Meirim: o revolucionário silenciado pela indústria do futebol

 Meirim: o revolucionário silenciado pela indústria do futebol

(© RTP Arquivos)

Joaquim Meirim (1935-2001) foi o primeiro que designou o futebol profissional com uma indústria. Uma indústria poderosa que hoje movimenta milhares de milhões de euros e que é palco propício para a batota e para os batoteiros. O “Qatar 2022” é disso claro exemplo.

Meirim foi cidadão com leituras e com consciência social e política. O pai, que era minhoto de Monção, depois de ter sido proibido, pelo regime de Oliveira Salazar, de exercer a sua função de professor primário, rumou a Lisboa e instalou-se em Alcântara, onde passou a exercer o ofício de sapateiro.

Alcântara era, então, um bairro pobre e a sua população maioritariamente operária. Joaquim Meirim cresceu ali e cedo ganhou consciência social e política. Frequentou a Escola Comercial Ferreira Borges até aos 16 anos, fez natação no Sport Algés e Dafundo e jogou futebol no Atlético Clube de Portugal. Trabalhou num escritório e cruzou-se, vezes sem conta, com Amália Rodrigues, também ela filha de operário sapateiro, a qual, por essa altura, vendia fruta no Cais da Rocha.

Posteriormente, Joaquim Meirim correu mundo ao serviço da marinha mercante. Viveu em Buenos Aires e em Havana. Ou seja, inventou o seu futuro. Ele sabia do aviso de Natália Correia, no seu belo e genial poema “Do Dever de Deslumbrar”:

Em 1961, pelos primeiros dias da segunda quinzena de Janeiro, o capitão Henrique Galvão e vinte elementos da Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação tomam de assalto o paquete Santa Maria, que zarpara de Lisboa e tinha como destino regular Miami, nos Estados Unidos. Galvão e os seus homens entraram no paquete em Curaçau, nas Antilhas Holandesas e rebaptizaram-no de paquete Santa Liberdade.

António Oliveira Salazar ficou em fúria. Henrique Galvão e os seus insurrectos não lograram atacar Luanda, como pretendiam; mas, até atracarem na cidade brasileira de Recife, onde se entregaram às autoridades locais, deram a saber ao Mundo que, em Portugal, a ditadura dava “[…] um esquife feito de ferro / com embutidos de diamante / para organizar já o enterro / do nosso corpo mais adiante // […] Dão-nos marujos de papelão / com carimbo no passaporte / por isso a nossa dimensão / não é a vida, nem é a morte” (como refere o poema “Queixa das almas jovens censuradas”, da autoria de Natália Correia, que foi musicado por José Mário Branco).

Joaquim Meirim testemunhou o acto heróico de Henrique Galvão e dos seus homens. E soube também que, no final de 1961, a 19 de Dezembro, cinco “pides” mataram, a tiro, o artista plástico José Dias Coelho, na, então, Rua dos Lusíadas, em pleno bairro de Alcântara. Zeca Afonso denunciou o crime e imortalizou o lutador antifascista com a sua canção “A morte saiu à rua”.

Meirim também soube que a fuga colectiva de Peniche, em 3 de Janeiro de 1960, foi a mais importante, audaciosa e bem-sucedida evasão a que se seguiu a fuga colectiva de Caxias, no ano seguinte; e que ambas colocaram o governo ditatorial e a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) à beira de um ataque de nervos.

Joaquim Meirim (1935-2001). (ruascomhistoria.wordpress.com)

É, pois, este homem jovem, mas com “mundo”, que, em 1962, tira o curso de treinador de futebol, na Cruz Quebrada. O curso teve como prelectores Fernando Vaz e José Maria Pedroto.

Pedroto e Joaquim Meirim. (www.record.pt)

Na época de 1967/68, estreia-se na então 1.ª Divisão, ao serviço do Clube União Fabril, conhecido como CUF, do Barreiro. A equipa fabril estava no fundo da tabela, mas o miúdo de Alcântara – que tinha acabado de fazer 35 anos – consegue guindá-la até ao nono lugar.

Sem passado digno de registo como jogador, Joaquim Meirim surpreende pela linguagem que usa e pelos métodos de treino que utiliza. As suas equipas fazem a pré-época no campo e na praia; e o “onze” titular de cada jogo faz exercícios de aquecimento antes do início de cada partida. “Uma loucura, assim, eles vão começar o jogo já cansados”, clamam os “velhos do Restelo”.

