“Marcelo”
Acabaram os dias tranquilos na ruela, que fica nas traseiras da casa onde moro. Por culpa de um magricela que ali passa os dias.
A ruela não tem saída e a sua função é só uma: garantir o acesso dos carros dos moradores às garagens das suas residências.
Além de magricela, o artista também é atrevido. Olha-nos de frente e, zás, debita uns disparates que nos fazem sorrir. Como todos aqueles que falam pelos cotovelos.
A cena acontece sempre que um dos cinco moradores chega à ruela. Independentemente da hora. Seja dia, seja noite. O pequenote sai-nos ao caminho. Ora com ar de sabichão, ora com ar de caso.
O magricela apareceu na ruela há pouco mais de oito dias. Foi a vizinha dona Fátima quem primeiro o topou. A senhora, que regressava, noite cerrada, de mais uma viagem ao santuário mariano, assustou-se com o intruso. Os seus olhos azuis não deixavam de a mirar. A medo, lá meteu o carro na garagem e subiu as escadas de acesso à sua casa de um só lanço.
Agora, com o passar dos dias, todos nos habituámos à presença do intruso. Tanto que a dona Fátima tomou a iniciativa de o alimentar. “Um erro que vamos pagar caro!”, vociferou um dos vizinhos. Não por ser um unhas-de-fome ou um sujeito sem coração, mas por ainda não estar refeito do desgosto que sofreu quando deixou de ter a companhia de um outro artista, que fez da ruela a sua casa por um largo par de anos – e que, ao invés deste, tinha um ar carregado e pouco dado a festanças.
Tenha a dona Fátima cometido um erro ou não, a verdade é esta: os moradores acham piada ao novo habitante e fizeram um plenário para que cada um sugerisse o nome a atribuir-lhe.
“Passos”, “Moedas”, “Linda” e “Ornelas” foram alguns dos nomes aviltrados. Houve forte discussão e a reunião prolongou-se por várias horas. Até que o senhor Serafim, do alto dos seus oitenta anos, ergueu-se da cadeira e sugeriu com solenidade: – Marcelo.
Olhámos uns para os outros, alguns de nós sorrimos, e o senhor Serafim logo explicou a razão de tal sugestão: – O tipo não pára um minuto quieto. Passa o dia a andar rua acima, rua abaixo. E, mal vê alguém, solta a língua… Caso saibam de um nome mais apropriado, digam-me, se fazem o favor!
Perante tão forte argumento, todos nós acenamos afirmativamente com a cabeça. Por isso, não surpreendeu que a votação de braço no ar aprovasse, unanimemente, o nome sugerido pelo senhor Serafim. Apenas a dona Fátima, católica praticante, fez um reparo: – Só espero que o bispo do Porto não diga que este nosso apego ao Marcelo é típico das sociedades decadentes.
24/10/2022