La Divina Commedia di Giulio e dei Cardinali
O Palazzo dei Libri foi construído por Giulio Santorini com intuição, paixão e sabedoria.
Tratava os livros como filhos e atraia-os de lugares improváveis. Era inexcedível na conservação. Os espaços eram amplos e a humidade controlada. Cada um tinha o seu lugar, como uma família numerosa à mesa.
Até mesmo os insetos comedores de papel tiveram uma atenção: um batalhão de morcegos residentes exterminava-os durante a noite, numa implacável luta surda que lhe tinha sido sugerida pela gloriosa Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, velha de séculos. A verdade é que os livros com gravações a ouro ainda viviam nesse lugar longínquo.
Giulio praguejou em bom italiano, do alto da longa escada metálica de seis metros onde observava, desolado e condoído, as boas três dúzias de livros que se tinham despejado sobre a sua cabeça, rolando pelas suas costas já bem arredondadas por tanto equilibrismo, saltitando pelos degraus como se fossem lagartos vivos, e, finalmente, derramando-se sobre o tapete macio da Camera Nuziale, onde aproveitaram para se entrelaçar de forma um tanto equívoca, lombadas encaixadas em conchas de páginas abertas, conchas frente-a-frente com conchas, simétricos, lótus.
Havia ainda folhas rasgadas, em pranto suave, e pequenos montículos que pareciam esbracejar em ménage à trois, um pouco à margem dos outros.
Já lhe tinha acontecido muitas, muitas vezes, e detinha-se sempre para observar, durante longos minutos, as inenarráveis formas e confusões. Pareciam vivos.
Pareciam debater-se um pouco, primeiro, para logo adotarem uma atitude de lassidão e suave expetativa, como se esperassem ser compensados com um beijo, uma suave carícia ou mesmo uma pequena escovadela com fios de seda. Normalmente, à falta de melhor, usava a escova macia para sapatos que tinha no armário da entrada.
Naquele caso a sua visão, já um tanto perturbada e alucinada, devido à gravidade da tragédia, era acentuada pelas magníficas reproduções que tinha nas paredes da Nuziale, que pareciam réplicas fiéis dos originais, feitas por mãos humanas, e que tinha acumulado ao longo de décadas, com o desvelo de curador do Louvre.
A principal era a intraduzível Mãe e Filho de Klimt, mas O Sonho da Esposa do Pescador de Hokusai não se ficava atrás. Uma e outra pareciam sugerir aos livros que a sua missão era andar aos pares, já que a verdade tinha sempre um lado e o seu contrário, muitas vezes em simbiose perfeita.
Já A Origem do Mundo, de Courbet, chamava mais a atenção dos jovens seminaristas e dos velhos curas do Vaticano, que chegavam a organizar autênticas visitas de estudo ao seu Palazzo dei Libri.
Um pouco estonteados da viagem e da expectativa, começavam normalmente pela Camera Filosofica, onde pontuava A Torre de Babel de Bruegel, em frágeis camadas triclínicas contidas pelas nuvens, como se dissessem que o conhecimento devia respeitar primeiro as obras naturais de Deus.
Folheavam então durante uns minutos Tommaso d’Aquino, Spinoza e Macchiavelli, para logo passarem rapidamente a Schopenauer e Nietzsche, sob o olhar atento do decano, e aterrarem finalmente em Lévi-Strauss, Wittgenstein, Sartre e mesmo Marx enquanto o decano ia à casa de banho, pressionado pela próstata.
Extasiados, examinavam então uma das primeiras edições da Divina Commedia, que Giulio tinha comprado a um alfarrabista maluco, apontando os raios X em ângulos vários, como se ainda houvesse surpresas.
Raramente havia derrocadas de livros na Filosofica e, quando havia, ficavam sempre uns com o dedo no ar e outros com o sobreolho carregado, como se estivessem zangados com as interrogações alheias. Isto, claro, não passava de uma impressão, a sua, acentuada pela rigidez austera das lombadas, onde predominava o cinzento grafite, sublinhado a negro antracite.
A discussão e a dúvida, para muitos, eram ainda um mistério das grutas e dos túmulos.
