Maria Antónia Lopes e as histórias que a História olvidou
Nasceu em 1960, no dia de Santo António, no concelho de Mêda e foi graças à efeméride que os pais, católicos devotos, lhe atribuíram o nome de batismo. Na adolescência, devorava compulsivamente os livros de Enid Blyton, encomendados pela tia paterna, que foi também a sua maior inspiração para se tornar historiadora.
O sino da célebre torre setecentista do Paço das Escolas toca as quatro badaladas na histórica cidade dos estudantes. No anfiteatro VI, no terceiro piso da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC), tem início a aula de História das Mulheres. As quatro estátuas do escultor Salvador Barata Feyo, que convidam à entrada principal no edifício centenário, personificam o que aguarda os alunos: a Eloquência, a Filosofia, a História e a Poesia. Estas são, por analogia, as moléculas do ADN (ácido desoxirribonucleico) de Maria Antónia Lopes. Todas as sextas-feiras, duas turmas são agraciadas com a sua vocação.
Desceram um andar e percorreram um longo corredor em “L” até chegar ao anfiteatro. Ao fundo, vários alunos da licenciatura em História ocupam um antigo banco de madeira. Andreia Dias, natural do Funchal, fala do que a motivou a inscrever-se na disciplina e o que mais a cativa nestas aulas: “A temática interessou-me. Acabamos por ter outra perspetiva de como a sociedade via as mulheres ao longo da História. A forma como a professora Maria Antónia explica os acontecimentos conquistou-me.”
Filha de uma professora do ensino primário e de um produtor agrícola do setor vitivinícola, Maria Antónia Lopes é natural da pequena vila de Longroiva, no concelho de Mêda, no distrito da Guarda. Soube desde sempre que queria ser historiadora, tendo como sua maior referência a tia paterna Maria da Encarnação Lopes – licenciada em História e professora no liceu. “Foi como uma segunda mãe. Gostava muito de crianças, era muito divertida e criativa. Era ela quem encomendava caixas cheias de livros para mim. Eu chegava a ler três num dia. Sou uma ávida leitora, desde que aprendi a ler. Sou omnívora nas leituras, não leio só História, leio de tudo, desde teologia a policiais”, declara.
Concluiu a instrução primária na Escola Feminina de Mêda e o Curso Geral do Liceu no Externato de Santo António de Mêda, ultimado com o Curso Complementar do Liceu, na Guarda. Aos 17 anos, mudou-se para Coimbra, para frequentar o Ano Propedêutico à Universidade (antigo ano de preparação para o ensino superior). No ano seguinte, ingressou na licenciatura em História na FLUC. Algumas colegas de escola tratavam-na por “você”, pela questão da “diferença social”. Quando voltou a casa de férias, no primeiro ano da faculdade, nunca mais tratou por “tu” alguém que não a tratasse também.
Consciente dos privilégios que a rodeavam, reconhece que cresceu do “lado da sorte, dos que não tinham de trabalhar a terra com as mãos para sobreviver”. Ainda assim, a mais velha de três irmãos, cresceu “a ouvir que não podia fazer uma série de coisas que o do meio, 13 meses mais novo, fazia”. E isso revoltava-a. Entre gargalhadas, conta que o “pai dizia que era uma maria-rapaz, que haveria de morrer de uma morte macaca”.
Tanto na vila natal, como na Espinhosa, aldeia viseense de origem da mãe, onde passava os verões, “as casas das amigas mais pobres eram em pedra, não rebocada, entrava o frio pelo meio das pedras”. “O chão era em terra batida. Havia fumo por toda a casa, devido à lareira e à ausência de chaminé. Quando se entrava, quase se sufocava. Coabitavam com o porco, com o burro e com as galinhas. Existia um espaço que era simultaneamente entrada, sala e cozinha. Depois tinham os tabiques, onde se formavam dois compartimentos, tudo interior, sem janelas”, explicita Maria Antónia Lopes. Um era o quarto dos pais, o outro dos filhos. Quando chegavam a certa idade, os rapazes iam dormir com o burro ou com o porco, iam dormir na palha. Perceber que as suas circunstâncias não eram as de todos ditaria o seu percurso profissional e os temas que hoje investiga.
