Lei da “influência estrangeira” da Geórgia trará problemas à UE?
O Georgian Dream, partido no poder, na Geórgia, quer reduzir drasticamente o peso político das organizações não-governamentais (ONG) que têm recebido financiamento do estrangeiro, especialmente da União Europeia (UE) e dos Estados Unidos da América (EUA).
Através da lei da “influência estrangeira”, o governo e a maioria parlamentar favoráveis ao Kremlin querem obrigar as ONG que recebem mais de 20% de financiamento do estrangeiro a registarem-se como agentes estrangeiros. Assim, várias ONG internacionais de defesa dos direitos humanos presentes na Geórgia, incluindo a Transparency International e a Human Rights Watch, inscrever-se-ão num registo público como “estruturas financiadas pelo estrangeiro”.
Uma lei, com nome diferente, foi retirada, em 2023, no meio de grandes manifestações e de condenações diplomáticas da parte da UE e dos EUA. Agora, a chamada “lei russa” deverá desempenhar papel crucial, antes das eleições parlamentares de outubro na Geórgia.
As organizações com ou sem fins lucrativos que recebem financiamento externo e assinam contratos ou acordos legais já estão registadas no Ministério das Finanças como uma medida legal ordinária para efeitos fiscais. Porém, segundo a lei sobre “influência estrangeira”, as ONG devem declarar-se como organismos estrangeiros e também terão de dar pormenores sobre quem atribui o financiamento, o que levanta a questão: “Se o Ministério das Finanças dispõe de informações sobre a origem do financiamento, porque obriga as organizações a registarem-se novamente e rotulá-las como influenciadas por atores estrangeiros?” Para os críticos, a resposta é simples: em controvérsias jurídicas e políticas, podem ser acusadas de agir contra o interesse do país onde operam.
Há semanas, centenas de milhares de cidadãos georgianos saem para as ruas de Tbilisi, exigindo ao governo que retire a lei, por julgarem a definição de “influência estrangeira” demasiado ambígua e a redação inadequada para um documento legal, de acordo com os princípios do Estado de direito.
Para a sociedade georgiana, o projeto de lei é semelhante a uma lei que entrou em vigor na Rússia, em 2012, quando a Federação Russa iniciou a repressão das liberdades públicas e dos direitos civis. As explicações do partido no poder sobre o objetivo da lei têm ecos inquietantes na opinião pública pró-UE e pró-ocidental. “O financiamento das ONG, que se apresenta como uma ajuda para nós, serve, na realidade, para reforçar as agências de informação (estrangeiras) e para as levar ao poder”, afirmou Bidzina Ivanishvili, oligarca bilionário presidente e fundador do partido Georgian Dream, em abril, no início do processo legislativo, sustentando que a lei impediria o “partido global da guerra” ocidental de interferir na política da Geórgia.
Ivanishvili tem tido uma relação errática com a UE e com a Rússia. Quando a sua força política chegou ao poder, em 2012, incentivou a candidatura da Geórgia à UE, mas, há dois anos, o Parlamento Europeu (PE) propôs medidas contra Ivanishvili, por ajudar o Kremlin a evitar as sanções da UE.
A Geórgia é um país candidato à adesão à UE, mas Tbilisi não aderiu às sanções do bloco contra Moscovo. A antiga República Soviética, do Sul do Cáucaso, tem tido existência geopolítica precária desde a independência, em 1991. Foi derrotada na guerra com a Rússia, em 2008, e o para-Estado da Abcásia, apoiado pelo Kremlin, ocupa cerca de 20% do seu território. Desde então, os seus governos tiveram de encontrar um equilíbrio entre Moscovo e o Ocidente. Irakli Kobakhidze, da Georgian Dream, representante de Ivanishvili, é o atual primeiro-ministro.
Para os manifestantes, que se opõem à “lei russa”, ambos os líderes políticos são pró-russos e trabalham em prol do Kremlin. A presidente Salomé Zourabishvili, antiga diplomata francesa de origem georgiana, é contra a lei, mas o seu veto será ineficaz, se o projeto obtiver a aprovação de 76 deputados, o que permitirá ao parlamento anulá-lo. Por outro lado, Zourabishvili transformou-se no garante informal dos compromissos europeus e ocidentais da Geórgia.