Os velhos curas dirigiam-se depois, circunspectos, à Nuziale, onde começavam pelo Nascimento de Vénus de Botticelli, confortados pelo deus do vento que desejavam ver confundido com um anjo, e, ocasionalmente, pela Sereia de Waterhouse, por ser um mistério natural dos mares longínquos, aceite por todos, incluindo o Papa, que era um homem cheio de curiosidade, antes de rumarem à Origem do Mundo, onde se encontravam com os seminaristas jovens, que chupavam o polegar esquerdo e apontavam as curvas delicadas com o indicador direito em riste, quando não eram canhotos.
Era, aliás, frequente chegarem a perder o equilíbrio com o assombro.
O decano, esse, dava uns dedos de conversa com Giulio e perguntava-lhe como tinha começado o Palazzo, conversa interminável que se multiplicava mil vezes, enquanto percorria discretamente as bizarras e inexplicáveis formas das paredes com a sua visão lateral, repetindo distraidamente perguntas que já tinha feito, para desespero de Giulio, que assim se via remetido a historiador falido de excursões turísticas, que nunca quis ser na vida.
A verdade, ponto, era que as ilustrações de parede da Camera Nuziale eram la joie de vivre do Palazzo.
Todos, mas mesmo todos, se sentiam irremediavelmente transformados nesse diálogo intraduzível entre botticellis e courbets, entre waterhouses e hokusais, para não falar no dos gauguins com todos os demais, e entre todos estes e a extraordinária coleção de livros eróticos que Giulio tinha construído toda a vida.
Era mesmo quase toda a vida. Giulio Santorini começou aos 14 anos como moço de recados de uma pequena livraria de Firenze. Hoje, aos 74, ainda cuidava do seu Palazzo dei Libri como um jardineiro do Kenrokuen, que tinha aliás visitado repetidamente durante um ano de estadia em Kanazawa.
Mas o espanto ingénuo dos curas, que se repetia ano após ano, tinha sido finalmente suplantado pela burocracia do Vaticano, apesar de os segredos da Biblioteca Apostolica Vaticana serem ainda reservados a poucos e poderem, mesmo, conter inomináveis surpresas, a ver pelo que se passava com o Istituto per le Opere di Religione, vulgo Banca Vaticana, que todos os dias provocava dolorosos sobressaltos, a todos menos à Pontificia Commissione e, segundo parecia, aos Cardinali della Chiesa, ou pelo menos à maioria.
Giulio sonhou há dias que o Segretario Generale tinha uma espantosa coleção privada de nus de Botticelli, mas devia ser uma partida do seu cérebro, já um pouco cansado de imaginar o pior ou, querendo, de imaginar o que todos consideravam absurdo.
O sonho deixava claro, também, que o supercardeal estava disposto a tudo, absolutamente a tudo, para defender a sua privacidade, incluindo a impostura.
As cadeias eletrónicas de compras, máquinas automáticas de sofrimento humano, desperdício e pulhice ambiental, fizeram o resto.
Os livros encomendavam-se baratos e rapidamente, reduzindo aceleradamente os clientes do Palazzo a velhos reticentes da arte dos computadores, embora cultos, e a jovens que ainda gostavam do cheiro do papel, e de ver arte, e de conversas inteligentes, e de refletir com pausas.
Mas eram poucos, porque não tinham tempo. Além do mais, no Palazzo, não se comiam pipocas.
A falta de tempo tem essa subtil propriedade de ser uma excelente desculpa para aquilo que não se quer fazer, ou que é mais difícil fazer, ou que o sentimento de culpa impede que se faça. O mundo, hoje, quer que os jovens brilhantes e fervilhantes de curiosidade morram cedo, esmagados pela culpa de não poderem trabalhar mais.
Há dois anos, para cúmulo, abriram dois shoppings ao lado da porta principal do Palazzo, reduzindo-a à haste partida de um galheteiro sem função visível. Essa porta parecia agora a entrada esconsa de uma casa de penhora clandestina, em que os clientes entravam com gabardina e óculos escuros.
Nunca deu para perceber se o Segretario Generale meteu aí a mãozinha. Mas não parecia improvável, atendendo aos tentáculos da Banca.
