Mas, afinal, o que é a blockchain?

 Mas, afinal, o que é a blockchain?

Mika Baumeister (Unsplash)

Recentemente, a propósito do tão badalado tema das fake news, um conhecido comentador político lançou alguma confusão ao tentar explicar o que é e para que serve a tecnologia blockchain. Fica aqui uma tentativa para explicar, em termos simples, em que consiste esta tecnologia tão na moda, a que muitos tentam atribuir propriedades quase milagrosas. Este texto baseia-se em excertos de um livro que publiquei recentemente, em conjunto com Mário Bernardes, intitulado Introdução à Criptografia, editado pela FCA – Editora de Informática, em 2019.

Desenvolvida em 2008, por Satoshi Nakamoto (pseudónimo de uma pessoa ou grupo de pessoas), com o intuito de suportar a famosa criptomoeda Bitcoin, a blockchain é, de facto, de uma aplicação distribuída que recorre a mecanismos criptográficos, entre outros, para implementar livros-razão, ou livros de registo (designados ledgers na literatura anglo-saxónica) de forma distribuída e segura. No entanto, esta tecnologia é aplicável a um largo espetro de áreas aplicacionais, muito para além das criptomoedas, mais especificamente sempre que é necessário manter bases de dados de registo de operações sobre bens ou serviços de valor reconhecido, efetuadas por múltiplas entidades, sem necessidade de confiança mútua, sem recorrer a intermediação de entidades terceiras, e legíveis e/ou pesquisáveis por todos os membros de uma dada comunidade. Em resumo, as blockchains podem ser utilizadas para armazenar registos de transações de bens, registos de contratos, assinaturas e certificados digitais.

Num cenário tradicional – por exemplo, uma entidade financeira, um notário, uma empresa – o registo de operações e transações recorre a uma abordagem centralizada, de acordo com a qual uma dada entidade controla o acesso ao ‘livro de registo’ por parte das entidades com direito a leitura e escrita. Com a tecnologia blockchain, a necessidade de recorrer a uma entidade que desempenhe o papel de controlador de acesso ao livro de registo deixa de existir. Mais, ainda, qualquer registo feito na blockchain, é imutável, o que está na base da sua aceitação global e da capacidade para realização direta de transações entre interessados, sem mediadores.

Ao implementar uma lista distribuída, expansível, protegida criptograficamente e irrevogável, partilhável por um número potencialmente elevado de dispositivos em rede, a tecnologia blockchain tem potencial para mudar radicalmente a forma como muitos negócios são conduzidos e, desta forma, ter impacto em atividades económicas, sociais e políticas.

Os livros de registo implementados com recurso a blockchain são cadeias (chain) lineares de blocos de dados (block), ordenados por ordem cronológica. Cada bloco contém um ou mais registos de transações. A confiança neste registo distribuído é conseguida com recurso a quatro mecanismos, com preponderância para os mecanismos criptográficos:

i) em primeiro lugar, são utilizados mecanismos de chave pública, em particular assinaturas digitais, para garantir a autenticidade do criador de cada transação;

ii) em segundo lugar, as transações que formam o corpo de cada bloco estão protegidas por um código de hash incluído no cabeçalho do bloco, calculado de acordo com o algoritmo Merkle tree;

iii) em terceiro lugar, cada bloco integrado na cadeia linear encontra-se ligado ao bloco anterior por uma função criptográfica, mais especificamente um código de hash criptográfico SHA-256; alterar um bloco sem que tal tenha impacto no respetivo código de hash, ou alterar o código de hash de todos os blocos da cadeia é computacionalmente inviável (ou seja, impossível, na prática), o que faz com que os blocos da cadeia sejam imutáveis;

iv) por fim, um mecanismo de consenso garante que todos os registos da blockchain são consistentes; vários utilizadores mantêm cópias do registo total e, portanto, alterar a blockchain implicaria alterar a maioria das cópias existentes do registo distribuído o que, mais uma vez, é computacionalmente inexequível.

Encadeamento de blocos numa blockchain.

Posto isto, podem as blockchains ser utilizadas para impedir fake news? Ao serem capazes de armazenar informação de forma imutável e não manipulável, as blockchains podem, de facto, ser utilizadas para tal fim e, na realidade, existem projetos experimentais nesse sentido, tal como existem para um elevadíssimo número de outras áreas. No entanto, existirão formas muito mais eficientes para esse controlo, já que esta tecnologia, quando usada em ambientes abertos e públicos, tem um custo computacional muito elevado. Além disso, não é a blockchain, em si, que impedirá as fake news, mas sim uma eventual aplicação que seja construída com base nela. Por fim, terá sempre que existir confiança em quem armazena as notícias no sistema, já que uma notícia falsa armazenada numa blockchain não deixa de ser falsa pelo facto de estar aí armazenada de forma imutável e indelével.

Talvez a solução para as fake news passe por algo muito mais tradicional, ou seja, pela forma com que sempre se lidou com este tipo de notícias: o filtro iniludível e eficaz do tempo. Num mundo em que estamos habituados à notícia instantânea, há que ter a sabedoria para saber esperar, pois o que é certo é que a verdade é como o azeite e vem sempre ao de cima.

14/12/2020

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Fernando Boavida Fernandes

Professor catedrático da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, sendo docente do Departamento de Engenharia Informática. Possui uma experiência de 40 anos no ensino, na investigação e em engenharia, nas áreas de Informática, Redes e Protocolos de Comunicação, Planeamento e Projeto de Redes, Redes Móveis e Redes de Sensores. É membro da Ordem dos Engenheiros. É coautor dos livros “Engenharia de Redes Informáticas”, “Administração de Redes Informáticas”, “TCP/IP – Teoria e prática”, “Redes de Sensores sem Fios” e “Introdução à Criptografia”, publicados pela FCA. É autor dos livros “Gestão de tempo e organização do trabalho” e “Expor ideias”, publicados pela editora PACTOR.

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