Mário Ruivo: o cientista visionário que nos devolveu o oceano
Vi, numa nota de imprensa, que foi aberto, a 23 de novembro de 2022, em homenagem ao oceanógrafo Mário Ruivo, um concurso para jovens cientistas, que visa escolher o projeto de um investigador em início de carreira a apresentar em Paris. E isso aguçou-me a curiosidade.
Mário Ruivo (1927-2017) ficou-me na retina como ministro dos Negócios Estrangeiros do V Governo Provisório. Agora, que está na agenda a temática dos oceanos, devido ao aquecimento global, que levará à subida do nível das águas, e à esperança que se deposita neles como ótimos sumidoiros de carbono e como bons espaços para obviar à produção alimentar da população em crescendo extraordinário, a nível mundial (o tema foi abordo na COP27), o nome do biólogo, oceanógrafo e político do oceano emergiu na Conferência dos Oceanos, de Lisboa, de 27 de junho a 1 de julho de 2022, por iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU). E Maria Eduarda Gonçalves, viúva do cientista e professora do Instituto Universitário de Lisboa (IUL), diz que esta pessoa muito ativa, à frente do seu tempo, mostrou a centralidade do oceano.
A 14 de novembro de 1994, Lisboa fez, no Centro Cultural de Belém, a conferência internacional do oceano, cujo impulsionador foi Mário Ruivo, sob a alçada da Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). E ali se encontraram o, então, Presidente das República, Mário Soares, e Mário Ruivo, que, àquela data, iniciaram uma faceta pública conjunta de defesa do oceano.
Se há facetas da vida de Mário Ruivo conhecidas do público e que se topam em textos – sobretudo, em defesa do oceano –, outras ficaram reservadas a certos círculos, como os da luta contra a ditadura. Andava vestido de verde seco, para acertar as cores: “Continuo verde, não cresço”, dizia.
A sugestão de Lisboa à ONU para local da nova reunião foi conduzida pelo anterior ministro do Mar, Ricardo Serrão Santos, mas havia antecedentes: realizou-se a Expo-98, foi sediada a Comissão Mundial Independente dos Oceanos (CMIO) na Fundação Mário Soares e Maria Barroso, foi aprovado 1998 como o Ano Internacional dos Oceanos, sob proposta de Portugal na ONU, por ação de Mário Ruivo, e a CMIO contribui para a centralidade de Portugal no oceano.
Aos 17 anos, Mário Ruivo vem para Lisboa, para a Faculdade de Ciências – desperto para a biologia – e, preso, com 20 anos, no Aljube, encontra Mário Soares. Participava no Movimento de Unidade Democrática (MUD). Conhecera Soares no MUD Juvenil, de que era dirigente, e ficou registado como potencialmente perigoso na Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), que não dava informação favorável para fazer carreira académica. Com efeito, trazia do Alentejo, onde nasceu, a consciência social e política. A sociedade era paupérrima e o ativista falava de marchas de mulheres com fome. Cedo se sensibilizou para os problemas sociais e para a evolução do regime. Terminada a licenciatura em Biologia, em 1950, ruma ao Sul de França para se especializar em oceanografia biológica e em gestão de recursos vivos marinhos, no ambiente laboratorial da Universidade de Sorbonne, em Banyuls-sur-mer, perto da fronteira com a Espanha. Ali está de 1951 a 1954. E, embora referenciado pela PIDE, regressa ao país, após a especialização, e entra no Instituto de Biologia Marítima (IBM), estrutura da Marinha dirigida por Alfredo Magalhães Ramalho, onde se notabilizou como oceanógrafo e chegou a subdiretor, o que significava alguma tolerância, que não existia na universidade, em relação a oposicionistas e militantes do MUD. A estrutura sabia quem tinha, mas eram-lhe úteis pessoas competentes.
A abordagem científica das questões da pesca (setor meramente económico no Estado Novo) recebe atenção do IBM. E Mário Ruivo dedicou-se a estudos biológicos nas áreas da pesca, da sardinha ao bacalhau. A partir de 1954, ia com os bacalhoeiros à Terra Nova ou à Gronelândia. E, no barco, lia a História da Cultura em Portugal, de António José Saraiva.
