade, perguntamos ao líder do executivo camarário se a justiça praticada localmente corresponde às necessidades e expectativas dos agentes económicos, particularmente com o encerramento do tribunal. O autarca não crê que essa situação tenha contribuído directamente com a possibilidade de algumas empresas se instalarem ou não em Sever do Vouga. “Talvez não. Os nossos maiores problemas são infra-estruturais, embora não tenha havido ainda grande procura do pouco que temos em áreas empresariais. Neste momento, sabemos de três empresas que querem instalar-se cá, por causa daqueles incentivos relacionados com o Interior. De facto, somos o único município das redondezas que tem acesso privilegiado a esses fundos de desenvolvimento do Interior”, informa António José Coutinho.
Entre as políticas de apoio ao investimento, o Governo criou o programa estratégico “Trabalhar no Interior”, em vigor até 31 de Dezembro de 2021 e que visa estimular a mobilidade geográfica de trabalhadores. Esta medida atribui um apoio financeiro directo de até 4.827 euros a quem se muda do Litoral para trabalhar no Interior, sendo alargada às pessoas residentes em países estrangeiros que queiram ter uma vida activa no Interior de Portugal.
A medida “Emprego Interior MAIS – Mobilidade Apoiada para um Interior Sustentável” é dinamizada por várias estruturas governativas e coordenada pela área da Coesão Territorial, no âmbito do sistema de apoio “+CO3SO Emprego”, aprovado pela Comissão Interministerial de Coordenação do Acordo de Parceria (CIC Portugal 2020), reforçando os incentivos à dinâmica do mercado de emprego nos territórios do Interior, considerada “decisiva para a alavancagem dos factores de atractividade e retenção de pessoas e empresas”. Assim, o “+CO3SO” consiste num conjunto de programas transversais e multissectoriais dirigidos às empresas, às entidades da economia social e às entidades do sistema científico e tecnológico, com o objectivo de criar “condições para o desenvolvimento social e económico dos territórios, com promoção de emprego qualificado e inovação e transferência de tecnologia”. Nesse quadro de intenções, o “+CO3SO” prevê “avisos com orçamentos dedicados ao Interior do país, adaptados às necessidades específicas destes territórios”.
Enquanto autarca, o socialista António José Coutinho apercebe-se do impacto dos ajustamentos da rede de tribunais no acesso da população à justiça. O nosso entrevistado, preocupado com a menor oferta judiciária aos munícipes de Sever do Vouga e com vontade de também combater a desertificação dos territórios mais afastados da faixa litoral, diz ter falado com a então ministra Paula Teixeira da Cruz, além da sua participação “em várias manifestações e em reuniões com outros municípios na mesma situação: os 20 que iriam ficar sem tribunal e os 27 cujos tribunais iriam perder valências”. “Fomos desenvolvendo, assim, uma forma de pressão para tentar a reversão da ideia da senhora ministra. Ela atendeu-me duas vezes, na qualidade de presidente da Câmara de Sever do Vouga, mas sem grande interesse em acolher qualquer opinião. A opinião era a dela!”, denota, declarando ter ainda havido encontros com os ex-bastonários da Ordem dos Advogados (OA), António Marinho Pinto e com a sua sucessora, Elina Fraga. Na mesma linha crítica em relação ao fecho dos tribunais e ao mapa judiciário avançado em 2014, o professor catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa e actual bastonário da OA, Luís Menezes Leitão, num dos seus artigos de opinião semanais no jornal “I” (intitulado “A reabertura dos tribunais”), referiu “o erro enorme que foi a alteração do mapa judiciário de 2014, que encerrou inúmeros tribunais em perfeitas condições e que hoje permitiriam fazer julgamentos em perfeitas condições de segurança”.
O político local António José Coutinho foi um dos autarcas descontentes com o mapa judiciário, aprovado em Conselho de Ministros, no dia 6 de Fevereiro de 2014. Por isso, também participou no Protesto Nacional de Cidadania contra o Novo Mapa Judiciário, convocado pela OA, junto da escadaria da Assembleia da República, a 15 de Julho, que também contou com a presença de muitos severenses que “aí se deslocaram em camionetas”. “Agora, está tudo calmíssimo. Assim, já não é mau. Vai funcionando sem problemas e não tenho ouvido queixas”, expõe o edil, a quem indagamos se o programa da lista socialista contém referências ao funcionamento e ao acesso à justiça em Sever do Vouga. “Ainda não fiz o meu manifesto, mas não tenho nada a apontar nessa área. O nosso esforço é, pelo menos, na manutenção daquilo que está a acontecer. Não tenho nenhuma proposta eleitoral a esse respeito, porque não tem havido grandes reclamações em relação ao funcionamento actual do tribunal”. As eleições autárquicas foram realizadas a 26 de Setembro de 2021. Esteve em disputa a eleição de 308 presidentes de câmaras municipais. A lista socialista liderada por António José Coutinho não obteve os votos suficientes para o seu terceiro mandato de presidente do executivo local.
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“O tribunal reabriu mas é só para pequenas coisitas!”
Em plena manhã de Verão, entramos na barbearia tradicional, na Rua do Comércio, onde Arménio Ferreira Macedo corta o cabelo a um cliente habitual, que, se calhar, ainda não se deslumbrou com o atendimento mais cosmopolita, embora também personalizado e supostamente acolhedor, de um estabelecimento de barbearia e de bar, na Rua do Jardim. Com algum cuidado, dizemos ao que vamos e procuramos iniciar uma conversa genérica, rápida e empática, ao ritmo da tesoura que apara o cabelo do cliente sentado na antiga cadeira de barbeiro.
Referem os experimentados profissionais do sector que os assuntos a evitar para “quebrar o gelo” numa barbearia onde não nos conhecem são a política, a religião e as finanças. Se falar de dinheiro torna a conversa estranha, imagine-se começar a falar da justiça. Mas tentamos saber qual a percepção do barbeiro Arménio Macedo, nascido há 73 anos em Sever do Vouga, acerca das contrariedades que o encerramento do tribunal local causou, entre Setembro de 2014 e Janeiro de 2017, nos munícipes.
“As pessoas queixaram-se, porque, em vez de terem os julgamentos aqui, tinham de ir para mais longe, para Albergaria-a-Velha ou para Aveiro”, recorda, embora reconheça que, com a reabertura ou a reactivação do tribunal local, “ainda pouco se faz”. “O tribunal reabriu mas é só para pequenas coisitas! Perdeu competências. Quase não funciona”, observa.
Durante mais de dois anos, os severenses que precisavam de resolver algumas questões judiciais viram-se confrontados “com horários de transportes públicos não adequados aos dos tribunais”. “Se alguém tiver de lá estar, por exemplo, às nove horas, não tem transportes, nenhuns! Tem de ir de transporte próprio ou de táxi”, confirma Arménio Macedo, enquanto vai circundando o cliente para acertar o corte de cabelo. “Daqui a Albergaria-a-Velha são cerca de vinte quilómetros. Uma deslocação até lá envolve perda de tempo e de dinheiro, com a própria saída. Além de que, quando se vai para os tribunais, aquilo não é muito barato!”, expressa.