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A historiografia dos Annales e o estudo da pobreza
Foi na licenciatura que Maria Antónia conheceu os historiadores franceses Lucien Febvre e Marc Bloch, fundadores da Escola dos Annales, em 1929. A corrente que a despertou para o estudo dos pobres, da cultura e da sociologia, e não somente da política, das guerras, dos reis e das elites. Bloch, filho de pais judeus, acabaria por morrer torturado nas mãos da Gestapo, em 1944, mas deixaria marcas indeléveis no modo como se constrói o conhecimento historiográfico.
O pensamento dos Annales, bem como a sua experiência de vida seriam preponderantes quando decidiu avançar com o tema “Pobreza, assistência e controlo social em Coimbra (1750-1850)” para tese de doutoramento em História Moderna e Contemporânea.
A propósito do seu trabalho, o professor catedrático António de Oliveira – orientador das teses de mestrado em História Moderna e de doutoramento – escreveu que “a autora conviveu com a dor e a doença, a desgraça, a prisão, o abandono, a esperança de um subsídio de casamento e o conforto de uma sopa, de uma peça de roupa ou de uma outra ajuda”, adiantando: “Percorreu a cidade rua a rua, casa a casa, em busca de pobres, de certos pobres. Penetrou nas prisões, nos hospitais, nos recolhimentos de mulheres, nas rodas dos enjeitados, nas casas dos muitos pobres envergonhados. Doeu-se, de um modo muito especial, das mulheres.”
Fez parte da Juventude Socialista durante toda a licenciatura. “Fui muito ativa politicamente. Mas logo percebi que a vida política não era para mim. Conheci muita gente que encarava a política como meio de fazer carreira”, refere. Contudo, assume: “Saber História fez de mim uma pessoa de Esquerda.”
A investigadora defende que “o neoliberalismo económico só fará com que ricos se tornem mais ricos e os pobres mais pobres”. No seu entender, “acreditar que os mercados se autorregulam não faz sentido. Isso implicaria que todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades. Como é óbvio sabemos que não é assim. Ou porque vão herdar bens, ou porque terão melhores oportunidades de formação, académicas”. Choca-a ouvir, de certos políticos, os mesmos argumentos que lia documentados entre os séculos XVI e XIX: “Querem receber o rendimento mínimo porque não querem trabalhar. Isto era, exatamente, o que se dizia há 400 ou há 500 anos.”
A amiga Ana Teresa Peixinho – subdiretora da FLUC, professora de Jornalismo e Comunicação e investigadora do CEIS20 (Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX) – destaca que Maria Antónia prima pela “frontalidade, coragem, ética irrepreensível, coerência com os seus princípios e por querer um mundo mais solidário e justo, socialmente mais justo”.
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Personagens esquecidas da História
Durante a aula, Maria Antónia partilha alguns dados do seu mais recente estudo, no qual procurou perceber qual o papel das mulheres na economia e no trabalho em Coimbra, entre o século XVI e princípio do século XIX. Encontrou documentadas mais de 90 profissões de mulheres, entre lavadeiras, cerzideiras, artesãs, tintureiras, algebristas, parteiras, tecedeiras, rodeiras, amas de leite e bordadeiras. Salientou, por exemplo, a existência na toponímia coimbrã das ruas das Padeiras e das Azeiteiras como manifesta evidência de que a marca de género no vocábulo demonstrava a predominância feminina nestas profissões.
Comprovou que havia mulheres inseridas no seio das profissões credenciadas, nas corporações que exigiam diploma. Deparou-se, inclusive, com o registo da carta de juiz examinador dos tintureiros atribuída a uma mulher, Bernarda de Vargas, emitida a 28 de janeiro de 1620, no município de Coimbra.
Discordando do que escreveu a historiadora Michelle Perrot – quando afirmou que “as mulheres sempre trabalharam”, mas “nem sempre exerceram profissões” –, a professora de Coimbra é perentória com a turma: “Só se tem profissão quando se tem um diploma? Então, quer dizer que os homens também não tinham. Um camponês não era camponês, não era agricultor… Não é verdade, claro que era agricultor, e elas também eram.”