A presidente distanciou-se de Ivanishvili e começou a adotar uma política independente, entrando em colisão com o executivo. Com a polarização política interna no ponto mais alto, as eleições gerais de outubro podem tornar-se o ponto de viragem da geopolítica. A oposição é fraca e dividida, e os cidadãos juntam-se, espontaneamente, em comícios de massas pró-UE. As ONG devem tornar-se os garantes da transparência do processo eleitoral.
A nível institucional, Zourabishvili assumiu uma posição crítica mais forte e significativa. No entanto, a partir de dezembro, poderá haver novo presidente. De acordo com uma alteração constitucional, a eleição do presidente passou a ser da competência do parlamento.
Ao comparecerem aos milhares nos protestos em curso, os Georgianos demonstram maciçamente o seu empenhamento na UE, em Tbilisi, e podem ser a força motriz que leve o país a virar-se para Oeste. Todavia, o partido no poder tentará obter o apoio eleitoral necessário nas zonas rurais. Há o risco de a Geórgia perder a sua frágil estabilidade, o que alimentaria mais as tensões entre o Ocidente e a Rússia. Se um governo abertamente pró-ocidental ganhasse as eleições de outubro, constituiria grande revés para o Kremlin, no Sul do Cáucaso. “Esta lei cria uma fratura entre nós e a Europa, enquanto a maior ameaça é que esta lei nos aproxime da Rússia e da ‘bielorrusização’ deste país. Ficaremos aqui o tempo que for necessário”, diz um manifestante.
Vários eleitos foram impedidos de entrar na comissão parlamentar que aprovou o projeto de lei. E a deputada Khatia Dekanoidze, escandalizada por o processo ter terminado ao fim de pouco mais de um minuto, considerou a votação ilegítima, ilegal e inconstitucional.
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Entretanto, a presidente da Comissão Europeia anunciou a intenção de criar um Escudo Europeu da Democracia, para proteger a UE de interferências estrangeiras perigosas, caso consiga um segundo mandato à frente da Comissão. O seu discurso, na Cimeira da Democracia de Copenhaga, a 14 de maio, surge num momento em que o bloco europeu se prepara para uma potencial onda de desinformação, na corrida para as eleições europeias de junho e no meio de receios de que não esteja preparado para enfrentar novas formas de guerra híbrida.
Ursula von der Leyen, de 65 anos, falando na qualidade de candidata principal do Partido Popular Europeu (PPE), afirmou-se preocupada com o aumento da desinformação e da interferência estrangeira e alertou para o ataque aos “princípios fundamentais da nossa democracia”.
O Escudo Europeu terá por missão detetar e eliminar a desinformação em linha – com base no trabalho do regulamento digital da UE, Lei dos Serviços Digitais (DSA) – e inocular o bloco contra influências perigosas, permitindo que os Europeus reconheçam as ameaças.
A eurodeputada do PPE referiu-se à proliferação de notícias falsas e de deep-fakes gerados por inteligência artificial (IA), bem como aos relatos de que governos estrangeiros estão a comprar influência e a causar o caos” nos parlamentos europeus.
O bloco está a preparar sanções contra quatro entidades pró-Kremlin suspeitas de difundir propaganda no bloco, como parte do seu 14.º pacote de sanções contra a Rússia. A Voz da Europa é a entidade mediática sancionada pelas autoridades checas, no final de março, depois de ter sido apanhada com uma operação de propaganda russa com acesso regular aos eurodeputados com assento no PE, predominantemente do grupo de extrema-direita Identidade e Democracia (ID) ou de membros não inscritos.
Von der Leyen manifestou preocupação com a série de ciberataques perpetrados contra países europeus, nas últimas semanas. Só nos primeiros dias de maio, Berlim revelou que as contas de correio eletrónico do chanceler Olaf Scholz foram comprometidas por piratas informáticos russos, em 2023, e o PE alertou para uma violação de dados de candidatos a emprego.
Há relatos de que a Rússia está a perturbar os sistemas de navegação por satélite, necessários para os voos civis na Europa, o que é conhecido como “GPS jamming”. A Rússia tem sido a principal transportadora aérea da Finlândia, obrigando a Finnair a suspender os voos para a cidade estónia de Tartu durante um mês, devido a interrupção persistente do GPS. E o site de campanha de Ursula von der Leyen foi alvo de ataque orquestrado por bots, a 7 de maio. Estes ataques coordenados fazem parte de um plano alargado para enfraquecer a “resiliência” da UE e o seu empenho em apoiar a Ucrânia.