“Esta terra sem um tribunal não era a mesma! Havia menos movimento. As pessoas saíam daqui para outro lado. Logicamente, a terra ficou com menos movimento”, repete este profissional habituado a tratar da barba e do cabelo de várias gerações de severenses e uma das forças vivas da pequena economia local. Interrogado sobre a influência do fecho do tribunal no comércio da vila, Arménio Macedo pensa que terá havido algum impacto, notando: “Em princípio, sim. Claro! Mas há pessoas mais entendidas do que eu”.
A propósito, adianta: “Por exemplo, agora concentraram diversas escolas quase só numa. As freguesias mais pequenas sentem isso. Falam tanto em diversificar e estão a juntar? Em vez de descentralizarem, estão a centralizar. São políticas, são políticas!…”
Na sua opinião, “o tribunal já não é o que era”. “Trata de pequenas coisas. Se for um julgamento mais importante, já não. Acho que há audiências, mas para pequenas coisas. Se metermos aqui um processo, vamos depois para Aveiro ou para Albergaria-a-Velha”, sustenta, alegando que Sever do Vouga está a perder serviços. “Com certeza! É como, ali, o centro de saúde. Tiraram as urgências e uma série de mais-valias que tínhamos. E, assim, ficamos prejudicados. Para a mais pequena coisa, temos de ir a Aveiro”, critica Arménio Macedo, que reserva a explicação sobre o despovoamento e o fecho de serviços públicos locais “para as pessoas mais competentes”.
Resta-lhe a esperança de melhores dias para a sua terra, enquanto lemos o aviso num azulejo decorativo, debaixo do relógio: “Freguês educado / não cospe no chão / não pede fiado / não diz palavrão.”
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“Eu chamo a isto um posto de recolha de papéis”
O advogado Manuel Costa dos Santos, com escritório em Sever do Vouga, considera que a reforma do mapa judiciário avançada pela então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, “foi uma medida correcta”. “Há nisto tudo, como em todas as reformas, umas situações que resultam melhor e outras que resultam pior”, comenta, notando: “Pessoalmente, entendo que deve haver, de facto, uma descentralização da Justiça – não se deve concentrar tudo em determinados pólos –, mas também não poderíamos ter uma Justiça como tínhamos.” “Ou seja, por uma simples bagatela, ter tribunais disseminados por tudo o que era sítio… Em qualquer lugarejo, em qualquer lugar como aqui, que eu considero uma povoação pequena, em que não se justifica ter um tribunal de competência genérica”, argumenta.
“Agora, temos um juízo de proximidade, mas não se justifica vir aqui um juiz de Albergaria-a-Velha. Com todo o respeito que, sobre isso, eu possa ter! Quando muito, as pessoas seriam ouvidas, aqui, em videoconferência”, alega o causídico Manuel Costa dos Santos. “O tribunal de Albergaria-a-Velha é relativamente próximo. E trazemos um juiz para aqui? São bagatelas a que as pessoas daqui se foram habituando. Quando fui para Albergaria-a-Velha, em 1980 (ainda não existia tribunal em Sever do Vouga), o que existia eram conflitos de direitos reais. Mais tarde, criaram este tribunal, a que eu chamo um posto de recolha de papéis, porque não tem mais significado do que isto”, expõe.
Nesta conformidade, o advogado severense insiste: “Os senhores juízes não podem vir de Albergaria até aqui! Já não têm tempo para lá estarem. São só dois e o trabalho é bastante. O tempo que eles perdem pelo caminho, ao virem aqui, deve ser concentrado ali. E concentram bem, porque têm lá estado juízes de mão cheia! São pessoas que desempenham muito bem, desde que estejam ali, certinhos. Agora, se têm de vir a Sever do Vouga – como eu vou para Albergaria-a-Velha –, é meia hora para um lado e meia hora para o outro. Há muito desperdício de tempo e muita desconcentração. E isto tem de ser racionalizado.”
“Muito raramente há audiências. Há, aqui, uma ou outra, se pedirmos aos juízes. Mas eles preferem fazê-lo lá, em Albergaria-a-Velha. E quase todos os advogados também preferem”, informa Manuel Costa dos Santos, referindo-se, “em particular, à comarca de Sever do Vouga a funcionar em Albergaria”.
“Este tribunal de proximidade não funciona como está. Não tem razão de ser. Já teria numa outra circunstância”, exprime o advogado, admitindo ser “necessária a troca de ideias e de opiniões para encontrar soluções para os tribunais que já existem”. “O sistema está montado e, até, com alguns bons funcionários que não devem ser dispersos [para outras áreas]”, prossegue o causídico severense, aconselhando a respectiva colocação em tribunais onde fazem falta. Por exemplo, “em Albergaria-a-Velha são relativamente poucos os funcionários [judiciais]”.
“No que respeita ao aproveitamento deste tribunal de proximidade, tinha razão de ser se ele fosse convertido. E convertido em quê?”, questiona Manuel Costa dos Santos. “Convertido, por exemplo, num tribunal de Família, que está uma lástima neste país”, diz. “Ou, melhor do que isso – muito embora as grandes cabeças pensem que devem estar nos grandes centros –, pessoalmente, entendo que os tribunais fiscais e administrativos podem estar nos grandes e nos pequenos centros, para lhes dar movimento”, especificou.
“Os tribunais fiscais e administrativos não funcionam. Tenho acções com vinte anos. Tendo sido feito um julgamento há vinte anos, ainda não sei da sentença, concretamente em Viseu. Fui lá não sei quantas vezes procurar o processo e já não sabem onde se encontra. Como este caso, há vários casos em que vão retardando, retardando… Eu poderia reconstituir o processo, mas algumas dessas pessoas já morreram, bem como muitos dos que praticaram os actos danosos ou lesivos”, critica este experiente advogado de Sever do Vouga.
A respeito do edifício do Juízo de Proximidade de Sever do Vouga, o causídico é categórico: “Aquilo, ali, não tem as condições ideais, mas possui algumas condições para pequenas questões. E, quando digo ‘pequenas questões’, isso leva-nos a uma conversa que demoraria muitas horas, para, em retrospectiva, relembrarmos como a justiça era praticada. Antigamente, havia o que eles [Ministério da Justiça] agora chamam Julgados de Paz, mas que não funcionam.”
“Antes, havia homens-bons que chegavam e decidiam sobre pequenas querelas, em vez de se ir para o tribunal. As questões eram resolvidas pelo regedor e até pelo padre ou por conselheiros matrimoniais que davam sugestões apaziguadoras, dentro do possível. No actual edifício, poderia funcionar uma coisas dessas”, sugere Manuel Costa dos Santos, considerando que, por outro lado, “o tribunal administrativo e fiscal não poderia ser neste tribunalzito”.