Entre as dezenas de investigações que conduziu no Centro de História da Sociedade e da Cultura (CHSC), estudou as mulheres nas Misericórdias, concluindo que “a maioria dos estabelecimentos de assistência não funcionava sem o trabalho feminino e, por isso, desde a sua origem, a ação das Misericórdias não teria sido possível sem as mulheres”. Interpelou os leitores a refletir como “conseguiriam essas instituições manter hospitais sem enfermeiras, cristaleiras, cozinheiras, padeiras, roupeiras, lavadeiras, serventes? Assistir aos presos sem as trabalhadoras que asseguravam a cozedura do pão, a confeção dos alimentos, a lavagem das roupas? Acolher jovens e adultas em recolhimentos sem regentes, porteiras e criadas?”
João Santos, natural de Arouca e padrinho de curso de Andreia, ao contrário da colega, confessou que, apesar de a escolha da disciplina ter sido aleatória, ficou positivamente admirado com os temas e com a docente: “A doutora Maria Antónia cativou-me pela arte que tem em ensinar, porque o faz de uma maneira bastante eficaz, e pela proximidade que cultiva connosco. O próprio conteúdo surpreendeu-me. Falarmos sobre as mulheres presentes em várias instituições era algo de que eu não estava à espera. Tenho aprendido muito. Foi talvez a disciplina que mais me surpreendeu.”
“Na Época Moderna, tal como na Idade Média, o que é que faziam as mulheres?”, questiona. As palavras da investigadora ecoam o que, obstinadamente, repete desde o arranque do semestre: “Dizer que as mulheres eram domésticas é um disparate. Acham que, no século XVII, havia grandes lides a fazer-se? Quando raramente se tomava banho, a casa era limpa uma vez por ano, o povo não usava lençóis? À exceção das classes privilegiadas – uma escassa minoria das sociedades europeias pré-industriais –, elas produziam, transformavam, comercializavam e prestavam serviços. O grosso da população feminina europeia era constituído por agricultoras e criadoras de gado. Nas cidades, eram vendedoras, de mercados e de rua. No comércio a retalho, predominavam as mulheres.”
A académica Maria Antónia Lopes sublinha que “os manuais escolares do secundário continuam a ensinar que durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX as mulheres eram domésticas, ignorando os inúmeros estudos que comprovam que estas sempre trabalharam”. “O Ministério da Educação tem o dever de corrigir os manuais de História de acordo com a investigação científica atualizada”, observa, desabafando que os alunos ainda “chegam ao ensino superior convencidos de que as mulheres começaram a trabalhar com a Revolução Industrial ou na Primeira Guerra Mundial”.
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Fontes históricas como “máquinas do tempo” e o fascínio pela História
“Mas de onde vêm esses erros?”, interroga. Maria Antónia explica à turma que, frequentemente, se comete o “vício, tremendo, de se estudar um determinado setor social, neste caso, a burguesia, e depois generalizar, quando, em toda a Europa, o povo representava entre 80 a 90 % da população”.
Ana Isabel Silva, investigadora colaboradora do CEIS20 e professora auxiliar na FLUC, corrobora: “Muitas vezes, nesta área, assiste-se a generalizações. À extração de conclusões sem se ter uma base documental concreta.” Foi aluna de Maria Antónia, há 20 anos, no terceiro ano da licenciatura, na disciplina de História da Época Moderna, e participou em vários dos seus projetos ao longo do tempo. “Aquilo que eu mais prezo na doutora é a ligação aos arquivos, o rigor, a clareza, a valorização das fontes”, indica.
Ana Isabel leciona, atualmente, a disciplina de História dos Poderes Locais, anteriormente da responsabilidade da professora Maria Antónia. Faz também parte do projeto “História da Misericórdia de Coimbra”, coordenado pela investigadora. Afirma que faz “questão de, para cada tema, levar sempre documentos exemplificativos – nomeadamente, das competências municipais – para mostrar aos alunos”. Faz reprodução de documentos e explora-os, dando-lhes a conhecer o que existe nos arquivos: “Para que eles percebam como o conhecimento é construído. Porque isso é ser historiador. Uma coisa é ser professor de História, outra é ser historiador, ser investigador. E essa consciência foi-me transmitida por ela.”