O Escudo Europeu foi também concebido para colmatar uma lacuna nas capacidades da Europa para enfrentar novas formas de guerra híbrida, incluindo campanhas de desinformação. Enquanto a França e a Suécia têm agências nacionais para monitorizar e proteger contra a interferência estrangeira, a UE é tida como impreparada para lidar com campanhas de desinformação destinadas a promover a divisão e a alimentar o sentimento antieuropeu.
O braço diplomático do bloco, o Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE) tem por objetivo liderar os esforços da UE para combater a manipulação e a interferência de informações estrangeiras, visando as campanhas de propaganda russas. Porém, os esforços do SEAE destinam-se, principalmente, a identificar essas campanhas e não propõem medidas para combater e desmantelar as operações, para lá de mera “caixa de ferramentas” para os estados-membros.
Por isso, a próxima iniciativa da Comissão Europeia irá basear-se no trabalho realizado no âmbito da DSA, para obrigar as plataformas a eliminar as notícias falsas e a proporcionar mais transparência na publicidade política.
Apesar dos esforços da nova lei europeia sobre a IA, o bloco precisa de reforçar a sua abordagem para combater as deep-fakes, usadas para fabricar conteúdos áudio e vídeo de figuras políticas.
A lei sobre agentes de influência estrangeira é prejudicial à liberdade de expressão e levou milhares de pessoas às ruas. E a Comissão Europeia condenou o governo de Tbilisi, por usar força desproporcionada contra políticos e jornalistas da oposição. “Afinal, a Geórgia é um país candidato, pelo que esperamos – e apelamos às autoridades – que voltem ao caminho europeu e cumpram todos os compromissos que assumiram, voluntariamente, quando solicitaram o estatuto de candidato para o seu país”, disse Peter Stano, porta-voz da Comissão Europeia.
Com efeito, a posição do executivo georgiano corre o risco de afastar o país da adesão à UE. Pelo menos 12 estados-membros pediram ao executivo europeu que esclarecesse se a lei levará à potencial suspensão das negociações de adesão.
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As cenas em Tbilisi ecoam as da Ucrânia, em 2014, quando o país estava pronto para seguir numa direção pró-UE. A Geórgia recebeu o estatuto de país candidato, em novembro de 2023, com cenas de júbilo nas ruas, apesar de o governo ser próximo do regime de Moscovo.
Apesar dos inúmeros protestos nas ruas, a Comissão dos Assuntos Jurídicos do parlamento da Geórgia aprovou, em terceira leitura, o projeto de lei que obriga os meios de comunicação social e as organizações não comerciais a registarem-se, sob pena de pesadas multas, como estando sob influência estrangeira, se receberem mais de 20% do seu financiamento do estrangeiro.
Como observou o presidente da comissão, Anri Okhanashvili, por se tratar da terceira leitura, os deputados não tinham questões, comentários ou opiniões sobre o projeto de lei, tendo-se limitado a aprová-lo. Assim, a sessão terminou cerca de dois minutos depois de ter começado. O passo subsequente foi a aprovação em plenário, a 14 de maio, por 84 votos a favor e 30 contra.
Os protestos recrudescem. Os EUA ameaçam cortar financiamentos à Geórgia. O conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, escrevera, nas redes sociais, que os Norte-americanos estão ‘alarmados’ com os últimos desenvolvimentos na Geórgia.
A presidente da Comissão Europeia, fazendo um alerta a propósito das manifestações, declarou, a 1 de maio, em comunicado, acompanhar a situação “com grande preocupação” e condenou a violência nas ruas de Tbilisi. A 15 de maio, o alto representante da diplomacia da UE, Josep Borrell, em declaração conjunta com a Comissão Europeia, afirmou que a legislação é contrária às ambições de adesão da Geórgia à UE e que deve ser eliminada na totalidade. A presidente da Geórgia prometeu vetar a lei, se esta fosse aprovada, mas o parlamento pode anular o veto, reunindo 76 votos.
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Nem sempre os candidatos à adesão à UE têm postura correta, mas alguns dos estados-membros não a têm. Sinal dos tempos: as democracias não estão consolidadas e os seus inimigos espreitam!
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16/05/2024