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“Poderia ser cá instalado um tribunal de execuções”
“A ser criado um tribunal administrativo e fiscal em Sever do Vouga, digam então se querem só utilizar a prata da casa e que não querem gastar mais dinheiro… Também poderíamos centralizar, aqui, um tribunal para execuções fiscais – que há em Águeda, em Aveiro e em Estarreja, pelo que os severenses têm tudo longe. Ainda temos em Oliveira de Azeméis, mas está tudo disperso!”, confirma o jurista. “Poderia ser cá instalado um tribunal de execuções. O que, se calhar, seria pedir demais, quando não se faz isto a nível nacional, com os tais tribunais fiscais e administrativos; nos fiscais está tudo a prescrever e os administrativos seguem o mesmo exemplo. Saem sentenças e, às vezes, até caem na primeira instância, mas já não andam na segunda instância; quando começam a trepar os escalões da hierarquia, já não andam nos recursos…”, censura o causídico.
Na opinião de Manuel Costa dos Santos, “o tribunal de Sever do Vouga deve ser reconvertido”, reconhecendo também a necessidade de se “fazer um tribunal a sério nestes centros que, de certo modo, estão esquecidos”. “Ou, então, fazer aqui um tipo de julgado de paz, mas com uma legislação bastante diferente daquela que existe – que é um faz de conta…”, critica o advogado, sabendo das actuais competências destes tribunais especiais para apreciar e decidir acções declarativas cíveis, exceptuando as que envolvam matérias de Direito da Família, de Direito das Sucessões e de Direito do Trabalho, não podendo resolver conflitos de valor superior a 15 mil euros, relacionados com contratos, com propriedades ou com o consumo. “Há, aqui, gente íntegra e capaz de dar umas sugestões, ajudando desinteressadamente quem recorresse a essa instituição”, afiança ao sinalAberto.
“Fora disto, Sever do Vouga – em função do tamanho, da sua população (cujas pessoas já estão com uma certa idade, escasseando a juventude) e da parte industrial que privilegia a metalomecânica, com tudo a sair daqui para Oliveira de Frades e para outros sítios – é um concelho agrícola cheio de silvas. De resto, não tem mais nada. É uma povoação envelhecida, onde não se justifica que estejam um juiz e um delegado do Ministério Público. Com toda a honestidade, não compensa”, repara o advogado Manuel Costa dos Santos, que discordou da reabertura do tribunal local: “Entendo que deveria continuar encerrado. Não concordo com os moldes em que está reactivado, até porque, antes, ainda funcionava… A maior quantidade de litígios era, sobretudo, no pequeno crime relacionado com umas injúrias, com umas difamações, com umas calúnias… Crimes económicos não há aqui e crimes de sangue também não. Ao pequeno crime, que não vale nada, basta uma reprimenda e é por aí que deve terminar!”
O causídico severense não reconhece o “peso simbólico do tribunal” na prevenção dos comportamentos da comunidade, porque “as pessoas não acreditam nos tribunais, sobretudo os lesados”. Apesar de “haver um crivo para avançar com uma causa”, envolvendo “o andamento e o saneamento do processo, há uma fase subsequente ao julgamento e, finalmente, uma decisão”, explicita o jurista, apercebendo-se que, “por falta de preparação ou por imaturidade, as pessoas não confiam nos tribunais”. “Eu próprio lhes digo: – Fujam do tribunal como o Diabo foge da cruz! Vocês sabem quando vão para o tribunal, mas não sabem quando saem…”, confessa, notando que “a Justiça está nas ruas da amargura”.
Durante a conversa que mantém com o sinalAberto, Manuel Costa dos Santos frisa que “os tribunais não são as casas da Justiça, mas das injustiças” e concorda com a centralização e a especialização nas grandes instâncias. “O que é prejudicial para as pessoas é que não se faça justiça ou que seja feita má justiça. O percurso que têm de percorrer para ir à procura da justiça é-lhes indiferente, seja para Albergaria-a-Velha ou para Aveiro. Nunca tive um cliente que me dissesse que é muito longe. Daqui a Aveiro são cerca de 25 minutos de viagem. Eu chego lá e sei que faço julgamento nesse dia. É melhor isto ou ir para um tribunal que fica a 500 metros da nossa porta, mas que não faz julgamentos, por várias razões?”, questiona.
“De uma forma simples e linear”, o novo mapa judiciário e o encerramento temporário do tribunal de Sever do Vouga (entre Setembro de 2014 e Janeiro de 2017), “não teve, absolutamente, nenhuma consequência”. “Na minha perspectiva e com mais de quarenta anos de carreira, não teve qualquer impacto a nível concelhio, porque as pessoas vão para Albergaria-a-Velha ou para Aveiro e é tudo muito próximo”, sustenta o advogado, interpretando: “Com os tribunais à beira dos cidadãos, propicia-se as pequenas questiúnculas, que não valem rigorosamente nada, empatando as pessoas e roubando tempo às suas próprias vidas. Isso são bagatelas penais.”
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Penela não tinha juiz próprio em exercício de funções
No distrito de Coimbra e, mais tarde, sob a acção da então circunscrição do Baixo Mondego-Interior – que, de facto, não se concretizou, de acordo com a anterior Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), porque, em Maio de 2010, o XVIII Governo Constitucional (liderado por José Sócrates) suspendeu o alargamento do, ao tempo, novo mapa judiciário –, residiam no município de Penela 6.594 pessoas, em 2001, e 5.980 (ou 5.983, segundo o INE), em 2011. Ou seja, houve um decréscimo populacional de 614 indivíduos (menos 9,31%), nesse período. Tendência que é igualmente confrontada entre 2010 (com o registo de 6.023 residentes) e 2019 (contando-se 5.418 residentes), como assinala a Pordata. De acordo com os resultados preliminares dos Censos 2021 (XVI Recenseamento Geral da População e VI Recenseamento Geral da Habitação), verifica-se uma variação negativa de 9,0% entre os registos censitários de 2011 e de 2021 (com 5.443 habitantes).
Em Janeiro de 2012, a Comarca de Coimbra, ajustada ao correspondente distrito administrativo, compreendia as comarcas de Arganil (abarcando o município de Góis), de Cantanhede, de Coimbra, de Condeixa-a-Nova, da Figueira da Foz, da Lousã (incluindo o município de Miranda do Corvo), de Mira, de Montemor-o-Velho, de Oliveira do Hospital, da Pampilhosa da Serra, de Penacova (que abrangia o município de Vila Nova de Poiares), de Penela, de Soure e de Tábua.
Em relação à organização e aos recursos humanos, a comarca de Penela, enquanto tribunal de competência genérica, não dispunha de juízes no quadro legal nem em exercício de funções, o mesmo sucedendo a nível dos magistrados do Ministério Público (MP). Segundo informação reportada a 16 de Junho de 2011, incorporava cinco oficiais de justiça no seu quadro legal, todos a exercerem localmente.