Teve de comprar a casa devoluta das traseiras e abrir uma nova porta principal na rua de trás, por sorte ao lado de uma mercearia antiga e a pouca distância de uma retrosaria, que o pronto-a-vestir à Mao gostaria de suprimir. Não havia shoppings de néon à vista.
Quando precisava de inspiração absorvia os odores delicados da mercearia. Comprava aí todos os seus prosciuttos, mozzarellas, maccheronis e piemontes, quase sempre em quantidade um pouco excessiva para ajudar. Os cocktails de apresentação de livros passaram a ser organizados pela mercearia.
Renovou o seu vestuário com os adereços, botões e outros produtos da retrosaria, e contratou-a para fornecimento de todos os fios para encadernações antigas.
Transformou-se, em suma, num militante de causas perdidas, ou quase.
Ontem entrou-lhe pela casa um antigo cliente à procura de um livro esgotado, desses que já não são reimpressos, apesar de úteis.
Os velhos alfarrabistas morreram. As bibliotecas oferecem os livros afogados a centros recreativos da província ou a territórios ultramarinos, por falta de espaço. Os representantes locais das editoras transformaram-se em esquálidos centros informáticos do que não têm nas prateleiras, pois cada livro afogado tem um custo de contexto. Parecem agora cockpits de aviões comerciais, inchados de modernidade inútil.
Tinha de ser ele, Giulio. Ele, Giulio, ainda poderia ser o alfarrabista que faltava, apesar de não o ser.
Era um velho tratado de direito constitucional, peça rara, e socorreu-se da Camera delle Leggi do Palazzo, famosa em todo o país pelas suas incríveis reproduções de George Washington e James Madison, e, não menos importante, por uma das primeiras edições da Constituição americana, exposta ao público.
Professores e estudantes de direito de todo o país faziam visitas guiadas quase todos os meses. Tinha orgulho nisso.
Só não tinha orgulho nas provocações diárias à Constituição, feitas por um homem de crista amarela que parece um mentiroso patológico e insano, desses que aparecem nas ruas com ar esgazeado a tentar impingir-nos uma cautela que já venceu, ou um patético vendedor de feira a anunciar produtos contrafeitos aos berros num microfone roufenho, sem desprimor para com os bons feirantes, que prestam um serviço útil.
Incrível como aquele que era o país mais poderoso do mundo não o consiga despedir sumariamente e exilar de imediato para as Galápagos, nuzinho como Deus o deu, onde seria posto em linha pelas poucas iguanas que ainda existem.
Sonhou um dia destes que aquele país longínquo, mas tão próximo, tinha inchado de repente com todos os cadastrados ingleses e irlandeses da colonização, perpetuados pelos genes, e mergulhado numa segunda guerra civil.
A ser verdade seria mau, muito mau mesmo, mas, paradoxalmente, aumentaria o valor do Palazzo. Preferia sinceramente, de qualquer forma, que tal não acontecesse.
Encontrou o livro na última prateleira da Leggi, coberto de pó, mas vivo.
Embora catalogado no computador, sentiu dificuldade em encontrar a cota, que se tresmalhou com o tempo. Teve de pedir aos funcionários da mercearia e da retrosaria que escorassem firmemente a escada. Ofereceram-se para ir lá acima, mas ele insistiu. Resgatou o livro em pessoa.
Era, de facto, uma primeira edição rara.
O cliente ficou tão feliz que lhe doou a sua vasta coleção de arte, que está neste momento a utilizar para fazer brilhar as cameras do Palazzo menos luminosas. Num dia próximo a Camera dello Scienziato e a Camera dei Poeti ficarão igualmente visíveis. Sondará Cesare Pavese nos seus sonhos para trazer ali o melhor poeta.
Pediu à mercearia que organizasse um cocktail, para celebrar, e convidou todos os clientes.
Estranhou quando viu entrar o Segretario Generale em pessoa, escoltado por uma vasta corte de batinas vermelhas. Vinha com a proposta de comprar o Palazzo e trazia uma sólida garantia da Banca Vaticana. Oferecia-lhe uma fortuna, dez vezes mais do que a proposta dos shoppings.
Nada disse e, instintivamente, convidou-o a visitar a Nuziale.
