Manual do bom protesto

 Manual do bom protesto

“Tudo Sobre a Minha Mãe”, peça de teatro inspirada no filme de Pedro Almodóvar, que recria a ideia de família e de estrutura familiar a partir de uma rede de afetos e de verdade. (Créditos fotográficos: Estelle Valente – expresso.pt/revista)

  1. Não interrompa peças de teatro. É muito aborrecido para quem está a assistir ou para quem está no palco. Interromper uma peça de teatro, só porque se tem algo para dizer – ainda por cima sobre temas tão chatos como a representatividade, a justiça social e a exclusão sistémica de uma comunidade –, é uma maçada.
  2. Não interrompa peças de teatro para denunciar temas que já estão a ser retratados no palco. Por exemplo, é inaceitável interromper uma peça de teatro para se falar da comunidade transgénero, quando a peça já tem duas personagens transgénero, uma das quais – pasme-se! – é interpretada por uma atriz trans. Há que ser grato por tanta generosidade.
  3. Não exija quotas de representação. As quotas têm um efeito perverso, sobretudo em peças, filmes ou séries de carácter histórico.
  4. Ao mesmo tempo, também não exija que personagens “trans”, por exemplo, sejam interpretadas por pessoas “trans”, porque toda a gente sabe que a arte de representar está nessa magia de fazer de conta e de ser-se o que não se é.
  5. Se ficou confuso com os dois pontos anteriores, leia-os de novo.
  6. Não reivindique, porque as pessoas que discordam da sua reivindicação têm medo de se expressar publicamente sobre a sua discordância. No caso específico do transfake, temos assistido a várias intervenções públicas que indicam precisamente o contrário, mas, ainda assim, não arrisque.
  7. Não proteste, porque os protestos só desencadeiam mais anticorpos sobre a causa que defende e, assim, vê a sua luta inviabilizada. Toda a gente sabe que as lutas, sobretudo as “trans”, para vencerem, têm de ser silenciosas, mansas e confortáveis.
  8. Não deve haver limites para o humor, mas sim para o protesto. No espaço mediático, já existem pessoas que têm toda a legitimidade, gentileza e inteligência para falarem sobre os temas que importam à sociedade. Eles sabem tudo, sem necessidade de auscultar ninguém.
“Tudo sobre a minha mãe”, com texto de Samuel Adamson, centra- se na vida de Manuela – uma enfermeira, mãe solteira, que assiste à morte do filho no dia em que completaria 17 anos. (Créditos fotográficos: Frederico Martins / Portuguese Soul – teatromunicipaldoporto.pt)

Este manual foi escrito enquanto assistia às intervenções de comentadores renomados do espaço público português, capazes de fazer piadas fáceis sobre pessoas “trans”, de nomear os seus corpos de fake, como contra-argumento ao movimento transfake, continuando a perpetuar o apagamento destas pessoas com comentários que as desumanizam.

Além de toda a violência física e verbal de que têm sido alvo, ao longo de tantos anos, a mais recente surge na sequência de uma ação de protesto que sucedeu durante a atuação da peça de teatro Tudo sobre a minha mãe e que, no fundo, diz tudo sobre nós.

………………….

Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

02/02/2023

Siga-nos:
fb-share-icon

Inês Antunes

Nota biográfica em nome próprio: Nasci em 1990, tenho sardas e passei grande parte da minha adolescência a ler Saramago e a ouvir Pink Floyd. Estudei Jornalismo, Comunicação e Marketing Digital. Nunca quis ter apenas uma profissão, mas sempre soube que queria escrever. E tirar fotografias. E ter uma banda.

Outros artigos

Share
Instagram