Em nota à margem e em termos gerais, o MP tinha a nível nacional, oito anos depois (ou seja, em 2019), 1611 magistrados, sendo – como repara o jornalista Luís Rosa, na obra 45 anos de combate à corrupção – “uma larga maioria de mulheres: 1009 procuradoras, que representam cerca de 62,6% do total”, o que pode ser confirmado no Quadro Estatístico de Magistrados, do Conselho Superior do Ministério Público, publicado em 15 de Junho de 2019.
No que concerne ao movimento processual e à média de processos entrados entre 2008 e 2010, a comarca de Penela completa um volume de 212 processos. Todavia, são contabilizados (por ordem decrescente) 72 processos executivos, 34 processos na área da Família e Menores, 28 de média instância criminal, 26 de média instância cível, 25 de pequena instância cível, oito de grande instância cível, sete de pequena instância criminal, seis de instrução criminal, cinco do foro do Direito Comercial e um processo de grande instância criminal.
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A resposta judiciária em Penela
A resposta judiciária no município de Penela, em 2012, associada à comarca local, relativamente às causas cíveis (ou de Direito Civil), era dada pelo próprio tribunal de comarca (TC). No âmbito do Direito Penal, os cidadãos deste concelho eram igualmente atendidos pelo TC de Penela. No que se relaciona com as causas locais no domínio da Família e Menores (FM), a referente competência cabe ao Tribunal de FM de Coimbra. Já as questões laborais são resolvidas no Tribunal do Trabalho de Coimbra, enquanto as divergências comerciais são tratadas no TC de Penela.
A sequente proposta de organização, no quadro da instância central do Tribunal Judicial do Distrito de Coimbra (TJDC), considera as próprias secções cível e criminal (ambas com competência territorial distrital).
No que se refere às secções de competência especializada, sugere-se a existência da 1.ª Secção do Trabalho de Coimbra (cuja área de competência territorial inclui os municípios de Arganil, de Coimbra, de Condeixa-a-Nova, de Góis, da Lousã, de Miranda do Corvo, de Oliveira do Hospital, da Pampilhosa da Serra, de Penacova, de Penela, de Soure, de Tábua e de Vila Nova de Poiares) e da 2.ª Secção do Trabalho da Figueira da Foz.
Na aludida proposta organizativa, no seio do TJDC, foi também ressaltada a Secção de Execução, com sede em Coimbra e com uma área de competência territorial distrital. Já a Secção de Comércio, igualmente localizada em Coimbra, assume competência territorial em todo o distrito. O mesmo sucede com a Secção de Instrução Criminal, com uma semelhante competência territorial, mas que, por determinação legal, “pode ser estabelecido que a intervenção do juiz de instrução criminal possa ocorrer em diversos postos da comarca”.
No quadro da Secção de Família e Menores (FM), foi planeada a 1.ª Secção de FM de Coimbra (com uma área de competência territorial que envolve os municípios de Arganil, de Coimbra, de Condeixa-a-Nova, de Góis, da Lousã, de Miranda do Corvo, de Oliveira do Hospital, da Pampilhosa da Serra, de Penacova, de Penela, de Soure, de Tábua e de Vila Nova de Poiares) e a 2.ª Secção de FM da Figueira da Foz. A propósito da Secção de Execução de Penas, com sede na capital do distrito, esta instância central tem competência territorial correspondente ao actual distrito judicial de Coimbra.
Como informa a DGAJ, através do Ensaio para a reorganização da estrutura judiciária, publicado em Janeiro de 2012, a nível das instâncias locais do TJDC e relativamente ao volume processual expectável subsistente à especialização então sugerida, eram então calculados, na comarca de Penela, 51 processos na área cível e 35 processos na área criminal, perfazendo 86 processos.
Em face das comarcas do distrito de Coimbra que apresentaram um “volume processual muito reduzido” e tendo em conta a evolução demográfica, assim como a existência (ou não) de instalações adequadas, a DGAJ tentou justificar a proposta de extinção das comarcas de Penacova, de Mira, de Soure, de Pampilhosa da Serra, de Penela e de Tábua.
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Apenas o tribunal de Penela foi fechado
Na realidade, apenas o tribunal de Penela foi fechado, com a reforma implementada a 1 de Setembro de 2014, ao abrigo da Lei da Organização do Sistema Judiciário, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março. Assim se verificou com base na argumentação de que a “comarca de Penela apresenta valores, quer de movimento processual quer de população, inferiores relativamente à comarca de Condeixa-a-Nova”. No que se refere à evolução demográfica, nos últimos 10 anos (seguindo os dados preliminares dos Censos 2011), a DGAJ observa que “a comarca de Penela apresenta uma diminuição da população em 9,31%, e Condeixa-a-Nova apresenta um aumento de cerca de 12%”.
Relativamente às instalações, o tribunal de Penela está localizado num edifício que pertence ao Estado e o tribunal de Condeixa-a-Nova encontra-se num edifício também estatal, que é propriedade do Instituto de Gestão Financeira e de Infra-Estruturas da Justiça, IP (actual Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP – IGFEJ, IP), com “condições adequadas para o seu funcionamento, no entanto o edifício de Condeixa-a-Nova dispõe de melhores instalações”. Na decisão de extinção do tribunal de Penela pesou ainda o facto de o município dispor de Posto de Atendimento ao Cidadão (PAC), a par de alternativas de acesso à informação para apoio ao cidadão, a exemplo de julgados de paz, bem como de “bons acessos rodoviários entre os dois municípios”. A nível das várias instâncias locais do TJDC, estava a pensar-se no tribunal de Condeixa-a-Nova como secção de competência genérica, com uma área territorial que envolvia os dois concelhos.
No que respeita a serviços do Ministério Público (MP) do Tribunal Judicial do Distrito de Coimbra, no período de 2008 a 2010, a comarca de Penela regista 200 funções de investigação e representação, além de um inquérito penal (considerando também, neste caso, a comarca de Condeixa-a-Nova).
No quadro comparativo de recursos humanos, Penela não tinha juiz em exercício de funções, propondo-se então um juiz para intervir em ambos os municípios. Situação idêntica verificava-se relativamente aos magistrados do MP. Já quanto aos oficiais de justiça, a comarca de Penela dispunha de cinco elementos em exercício, mas a DGAJ sugeria a existência de sete profissionais para os dois municípios contíguos.
Ao consultarmos o anexo do documento Indicadores de A[c]tividade nos Arquivos dos Tribunais 2014, publicado em Março de 2015, pela Direcção-Geral da Administração da Justiça, com o encerramento da instância de Penela, o respectivo arquivo, referente a 2014, foi transferido para o núcleo de Condeixa-a-Nova, apresentando uma extensão de prateleiras com 180 metros e uma extensão documental com 125 metros, a que corresponde um saldo positivo de 55 metros. O mesmo relatório indica que o total de processos eliminados e remetidos para o arquivo distrital, entre 2003 e 2014, foi de 4.559.