Disse-lhe então que sim, que agradecia a oferta e que aceitaria, mas que o contrato teria de incluir a compra de todas as obras de arte, que ficariam impedidas de venda durante um período de dez anos.
Mais: todas as obras ficariam expostas em permanência nos Musei Vaticani e duas delas, em particular, ficariam nas paredes da sala de reuniões do Consiglio dei Cardinali, bem à vista de todos.
O Segretario Generale foi atravessado por um arrepio gelado, que todos sentiram sem saber como. Quis, no entanto, saber que obras seriam.
Tratava-se de O Sonho da Esposa do Pescador e de A Origem do Mundo, esclareceu Giulio, sem pestanejar. E apontou-as.
A cena que se seguiu não pôde ser reproduzida por nenhum dos presentes, com exceção de Giulio, que a guardou discretamente para memória futura.
O dia estava escuro e cinzento, coado por nuvens. Um morcego voou subitamente pela sala, fazendo tangentes aos cardeais. Era um fenómeno muito raro, pois os animais dormiam de dia.
Dava guinchos surdos que pareciam o choro de uma criança. Dois cardeais idosos ajoelharam-se, ergueram as cruzes e murmuraram sons que pareciam rezas, embora fossem difíceis de identificar, devido aos murmúrios.
Provavelmente o morcego embateu numa estante, lá bem no alto, e provocou uma queda torrencial de livros, esvaziando duas colunas em poucos segundos.
A queda atingiu vários cardeais e cónegos. Um desmaiou e teve de ser assistido com amónia. O ruído pareceu o de um terremoto e, juntamente com os guinchos, transmitia a impressão de que uma criança tinha ficado soterrada. Dois cónegos foram vistos a retirar livros freneticamente, atirando-os ao ar.
As luxuriantes ilustrações das paredes da Nuziale pareciam controlar os livros, que se contorciam em camadas, parecendo vivos.
Um deles pendurou-se no nariz de um clérigo e exibiu-lhe um seio rosa e suculento, saltando de uma camisa branca rasgada, como uma mola. Não se percebia bem se era de rapaz ou de rapariga.
O Segretario Generale empalideceu visivelmente e tentou impor a voz, que, no entanto, mal se ouvia.
Em desespero, agarrou-se a Giulio e pediu-lhe que o levasse dali. Mas ele próprio estava paralisado, quase catatónico de espanto. Acabou por reunir forças e conseguir sentá-lo numa poltrona. O homem deixou-se afundar e tapou a cabeça com as mãos. O morcego continuava a guinchar.
As páginas dos jornais, no dia seguinte, mostraram fotos de pessoas vestidas de vermelho, em debandada e a serem assistidas por ambulâncias. Não se percebia quem eram e não havia detalhes, mas parecia ser grave.
Espalhou-se a sinistra ideia de que o lugar estava tomado pelo diabo. Todas as entradas da rua foram encerradas por tempo indeterminado. Os shoppings fecharam portas por uns dias, que depois se transformaram em meses.
Não foi muito percetível, mas uma notícia, dois dias depois, sugeria fortemente que o Segretario Generale estava demissionário e que o Papa deveria encontrar um sucessor.
A Banca Vaticana fechou para balanço, segundo diziam. Os Musei Vaticani pareciam ter fechado alguns circuitos para reprogramação. Nada era verdadeiramente claro, mas assim parecia.
O debate público que se seguiu chamou a atenção para as almas da cidade em vias de extinção, e apareceram apoios inesperados, quer de públicos quer de privados.
Quanto a Giulio, continuou a fazer a sua vida normal e reforçou mesmo as cameras do Palazzo. A Scienziato e aPoeti abriram ao público com novas faces.
Giulio Santorini e os clientes continuaram a entrar e a sair todos os dias pela rua da mercearia e da retrosaria. Nunca houve tantas visitas guiadas de artistas, estudantes de direito, estudantes de filosofia, estudantes de literatura e cónegos, jovens e velhos.
Todos queriam tocar na Divina Commedia e desenhar no ar os traços surpreendentes e indeléveis da Origem do Mundo.
Alguns passavam longos minutos absortos nos telhados e nos interstícios altos das estantes, à espera de um batman.
Pode contactar o autor através de: pratas-young@theyeofhorus.net