Em 1956, no IBM, tornou-se o primeiro português a mergulhar a maior profundidade, a bordo de batíscafo. Envolveu-se com o navio NRP Faial (da Marinha Portuguesa) e com o batíscafo FNRS III (da Marinha Francesa) no canhão submarino de Setúbal e ao largo do cabo da Roca, em colaboração com cientistas franceses. De 8 de agosto a 20 de setembro de 1956, o FNRS III fez seis mergulhos em águas portuguesas, tripulados pelo comandante Georges Houot. Mário Ruivo participou em dois (4 e 13 de setembro), ao largo do cabo da Roca. Num, desceu a 500 metros e, no outro, atingiu 2200 metros de profundidade. No interior do batíscafo de 26 metros de comprimento e mais de três de largura, os dois homens seguiam numa cabina esférica em aço de dois metros de diâmetro. Observavam o fundo do mar por uma janela de 10 centímetros de diâmetro. O FNRS III, lançado à água em 1953, fez, em sete anos, sob a direção de Georges Houot, 93 mergulhos, levando cientistas de França, da Bélgica, dos Estados Unidos da América (EUA), de Portugal e do Japão até ao fundo. Passada uma década, houve mergulhos no batíscafo francês Archimède, na Madeira, em 1966, e nos Açores, em 1969. Tomava-se consciência da importância dos fundos marinhos.
O batíscafo era um instrumento ao serviço dos oceanógrafos mais prometedores. Mas, como Ruivo tinha atividades clandestinas de oposição ao regime, o que o levou ao exílio, avisado de que a prisão estava iminente, pois trabalhou na Seara Nova nos últimos 50 anos: integrava direção e envolvia-se em atividades cívico-políticas.
Vai para Roma em 1961. Como cientista, já tinha relações com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e torna-se funcionário no Departamento de Pescas, onde se mantém até 1974. Visitou Portugal integrado na comitiva do diretor-geral da FAO.
Na casa de Mário Ruivo, em Roma, juntavam-se muitos dos opositores à ditadura. Nos anos 60 e no início de 70, o cientista era o polo da oposição em Itália. Manteve relações com muita gente, incluindo, exilados em Argel. Geria a área das pescas na FAO, no Departamento de Pescas, onde dirigiu a Divisão dos Recursos e Ambiente Aquático, e continuava a atividade política. Até organizou um encontro da Frente Patriótica de Libertação Nacional.
O trabalho na FAO abriu-lhe mais o mundo. Com efeito, boa parte da atividade era a assistência técnica a países em desenvolvimento no domínio das pescas. Sempre foi pessoa muito culta, não só nas pescas, mas também na antropologia e na cultura dos sítios por onde passava.
A par das viagens, toma conhecimento da máquina da ONU. Circula muito enquanto membro da FAO e participa noutras organizações da ONU, em reuniões ou comités. É o caso da nova comissão para os oceanos (de que é um dos fundadores, em 1961), o primeiro organismo a fortalecer a cooperação em ciências marinhas. Como delegado da FAO, em 1972, em Estocolmo, participa na Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, que iniciou a diplomacia ambiental e as conferências da ONU sobre o ambiente e o desenvolvimento sustentável. E, em 1972, promove a organização da 1.ª Conferência sobre Poluição do Meio Marinho.
Na FAO, passa do biólogo que faz ciência, investigando a sardinha ou o bacalhau, para o diplomata do oceano, preocupado com a governação do mar. Esta faceta junta-se à luta pela democracia. Para tal, contribui a rede de contactos que estabeleceu na FAO. Desde cedo, combina a ideia da conservação dos recursos biológicos do mar com o ambiente marinho, no que é pioneiro. Atende à conservação e à excessiva exploração dos recursos vivos da pesca, quando a pesca é vista como mera atividade económica, e zela a qualidade dos ecossistemas. Sensibilidade político-social, cultura, generosidade e modo de ser fazem dele sonhador utópico. Usando a fórmula “utopia útil”, perspetiva uma sociedade melhor, mais equilibrada, mais igual. Tem o ideal da governação do oceano que garanta a conservação dos recursos, bem como a sua exploração e utilização de modo equitativo em prol dos países menos desenvolvidos. Como pragmático, tem visão estratégica integrada, holística. O desenvolvimento sustentável do oceano é “utopia útil”.