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Autarca não quis recandidatar-se
Neste preciso momento, posterior às eleições autárquicas (de 26 de Setembro de 2021), o concelho de Penela sofreu mudanças nos seus protagonistas políticos locais, nomeadamente no executivo camarário, antigo baluarte ou bastião social-democrata.
O actual líder municipal é o socialista Eduardo Jorge Nogueira Santos, com formação na área dos Recursos Humanos e experiência de direcção no sector hoteleiro, cuja lista obteve 56,66% dos votos locais, destronando o Partido Social Democrata que, há décadas, ali alcançava a maioria absoluta.
Quando entrevistámos o anterior presidente da Câmara Municipal de Penela, a 24 de Junho, já sabíamos que não tencionava recandidatar-se a um terceiro mandato. Luís Filipe da Silva Lourenço Matias, o jovem advogado que sucedeu a Paulo Júlio na autarquia penelense obteve 51,28% dos votos, nas eleições de 2013, e reforçou a maioria absoluta (com 63,39%), quatro anos depois, no seu segundo mandato.
Procuramos saber o que pensa acerca dos objectivos do novo mapa judiciário e do acesso da população local ao essencial da oferta judiciária. Nesse contexto, Luís Matias dá-nos conta de um “concelho de baixa densidade, que tem constrangimentos que a maior parte dos concelhos desta natureza e dimensão têm, sendo mais preocupantes os de carácter demográfico”.
“A questão demográfica sente-se em todo o País. As projecções apontam para uma redução drástica do número de habitantes, a nível nacional, nas próximas duas décadas. Obviamente, apercebe-se isso com maior acuidade nestes territórios, em que os processos de despovoamento são mais rápidos”, constata o dirigente autárquico que, durante dois mandatos no executivo camarário de Penela, procurou atender à realidade de “um concelho envelhecido num país envelhecido”.
Um exemplo de “interior de um país é Madrid”, indica o social-democrata que, na qualidade de edil de Penela, não quer “considerar interior um município que está a cerca de meia hora do mar”. “Aqui, a questão do interior, se calhar, é a que habitualmente usamos, mas é mais uma questão de baixa densidade”, refere Luís Matias, que não perfilha a ideia de desertificação local.
O ex-presidente da Câmara Municipal admite que, neste município do distrito de Coimbra ou noutro qualquer, “não há desenvolvimento sem pessoas”. “E estas são precisas para que haja massa crítica num território e para a permanência de um conjunto de serviços fundamentais”, diz ao sinalAberto, reconhecendo que “há um nível crítico em relação ao número de habitantes num concelho que justificam a sua própria existência”. De facto, “alguns concelhos começam a estar confrontados com essa situação”, na contingência de “perderem quase 20% da população”.
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“Um papel muito importante na regulação da sociedade”
Para o advogado e político penelense, “justifica-se a existência de um tribunal, da mesma forma como se justifica a existência de um conjunto de serviços básicos do Estado e que são essenciais para a competitividade dos territórios”. Na perspectiva de Luís Matias, apesar de reconhecer “o contributo que as comarcas ou os tribunais têm dado à Justiça”, o aumento ou a resolução dos problemas neste domínio “não se justifica pela presença do Tribunal de Penela, mas por questões de outra natureza”. Todavia, “a existência dos tribunais acaba por ser importante numa dupla vertente: porque contribuem decisivamente para a aplicação da justiça; e porque a aplicação da justiça deve ser feita nos próprios territórios”. “Sempre foi assim”, acentua o dirigente autárquico, explicando que isso “implica a realização de actividades jurisdicionais, que as pessoas utilizem o tribunal e que um serviço pode ser redimensionado de acordo com a necessidade de funcionários e de mecanismos de funcionamento”.
Ao sugerir a continuidade do tribunal, o ex-autarca alega que “contribui para a aplicação e para a qualidade da justiça”, bem como “para combater, de alguma forma, a sua morosidade e a pendência processual”. Por outro lado, “porque, sendo um órgão de soberania, tem um papel muito importante na regulação da sociedade e no refrear ou na mitigação de alguma tendência para o incumprimento da lei”.
Por conseguinte, Luís Matias assegura que “o papel dos tribunais nos territórios é fundamental enquanto órgãos de soberania, representando o Estado e o poder judicial junto das pessoas, dissuadindo-as no que respeita à prática de crimes”. “Interessa-nos atender, principalmente, à questão da acessibilidade. E a presença do tribunal, aqui, facilita o acesso à Justiça”, alude o ex-autarca de Penela, declarando ao sinalAberto: ”Não temos verdadeiramente justiça, quando ela está longe do cidadão. Uma justiça de proximidade obriga à permanência do tribunal.”
O encerramento do tribunal de Penela (durante pouco mais de dois anos) representou para o município então dirigido por Luís Matias algum afastamento da Justiça relativamente aos cidadãos locais, atendendo a que, para resolverem assuntos judiciais ou alguns litígios, tiveram de se deslocar ao contíguo concelho de Condeixa-a-Nova. Embora a distância entre as duas vilas seja reduzida e as respectivas populações “se dêem bem”, o autarca social-democrata pensa que “o princípio não pode ser esse”.
“Não têm de ser as pessoas que se deslocam a Condeixa-a-Nova ou a Coimbra, havendo aqui estrutura (como é o caso, do Palácio da Justiça ou edifício do tribunal). Devem ser os magistrados a virem cá, como é evidente. Houve, aqui, uma inversão. Se a Justiça administra em nome do povo, tem de servir o povo e tem de gerar essa proximidade. E a acessibilidade à Justiça também se faz por essa proximidade física”, realçava o edil, indagando acerca da conformidade “da análise dos estudos que visaram a avaliação do mapa judiciário”. Neste sentido, o ex-autarca confessa que não vê “de que forma o encerramento desses 20 tribunais pudesse contribuir para uma justiça de maior qualidade, mais célere e mais eficaz”. “E também não me apercebi de que modo o fecho dessas estruturas pudesse ajudar na questão dos custos”, adiantou, esclarecendo que o salário de um dos dois funcionários do actual Juízo de Proximidade é suportado pela Câmara Municipal.
“Verdadeiramente, questiono se a motivação [inerente ao novo mapa judiciário e ao encerramento dos tribunais] era, apenas, de aspecto economicista. Penso que não é por aí que se resolveria o problema”, salienta Luís Matias, argumentando: “Estamos a falar de 20 tribunais, o que representa muito pouco na globalidade de custos do Ministério da Justiça. Julgo que a questão teria a ver com a própria magistratura, que não estaria tão disponível para se deslocar a estes tribunais; até porque havia uma tentativa de concentrar os serviços nos distritos judiciais ou nas comarcas.”
