Maria Eugénia Cunhal
Reencontro-me com o “abraço grande, próximo e amigo” de Maria Eugénia Cunhal1 (1927-2015). E relembro a mulher delicada, discreta, fraterna e o exemplo de verticalidade e firmeza de carácter que nos legou.
Releio as suas crónicas reunidas em “Escrita de Esferográfica” (edição da Voz do Operário, em 2008) e regresso a 2007. À “Festa do Avante!” e ao auditório da “Festa do Livro”, onde José Viale Moutinho apresentou o livro “Escorpião e Félix” – novela humorística seguida da célebre carta ao pai de 10 de Novembro de 1837”(publicação da Arca das Letras, em 2007), que editei e que permanece até hoje como a única versão portuguesa daquela obra quase clandestina de Karl Marx.
Frente a um auditório repleto de um público surpreso perante “um Marx praticamente desconhecido”, Viale Moutinho revelou como esbarrou com “Escorpião e Félix”, durante a sua visita à casa onde nasceu o Mouro – “alcunha pela qual Marx era tratado em casa e pelos amigos íntimos, devido à farta cabeleira negra” –, na cidadezinha de Trier, na Renânia alemã.
Maria Eugénia Cunhal chegou poucos minutos depois do início da sessão, acompanhada por uma amiga. Sentou-se, discretamente, numa das últimas filas de cadeiras do auditório. Finda a sessão, e quando o José Viale Moutinho e eu abandonávamos o local, a irmã mais nova do líder histórico do Partido Comunista Português (PCP) saudou-nos fraternalmente, como era seu timbre.
O nosso encontro, aprazado no dia anterior, tinha um objectivo: oferecer a Maria Eugénia um exemplar de “Adriano, sempre”, que apresentaríamos na tarde do dia seguinte, e no qual participou com o poema “Cantar de Amigo”, que Adriano musicou, mas que nunca foi editado.
Foi a última vez que vi Maria Eugénia Cunhal, embora, amiúde, falássemos ao telefone. Numa dessas vezes, sugeri-lhe que escrevesse as suas memórias dos anos de chumbo, da prisão aos 18 anos e dos constantes interrogatórios a que era sujeita pela PIDE/DGS (Polícia Internacional e de Defesa do Estado / (Direção-Geral de Segurança) por ser irmã de Álvaro Cunhal e militante do PCP. Recusou. E respondeu-me, assim: “Sabes, amigo, há militantes do Partido que lutaram e sofreram muito mais do que eu. Eles, sim, é que podem dizer como foi resistir e lutar contra o fascismo.”
Em Outubro de 2008, a Voz do Operário editou “Escrita de Esferográfica” e, poucos dias depois, tinha na minha caixa do correio um exemplar com a dedicatória que encima esta crónica. Telefonei-lhe a agradecer o exemplar e as palavras que me dedicou. Falámos durante largos minutos e prometi-lhe visitá-la em sua casa. Promessa que, por uma razão ou outra, nunca cumpri. E da qual bem me arrependo.
Maria Eugénia Cunhal partiu a 10 de Dezembro de 2015. Relembro-a, hoje, com saudade. E como acto de gratidão para com quem sempre foi aliada da gente comum, que tão bem retrata nos seus poemas e textos. O seu número de telefone continua a figurar na lista de amigos do meu telemóvel.
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Nota:
1 – A irmã mais nova de Álvaro Cunhal foi professora de Inglês, jornalista, escritora, pintora, poeta e tradutora. A ela se deve a primeira tradução para Português de “Os Tzibukine”, contos de Tchekov.
“Silêncio de Vidro” (1962), “História de Um Condenado à Morte” (1983), “As Mãos e o Gesto” (2000), “Relva Para Cláudio” (2003) e “Escrita de Esferográfica” (2008) sãos os títulos das obras que escreveu. Entre 1947 e 1951, sob o pseudónimo de “Maria André”, publicou vários poemas na revista Vértice.
Os poemas, contos e crónicas de Maria Eugénia Cunhal dão-nos a conhecer a sua maneira de olhar o Mundo: solidária, comovida, terna. Neles – nos poemas, contos e crónicas –, os personagens são gente comum. Gente como nós. Neles, não há lugar para “os filhos da mãe”.
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04/01/2024