1968 foi “O ANO DA QUEDA DE OLIVEIRA SALAZAR”. O ditador já não manda, mas pensa que sim. A farsa dura até 27 de Setembro desse ano, dia em que Marcelo Caetano assume o posto de presidente do Conselho. Começa a televisiva “Conversa em Família” e há quem fale em “Primavera Marcelista”. Puro engano como se viu depois.

Programa de reflexões de Marcelo Caetano, presidente do Conselho, sobre a
política orçamental, económica e educativa do Estado português. (arquivos.rtp.pt)

A Guerra Colonial está no seu ponto mais crítico e o som da metralha não abafa os gritos de dor daqueles que tombam em combate. As prisões fascistas encarceram os que lutam pela Liberdade. E a Censura dos coronéis abate-se violentamente sobre os jornais e os jornalistas, que tentam fintar os homens do lápis azul.

Aos censores nada escapa. E os jornais desportivos – A Bola, Mundo Desportivo, Norte Desportivo e Record – também não se livram de mandar as provas à Censura.

Meirim faz declarações surpreendentes e polémicas. E os jornais aproveitam para atirar “uma pedra no charco” das banalidades.

O puto, filho do professor primário que ganha a vida como sapateiro no bairro de Alcântara, faz as primeiras páginas dos jornais e motiva a curiosidade e a reflexão de alguns dos melhores escritores e jornalistas da praça.

Carlos Pinhão e Mário Ventura-Henriques são alguns deles. Pinhão, após a melhor classificação de sempre do Varzim, onde o guardião Benje assume o papel de estrela maior, escreve um dos mais belos títulos da Imprensa portuguesa: “Varzim rima com Meirim”; e o escritor Mário Ventura-Henriques assina uma crónica, em A Bola, que titula assim: “Meirim entrou na vida de todos nós”.

Benje foi considerado o melhor guarda-redes do Mundo. (www.planetadofutebol.com)

José António Saraiva, que até há pouco dirigiu o semanário Sol e que, durante anos a fio, foi director do semanário Expresso, escreveu no oposicionista Comércio do Funchal, em 5 de Abril de 1970: “Meirim é o homem que de maneira mais fina entendeu a estrutura caótica, anacrónica, incoerente, do futebol.”

Meirim foi também aquele que, antes de qualquer outro, entendeu o futebol profissional como uma indústria. Repito: uma indústria poderosa que hoje movimenta biliões de euros e que é, como sempre foi, palco propício para a batota e para os batoteiros.

José António Saraiva (www.portaldalideranca.pt)

José António Saraiva escreveu, igualmente, no mesmo texto publicado no jornal Comércio do Funchal: “Já o disse: Joaquim Meirim era um homem com leituras e consciência social e política. E foi um homem à frente do seu tempo.

Um homem a cores num país a preto-e-branco, medíocre, temente aos deuses e aos senhores da terra. Meirim tomou partido e como dirigente sindical sempre defendeu os interesses da sua classe.

E pagou caro:

– O presidente do Leixões despediu-o na hora em que foi conhecida a sua candidatura à presidência da Câmara Municipal de Matosinhos em nome da então Frente Eleitoral Povo Unido;

– Como activista sindical ganhou e perdeu batalhas; e foi o alvo principal daqueles que serviam os donos da bola.

Hoje, Joaquim Meirim não tem o seu retrato dependurado numa qualquer galeria de honra e o seu nome é silenciado por muitos dos seus pares. Mas isso não surpreende, pois a história colectiva é uma grande mentira que apenas glorifica os vencedores. Mesmo que os vencedores sejam, como muitas vezes são, seres banais e venais.

Meirim está na história por outras singulares razões.

– Por ser um cidadão e um treinador que soube empunhar a Esperança e a Audácia;

– Por seu o único técnico de futebol a quem atribuíram o seu nome a um clube – Alunos de Meirim;

– Por ser o único homem do futebol a quem Zeca Afonso, um dos melhores de nós, dedicou um poema. Escrito durante a sua prisão no Forte de Caxias.” O aludido poema é este:

24/11/2022

Siga-nos:
fb-share-icon

Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

Outros artigos

Share
Instagram