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“Um processo de afastamento e de prejuízo na acessibilidade”
“O que sabemos é que a retirada de um tribunal leva atrás de si, depois, outras dinâmicas” que estão associadas às próprias instâncias judiciais, envolvendo juízes, delegados do Ministério Público, solicitadores e outros intervenientes ou operadores judiciários. “Não me parece que o argumento financeiro possa colher relativamente a esta reforma”, reitera o ex-presidente da Câmara de Penela, o qual contesta os critérios subjacentes à extinção de uma vintena de tribunais. “Acho que não temos de discutir a questão da racionalidade dos critérios, porque o fundamento apresentado para essa reforma judiciária não evidenciava qualquer benefício, nem no ponto de vista financeiro nem no combate à morosidade da Justiça; e muito menos na qualidade da sua aplicação”, expressa ao sinalAberto. “Pelo contrário, evidenciava um processo de afastamento e de prejuízo na acessibilidade do cidadão à Justiça”, releva este advogado que se dedicou à política autárquica.
Se o Poder Central assenta em órgãos de governação de âmbito nacional (onde vamos encontrar também os tribunais, salvaguardando a separação de poderes), o Poder Local exerce-se nas autarquias espalhadas pelo País. Luís Matias teve a confiança dos seus eleitores para, durante dois mandatos, gerir a Câmara Municipal de Penela. Nessas circunstâncias e ao arrepio do Governo de Passos Coelho e de Paulo Portas (entre 2011 e 2015), o anterior autarca participou em várias acções de contestação às intenções da então ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, e associou-se, em Março de 2014, à decisão da Assembleia Municipal (presidida pelo também social-democrata Fernando Antunes, antigo governador civil do distrito de Coimbra) em aprovar uma acção popular contra o encerramento do tribunal local, como estava previsto no âmbito da reforma do mapa judiciário. Na ocasião, os deputados municipais consideraram ser “uma afronta à dignidade do concelho e dos penelenses”, que se mostravam “fartos de ser ‘martelados’ com decisões dos sucessivos governos que não têm em conta o país rural e a interioridade”.
Na mesma acção de protesto (em 9 de Março de 2014) contra o fecho do tribunal de Penela, que – segundo a agência noticiosa LUSA – “juntou pouco mais de 100 pessoas e incluiu uma sessão de esclarecimento sobre o novo mapa judiciário promovida pela autarquia”, também esteve presente o histórico socialista António Arnaut, natural da freguesia de Cumeeira (neste município). Este político e causídico (que exerceu diversos cargos na Ordem dos Advogados, nomeadamente o de presidente do Conselho Distrital de Coimbra, tendo falecido a 21 de Maio de 2018) qualificou de “manifestamente injusta” a reforma judiciária, recordando a antiguidade da comarca penelense, restaurada em 1978, no II Governo Constitucional, que integrou, enquanto ministro dos Assuntos Sociais.
Na oportunidade, António Arnaut declarava: “Custa ver morrer uma coisa que se criou com tanto amor e faz tanta falta às populações. Quando desaparece um tribunal, desaparece o símbolo maior do Estado.”
A 15 de Julho de 2014, a jornalista Liliana Valente (do jornal Observador) notava que vários autarcas do PSD se juntaram à manifestação próximo da escadaria da Assembleia da República, na tarde dessa terça-feira, “contra a reorganização dos tribunais”, apelando para que o Governo voltasse atrás. Luís Matias, eleito pelo PSD e acompanhado por cidadãos do seu município, foi um dos autarcas que integrou o Protesto Nacional de Cidadania contra o Novo Mapa Judiciário, convocado pela Ordem dos Advogados. Em declarações ao Observador, o ex-presidente da Câmara Municipal de Penela disse que eram “vários os motivos que o levaram à rua”, não acreditando “que esta reorganização acrescente melhorias na justiça”.
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“Obscurantismo” relacionado com os critérios
Na mesma ocasião, o edil penelense denunciava um “obscurantismo” relacionado com os critérios para o encerramento do tribunal local, garantindo que os dados que servem de justificação ao Ministério da Justiça (liderado por Paula Teixeira da Cruz) “não são os mesmos” que os autarcas dispõem. Nesse dia, o presidente da Câmara de Penela não foi recebido pela ministra.
Retomando a conversa com o sinalAberto, o presidente da edilidade – já no final do seu segundo mandato – insistiu na ideia de que “a acessibilidade se faz de várias formas”, considerando que “as questões financeiras no acesso à justiça também são muito críticas”. Porém, “a presença dos tribunais próximo das pessoas é um facilitador da possibilidade de elas exercerem o seu direito à justiça”.
Embora seja crítico em relação à alteração da matriz territorial das comarcas de município para o distrito, que levou ao fecho de 20 tribunais e à perda de competências de muitos outros, Luís Matias entende “como boas algumas das propostas da reforma”, a exemplo da especialização dos tribunais. Parece-lhe evidente que “uma justiça de maior qualidade obriga a que a magistratura também se possa especializar”. Reconhecendo a impossibilidade de haver um tribunal de competência especializada em cada área de influência municipal, o ex-autarca de Penela contesta o facto de o juízo local deixar de ter competência genérica. Todavia, encontra “algum mérito nesta reforma, porque contribuiu para a qualidade da justiça”. “Teve aspectos positivos, mas também teve impacto no território, com custos negativos. O encerramento dos tribunais não se justificava, à luz dos objectivos da reforma judiciária”, avalia o edil social-democrata, o qual não se apercebeu de grandes alterações socioeconómicas e culturais no seu concelho relacionadas com a reorganização judiciária e com o fecho transitório do tribunal local. “Penso que não teve impactos. Os escritórios de advogados continuaram aqui sediados e, hoje, há mais advogados instalados do que antes. Foi um período tão curto que é difícil perceber se teve ou não consequências, não nos permitindo fazer uma análise crítica”, refere.
“Actualmente, fazem-se aqui julgamentos todas as semanas”, confirma ao sinalAberto, particularizando: “Isso tem também muito a ver com os magistrados e com a sua disponibilidade para virem a Penela. É muito importante haver, aqui, a leitura de algumas sentenças. Fazem-se algumas diligências instrutórias, do ponto de vista do Ministério Público [MP]. Não sendo uma comarca como era antes – pois, agora, é um juízo de proximidade –, o tribunal não apresenta a dimensão que poderia ter, mas o seu funcionamento não foi muito alterado. Aliás, já funcionava um bocadinho assim, porque o juiz estava agregado a Condeixa-a-Nova. O juiz e o procurador do MP iam uns dias a um lado e outros tantos ao outro.”
“Com a digitalização da Justiça, não é preciso ter uma secretaria judicial tão dimensionada sob a perspectiva dos recursos humanos. As pessoas também já começam, através dos próprios advogados, a aceder aos tribunais de outra forma, fruto desta digitalização. Mas continua a ser essencial, de facto, que haja uma secretaria judicial onde os cidadãos possam dirigir-se. Estamos a falar de pessoas que, por vezes, têm uma elevada iliteracia judicial e que precisam de pequenos esclarecimentos”, acrescenta Luís Matias, para quem uma adequada acção informativa e pedagógica acautela e “retira muita movimentação processual dos tribunais”.