Teresa Peixinho atesta que a paixão com que Maria Antónia aborda os temas que estuda é fascinante: “Sempre que falo com ela estou a aprender e é um privilégio. É um privilégio poder passear pelas ruas de uma cidade com ela, porque nos conta histórias que não percebemos de outra maneira, se não ouvirmos de alguém que é altamente especializado e que fala com paixão daquilo que estuda. Acho isto absolutamente admirável. Sobretudo, em alguém que já tem uma carreira tão longa. Fala com a paixão de uma jovem investigadora que está a acabar de descobrir um objeto novo. Admiro-a profundamente.”
Viajam juntas frequentemente para a Itália, no âmbito do Programa Erasmus. Teresa Peixinho recorda a primeira vez que visitaram a Villa Borghese: “Adorei ir com ela. A explicação das esculturas, dos quadros… Ela possui o know-how histórico e também uma cultura geral invejável e, portanto, fez-me ver aquela cidade com outros olhos. É maravilhoso andar pelas ruas de Roma com a Maria Antónia.”
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O feminismo e a sororidade
Na sua tese de mestrado, intitulada “Mulheres, espaço e sociabilidade”, convertida em livro em 1989, a investigadora debruçou-se sobre a transformação dos papéis femininos em Portugal, na segunda metade do século XVIII, pelo olhar da literatura da época.
“Quando apresentei o tema do mestrado sabia que ele aceitaria. Na época, mais nenhum teria aceitado. O professor António de Oliveira era um homem inovador, sempre atualizado”, recorda Maria Antónia Lopes. O aludido universitário faleceu a um de janeiro de 2021, aos 82 anos, e “estava a par de publicações – em Francês, em Inglês e em Castelhano – do último ano”. Acerca do seu percurso académico e profissional, brinca que, “se fosse vivo, o doutor Oliveira diria: Fiz uma boa aposta!”. Porém, Maria Antónia aponta que chegou a ouvir um “comentário pejorativo de uma professora catedrática de renome”, desmerecendo o valor da sua obra: “Agora, todos querem falar desses temazinhos sem importância!”
Ana Isabel confidenciou que a autora – enquanto sua orientadora de doutoramento – sempre a incentivou e, simultaneamente, foi muito compreensiva: “Quando eu já estava com dificuldade em gerir as coisas, ela relembrava-me, regularmente, que eu tinha valor, de que era capaz. E isso foi determinante. Foi fundamental para conseguir concluir aquele processo. São estes momentos que nos marcam. Porque somos ambas mulheres, sabemos o que é ter bebés e da importância que atribuímos ao trabalho como fonte de realização pessoal. Ela conseguiu transmitir-me alguma paz na tomada das decisões difíceis.”
Tal como escreveu, em 2019, num capítulo do livro “Primeiros textos sobre igualdade e dignidade humanas”: “[…] ser feminista é perfilhar uma mundividência em que a personalidade e o valor de alguém são apreciados independentemente do seu sexo, sendo reconhecido a todas e [a] todos o direito à autodeterminação, o que impossibilita conceber, praticar e aceitar comportamentos e papéis sociais, públicos e privados, determinados pelo sexo a que se pertence (essencialismo vocacional).”
Desde sempre Maria Antónia Lopes se considerou feminista. “Não podíamos era dizê-lo, senão mandavam-nos queimar sutiãs, ou coisa que o valha…”, conta, entre risos. Garante que “a ideologia de género é o que a extrema-direita preconiza, ao afirmar que existem papéis destinados exclusivamente a homens e outros a mulheres”.
No próximo ano, irá usufruir de uma licença sabática. “Tenho dispensa das aulas, vou dedicar-me à investigação”, revela. Evidencia que não é difícil escrever sobre reis e rainhas. Almeja, sim, “escrever a biografia de uma camponesa, de uma pastora”. No entanto, “faltam documentos”. Não há escritos suficientes daquelas que eram remetidas ao anonimato e ao silêncio. Entretanto, vai continuar a “andar perdida nas fontes”, sem nunca perder a esperança.
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14/08/2023