Com o 25 de Abril, vem para Portugal e integra os governos provisórios de Vasco Gonçalves, entre julho de 1974 e setembro de 1975. Primeiro, como secretário de Estado das Pescas, organiza a nova Secretaria de Estado das Pescas. No V Governo, é ministro dos Negócios Estrangeiros. Além disso, em 1974, é presidente da delegação portuguesa nas negociações na ONU para o novo regime jurídico do oceano (Lei do Mar da ONU), nomeado por Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros. Porém, estes governos, de curta duração, têm um preço para ele. A sua carreira extraordinária tem pedras no caminho.
Ocupa, entre 1976 e 1977, o cargo de diretor-geral da Investigação e da Proteção dos Recursos do Meio Aquático, no governo de Mota Pinto (1978-1979), mas é demitido e posto na prateleira como inspetor-geral das Pescas, sem funções. E, em março de 1979, é demitido da chefia da delegação portuguesa nas negociações para a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, ou Lei do Mar da ONU.
Por razões políticas, torna a deixar o país e ruma a Paris, para a UNESCO, em cuja esfera se torna o 5.º secretário-executivo da COI de 1980 a 1989. E, deixada a COI como funcionário da UNESCO, é representante de Portugal naquele organismo, onde propõe e logra a conferência de Lisboa de 1994. O trabalho de diplomacia oceânica, que destacou Portugal na governação do oceano, vê-se no testemunho de Patricio Bernal para o livro Desenvolvimento Sustentável do Oceano: Uma Utopia Útil, editado em 2018, pela Universidade do Algarve. Mário Ruivo, como delegado português na COI, propõe, em Paris, que se declare 1998 como o Ano Internacional do Oceano e que se leve a proposta à Assembleia Geral da ONU. E defende a organização da Segunda Conferência Oceanográfica em Lisboa, onde diz que Portugal começa a recuperar algum protagonismo nos oceanos.
A primeira conferência da ONU para o oceano, em Copenhaga, em que se propôs a criação da COI, havia sido há mais de 30 anos (1960). E o escopo da conferência de 1994 era analisar as implicações dos progressos tecnológicos recentes no oceano e o novo paradigma para o desenvolvimento emergente do relatório de Brundtland, O Nosso Futuro Comum (1987), e da conferência do ambiente e desenvolvimento de 1992, no Rio de Janeiro, sintetizada na Agenda 21. Na Segunda Conferência Internacional de Oceanografia, em Lisboa, entra em vigor a Lei do Mar da ONU, assinada em 1982 e ratificada, a seguir, por 60 países.
Segue-se a criação da CMIO, sediada na Fundação Mário Soares, e a Expo-98, no fim da qual é lançado o relatório daquela comissão, impulsionada pela energia e visão de Mário Ruivo.
Já no relatório da CMIO, Oceano, Nosso Futuro (1998), era clara a problemática das alterações climáticas e da relação oceano-clima e percebidos os problemas da sustentabilidade do oceano.
Os arquivos da CMIO, na Fundação Mário Soares, estão a ser organizados para permitir o acesso, tal como aí está parte do espólio que Mário Ruivo doou à fundação (documentação produzida e reunida na sua atividade científica e política). A viúva do oceanógrafo, que entregou livros dele à Universidade do Algarve e documentação à Fundação para a Ciência e a Tecnologia, ligada às atividades do Programa Dinamizador das Ciências e Tecnologias do Mar, guarda documentação que ele trouxe de Roma (da atividade da oposição nos anos 60/70).
O legado do primeiro presidente do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, durante 20 anos, de 1997 a 2007, esteve presente na conferência de Lisboa, de 2022, dedicada ao Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 (ODS 14): “Proteger a vida marinha”.
Miguel Miranda, presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), e o anterior ministro do Mar deram o nome de Mário Ruivo a um navio oceanográfico do IPMA.
.
13/03/2023