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Pela mobilização da magistratura
Convidado a indicar eventuais consequências no reduzido tecido empresarial do município relacionadas com o encerramento do tribunal, o autarca diz que “não são muito significativas”. “O comércio local é muito importante na nossa comunidade, mas não poderia estar à espera dos processos judiciais para vingar. Isso tem mais a ver com os aspectos estruturais da sociedade e com a organização dos serviços e dos negócios. Poderá ter-se verificado uma menor movimentação de pessoas, mas a coesão dos territórios faz-se com a permanência e a qualificação dos serviços públicos. Assim, se tivermos um serviço menos qualificado e menos capacitado, estamos a reduzir a competitividade do território”, explicita.
“Não é despicienda a existência de um tribunal aqui, da mesma forma que não é despicienda [ou insignificante] a presença de qualquer outro serviço público: conservatória, notariado, serviços de saúde ou de educação. Eles fazem parte da estruturação de um território para os seus factores de competitividade. Portanto, hoje, ter um tribunal é tão importante como dispor de uma escola ou de um centro de saúde”, clarifica Luís Matias.
“Isto não é, apenas, uma questão de orgulho territorial”, acentua o ex-autarca penelense, prosseguindo: “Entendo que estes tribunais [como o de Penela] podem ajudar na desobstrução da justiça, sabendo que outros tribunais estão com dificuldades, até sob o ponto de vista físico e das instalações. O modelo judiciário desta reforma é compreensível a nível da especialização, mas deve verificar a mobilidade dos magistrados, porque os julgamentos terão de ser feitos nos próprios territórios.”
Para o ex-edil social-democrata que quer retomar a advocacia, o nosso país “carece de melhorias na qualidade e na soberania da Justiça”. Por isso, convém “não permitir os fenómenos de politização da Justiça ou da judicialização da Política”. “O problema é que a Justiça está a perder a respeitabilidade que tem tido na comunidade. O princípio da separação de poderes precisa de ser reforçado”, preconiza Luís Matias, reiterando uma frase muito instrumentalizada por diferentes agentes sociais: “À Justiça o que é da Justiça, à Política o que é da Política.” “A Justiça procura, em cada dia, imiscuir-se nas questões da representação política e os actores políticos procuram também, de forma absolutamente indecorosa, meter-se nos assuntos da Justiça!”, acusa o anterior presidente da Câmara Municipal de Penela, que garante ter “assistido a um fenómeno de demasiados vasos comunicantes entre a Justiça e a Política”. “Hoje, partimos para uma sociedade que sofre de bullying [de ameaça ou de coerção] entre a Política e a Justiça. Há, quase, uma medição de forças e de poderes, para saber quem manda mais. E, assim, as pessoas são prejudicadas”, conclui.
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“A terra notou muito a falta do tribunal”
Na tarde de 19 de Maio de 2021, encontrámos Maria Gracinda Rodrigues Duarte e Amaral Duarte, um casal de octogenários do concelho de Penela, à porta da sua residência na Rua da Liberdade, que prontamente traduziram os seus sentimentos relativamente à população local e ao encerramento do tribunal, durante mais de dois anos. Ambos reformados, sempre que podem, aproveitam os benefícios de uma breve conversa com os poucos vizinhos que lhes restam nesta vila do distrito de Coimbra. Curiosamente, têm uma nora advogada com escritório numa rua mais abaixo.
Maria Gracinda nasceu na freguesia do Espinhal e Amaral Duarte é natural de Penela, tendo experimentado os primeiros passos numa casa quase em frente do edifício onde reside. Sempre viveu na vila. Ali trabalhou como terceiro oficial administrativo da Câmara Municipal.
Para estes dois cidadãos penelenses, o fecho do tribunal representou, de certa maneira, a negação do acesso à justiça numa comunidade “em que todos se conhecem”. Também por isso, manifestaram o seu incómodo em relação às deslocações ao tribunal de Condeixa-a-Nova. Por outro lado, segundo Maria Gracinda, “as pessoas começaram a andar mais à solta”. Não querendo ser mal interpretada, observa: “À solta é um modo de falar…” O marido interrompe: “E tínhamos de ir para mais longe. Por causa de uma participaçãozita, tínhamos de ir para Condeixa, que fica a cerca de 16 quilómetros. Há camionetas para lá e eu tenho carro, mas outros não!”
“As pessoas ficaram muito incomodadas. Toda a gente era contra e com razão!”, recorda Maria Gracinda, enquanto Amaral Duarte expressa: “Tínhamos, ali, um estabelecimento que é do melhor que pode existir e tiraram-nos o tribunal!”
“Acho que o juiz vinha de fora, nos dias de audiência, umas duas vezes por semana. Mas tínhamos cá os oficiais de justiça e essas coisas todas. Estava tudo cá!”, expõe ainda Maria Gracinda, salientando que “a terra notou muito a falta do tribunal”. “Notava-se a falta das pessoas. Se não havia audiências, não vinha gente. Como Penela é uma vila muito pequenina e sem movimento, animava sempre que vinham os réus, os queixosos, as testemunhas e outros que gostavam de assistir. Como todos se conhecem, muita gente assistia aos julgamentos”, comenta.
“Penela está a ficar sem gente. Os velhinhos vão morrendo e os novos não ficam cá”, constata Maria Gracinda, coadjuvada pelo marido: “Metade deles vão estudar para Coimbra. Aqui, os alunos só frequentam até ao nono ano de escolaridade.” E a conversa repete-se: “Nós precisamos cá de mais gente. Mas de gente nova, porque os velhos vão partindo. Olhe para a Praça da República!… Tudo isto era habitado. Agora, sou eu e o meu marido. Está acolá um velho mais velho do que nós. O café abriu há pouco. E o resto está tudo fechado, não está aqui ninguém!” Entretanto, o castelo de Penela continua a mostrar a sua posição dominante e a evocar outras épocas.
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“Houve atrasos na marcação dos julgamentos”
Depois de várias tentativas de entrevista presencial falhadas, por razões de disponibilidade profissional e também relacionadas com os constrangimentos do prolongado período pandémico da covid-19, o sinalAberto consegue falar com a delegada da Ordem dos Advogados (OA) em Penela, Andreia Pascoal, na tarde de 20 de Julho de 2021, na véspera das suas férias de Verão. Numa conversa amena, por videoconferência através da plataforma de comunicação integrada Zoom, quisemos saber da sua percepção quanto aos impactos do novo mapa judiciário e do encerramento temporário do tribunal local, entre Setembro de 2014 e Janeiro de 2017.
“A partir do momento em que se fecha um tribunal, as pessoas ficam com a sensação de que se está a dificultar o acesso à Justiça, tendo em conta a proximidade a que estavam habituadas”, considera a advogada, recordando que os processos de Penela passaram a ser tratados no Tribunal de Condeixa-a-Nova, que tem apenas uma sala de audiências. Há quase oito anos (em 21 de Fevereiro de 2014), Andreia Pascoal, já na qualidade de delegada da OA, declarava ao Correio da Manhã: “Podemos até ter magistrados, mas se não tivermos sala vai haver mais atrasos na Justiça.”
