Leandro Vale (1940-2015): do CITAC às aldeias remotas

 Leandro Vale (1940-2015): do CITAC às aldeias remotas

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Esta é uma peça em um acto. Pessoal e intransmissível.  Sobre um citaquiano que fez teatro, cinema, televisão e rádio. Um ser humano profundamente inquieto que não parava. Nunca parou. A não ser em 2 de Abril de 2015. Por motivos de força maior.

1.ª Cena – Em boa verdade, já não me lembro, ao certo, quando a vida do Leandro Vale se cruzou com a minha. E onde. Sei, isso sim, que foi antes do dia “inicial inteiro e limpo”.

E sei porque, quando saíamos da “Flor dos Congregados”, velha adega da “baixa” do Porto e dobrávamos a esquina da “Sampaio Bruno”, rumo à “Brasileira” ou ao “Montarroio”, tínhamos o cuidado de confirmar se os nossos passos não eram alvo de alguma atenção especial…

Pela “Brasileira” ou pelo “Montarroio”, ficávamos à conversa horas seguidas, aconchegados pelo “rojão” no pão, pelas papas de sarrabulho e pelo “branco” da Lixa, que o Alberto nos tinha servido na “Flor”.

O Leandro Vale estava, então, na casa dos “trinta” e eu andaria pelos dezassete ou dezoito anos, metidos em corpo lingrinhas e cabeça protegida por farta cabeleira.

2.ª Cena – Com o Leandro, partilhava as minhas inquietações e os meus sonhos; e ele ouvia-me lá do alto do seu corpanzil impositivo e imponente, com a cumplicidade de um Amigo.

E falávamos de teatro, de poesia e de poetas, de política, de rádio e de publicidade, que foi, muitas vezes, a actividade que lhe permitiu continuar à boca de cena.

Por vezes, quando algumas moedas sobravam nos nossos bolsos, subíamos até à Rua do Almada e descíamos até à cave do “Candeia Bar”, para uma noitada de fados e de copos.

O “Candeia Bar” era uma das duas “boites” que então havia no Porto. Era assim a modos que uma casa mal afamada e tinha um porteiro, o senhor Lopes. Senhor Lopes que frequentemente, sem o saber, ficou fiel depositário de panfletos proibidos, como aqueles que reclamavam liberdade para os presos políticos.

3.ª Cena – O Leandro Vale era um tipo em movimento perpétuo. (Foi sempre, mesmo depois de lhe terem amputado uma das pernas). Fazia teatro e escrevia poesia, contos, peças, crónicas, que lia na rádio; e trabalhava em publicidade.

Após o “25 de Abril”, o Leandro resolveu bater com a porta. Deixou o emprego na agência de publicidade e rumou ao Sul. Para Évora. Com Mário Barradas e outros, ergueu o Centro Cultural e levou o teatro às gentes mais simples do Alentejo.

“Ó puto, isto vai, isto vai!”, dizia-me sempre que nos cruzávamos em Lisboa, no Porto ou na Outra Banda, mas sempre na margem esquerda da vida.

4.ª Cena – Anos mais tarde, o Leandro deixou o Alentejo e rumou a Trás-os-Montes. Para fazer teatro. Teatro em Movimento. Fixou-se em Bragança e, com a sua companhia, percorreu as aldeias mais remotas.

Em Trás-os-Montes, fez teatro e disse poesia, em celeiros, estábulos, palanques improvisados, estádios, clubes e colectividades populares; ao ar livre; no tablado dos teatros e no chão rijo da Terra Quente e da Terra Fria. Pintou o sonho pelos céus de uma vasta região que Torga considerou o Reino Maravilhoso.

Reino Maravilhoso – Miguel Torga, por Carlos Baptista.

Bragança desistiu dele e Leandro rumou a Torre de Moncorvo. Instalou-se na antiga judiaria, possivelmente não muito longe da casa que acolheu os antepassados de Jorge Luís Borges, o escritor e poeta argentino a quem dedicou, em 1999, uma peça de teatro: “Eu! Jorge Luís Borges”.

Durante dez anos, em Torre de Moncorvo, organizou um festival internacional de teatro, promoveu colóquios e exposições. Escreveu. E enfrentou o desespero com gritos e cóleras, perante as aldeias cada vez mais silenciadas pela ausência de gente.

5.ª Cena – A sua companhia deixa de ser subsidiada. Mas Leandro resiste. Continua a formar actores e a dirigir peças. Nos Açores, onde também faz cinema, sob a batuta do genial Zeca Medeiros; em Esmoriz e em Oeiras. “Renascer” e “Nova Morada” são o seu porto de abrigo. Cuba e o Festival Internacional de Holguín também contam com os seus préstimos.

6.ª Cena – Agora, já não falamos. Desde o dia 2 de Abril de 2015. Mas eu sei que o Leandro está algures, numa galáxia, a fazer teatro. Como se estivesse no CITAC, em palcos de Lisboa ou do Porto ou na mais remota das aldeias transmontanas.

Nota final: Nascido em Travanca de Lagos, no concelho de Oliveira do Hospital, Leando Vale foi um dos fundadores do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC). Formou-se no Conservatório de Lisboa e, ao longo da sua vida, integrou inúmeras companhias. Teatro d’Arte de Lisboa, Teatro do Gerifaldo, Vasco Morgado e Teatro Experimental do Porto foram algumas delas. Escreveu peças de teatro, romances e poesia. Fez rádio, televisão e cinema, destacando-se em filmes e séries televisivas como “Mau Tempo no Canal”, “A Sombra dos Abutres” ou “Aqui Jaz a Minha Casa” – o último filme que protagonizou. “Aqui Jaz a Minha Casa”, realizado por Rui Pilão, é um retrato implacável sobre a desertificação a que tem sido condenado o território transmontano.

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Veja o trailer do filme aqui: http://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/9158/Aqui+Jaz+a+Minha+Casa

20/06/2022

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Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

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