“Na altura, houve uma acção popular e foram marcadas várias sessões e reuniões, também em Lisboa, em que participei”, menciona a causídica, notando que, “apesar de tudo, Penela não foi dos municípios com situações piores”. “Passámos para o Tribunal de Condeixa-a-Nova, a menos de 20 minutos de condução automóvel. Já no Norte ou no Alentejo, as distâncias não têm só a ver com o número de quilómetros, mas igualmente com as acessibilidades”, assinala Andreia Pascoal, relevando “o sentimento de perda de um serviço, que foi deslocado”, a exemplo do “receio de vermos fechar a repartição de Finanças ou o posto dos Correios”.
“O que interessa mais aos cidadãos é o dia do julgamento”
“A abertura do Juízo de Proximidade veio compensar, e muito, sobretudo para os cidadãos; porque, de alguma forma, os processos são tramitados, por nós [advogados], cada vez mais por via online, através das plataformas”, avalia, acentuando: “O que interessa mais aos cidadãos é o dia do julgamento. Por isso, quando fecharam o tribunal de Penela, as pessoas sentiram-se em perda pelo facto de terem de se deslocar a outro concelho para acederem à Justiça.” Porém, “com o regresso dos julgamentos a Penela, em 2017, penso que a população deixou de estar preocupada”.
Como informa a delegada da OA, “a parte criminal continua a ser tramitada em Condeixa-a-Nova, embora os julgamentos sejam feitos em Penela”. “Ainda hoje, todos os interrogatórios realizados pelo Ministério Público [MP] são tramitados em Condeixa-a-Nova. Os únicos interrogatórios que decorrem aqui [no Juízo de Proximidade de Penela] são efectuados na Guarda Nacional Republicana, de acordo com as indicações do MP. Todavia, quando que se pretende que o inquérito seja mesmo no MP, temos de nos deslocar a Condeixa, incluindo as restantes pessoas”, esclarece a advogada.
Em relação aos impactos socioeconómicos resultantes da decisão da então ministra da Justiça (Paula Teixeira da Cruz) de avançar com o novo mapa judiciário, extinguindo 20 tribunais (a exemplo da comarca de Penela) e retirando competências a outros, Andreia Pascoal diz que, enquanto advogada, na sua prestação com os clientes, não se apercebeu de alterações substanciais. “Não houve fecho de escritórios na vila por causa disso, embora não sejamos muitos. Alguns abriram posteriormente, quando deixámos de ter aqui o tribunal. Provavelmente, aquilo que não puder transitar digitalmente obrigou-nos a deslocar a Condeixa-a-Nova, o que antes não acontecia”, expressa ao sinalAberto.
No entender da advogada penelense, não ficaram grandes marcas na comunidade local devido à reorganização judiciária, mesmo no aspecto cultural e simbólico. “Se olharmos para Mirando do Corvo, aqui ao lado, esse concelho nunca teve tribunal, estando sob a área de influência da Lousã. Obviamente, quando nos fecharam o tribunal, houve um sentimento de perda e a impressão de que, se calhar, a seguir encerrariam outros serviços. Felizmente, isso não veio a acontecer!”, confirma a delegada local da OA, atestando que ninguém foi prejudicado, verdadeiramente, a nível dos direitos, liberdades e garantias.
“Se tivéssemos passado para o tribunal da Lousã – não é que seja muito longe –, seria mais complicado para a população; até porque Condeixa-a-Nova é um concelho limítrofe e muitos dos nossos munícipes fazem mais a vida aí”, supõe a advogada Andreia Pascoal, admitindo não ter havido perda de soberania. “O município acabou por fazer aquilo que lhe era possível. De certo modo, trabalhou para a reactivação do seu tribunal”, nota a causídica, recordando que diversas matérias jurídicas mais especializadas, como as de Família e Menores e do Comércio, “já eram tramitadas fora da comarca, sobretudo tratadas em Coimbra”.
Com efeito, “não ganhámos propriamente nada”, insiste a advogada penelense, lembrando algumas promessas por parte da tutela: “Em vez de um juízo de competência genérica, é melhor pensarmos nos juízos especializados em determinadas matérias.” No entanto, “como já não as tínhamos, não obtivemos quaisquer vantagens”, reitera a causídica, admitindo ainda que o Ministério da Justiça não terá reduzido os custos com o fecho do tribunal. “A única alteração que poderia ter havido seria inerente à utilização do próprio espaço e aos consumos de água e de luz, já que os funcionários judiciais foram colocados noutros lugares”, pondera a delegada da OA, realçando que, “no primeiro ano e meio após o encerramento do tribunal, houve atrasos na marcação dos julgamentos; morosidade que antes não se verificava”.
“Actualmente, já se fazem quase tantos julgamentos em Penela como em Condeixa-a-Nova”, alude Andreia Pascoal, frisando que, até 2014, “fazendo a comparação com o que se passava a nível nacional, o tribunal de Penela não tinha atrasos nos processos”. Contudo, “com esta mudança [ou reorganização do mapa judiciário], passou a ter”. “Mas, com o regresso [ou a reactivação] do tribunal, já foi compensada a questão da morosidade”, garante a nossa entrevistada.
Acerca dos critérios que estiveram na origem do encerramento de 20 tribunais, atentando contra o Estado de Direito democrático, como manifestou o Sindicato dos Oficiais de Justiça, em comunicado, no início de Abril de 2014. Também a advogada põe em causa “os elementos estatísticos apresentados” relativamente à produção média de 250 processos por ano: “Penela é um concelho pequeno e com poucos habitantes. Assim, não pode tramitar o mesmo número de processos que um município com mais gente. Além disso, também não foi tido em conta que o tribunal de Penela já não tratava determinadas matérias especializadas.”
Ao finalizar a conversa com o sinalAberto, a delegada da Ordem dos Advogados em Penela subscreve a ideia do seu colega Luís Matias (anterior presidente da edilidade local) de que “quem se deve deslocar não são as pessoas, mas os tribunais; neste caso, os magistrados”. “Em relação ao Ministério Público [MP – órgão do sistema judicial nacional encarregado de representar o Estado e de exercer a acção penal], temos condições em Penela para receber as pessoas”, acredita, esclarecendo que, “na área penal, quem se desloca para os julgamentos é o magistrado do MP e o juiz”. “Quando estamos a falar de uma acção que não seja penal, só se desloca o juiz”, elucida ainda, ressaltando: “Faria todo o sentido que os interrogatórios do MP fossem feitos aqui, atendendo a uma população com muitas pessoas idosas, algumas com dificuldades de mobilidade.”
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17/01/2022
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A SEGUIR:
A Justiça no Médio Tejo: Ferreira do Zêzere e Mação
*Nas próximas semanas, no jornal sinalAberto, continuaremos a desenvolver o dossiê com o título genérico “Justiça: o que não se lê no mapa”, no âmbito das Bolsas de Investigação Jornalística 2020, atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian.