“Memento mori”
As duas versões ou excertos acima reproduzidos têm, apenas, algumas diferenças de construção poética. No entanto, com vários séculos de distância. A primeira é atribuída ao poeta Miguel Hernández (1910-1942) e a segunda a Francisco de Quevedo (1580-1645) poeta e insigne romancista espanhol.
Todavia, os relatos coincidem. O poema teria sido inspirado quando o poeta (?) encontrou, durante uma caminhada, uma flor que nascia na cavidade de um olho de uma caveira.
No caso de Quevedo, é ainda indicado que os protagonistas do acaso foram o rei Felipe III de Espanha, e o autor Francisco de Quevedo. A primeira versão registada é atribuída ao poeta espanhol Miguel Hernández, mas não assinala qualquer referência adicional. Só a inspiração, ao ver a flor que nascia, tragicamente, nesse cenário.
Transcrevo este poema porque ele traduz, nada melhor em palavras, o conceito de memento mori, expressão latina que significa “lembra-te que és mortal”. Isto é, a advertência da fugacidade da vida, da sua breve existência, que, como num espelho, nos está sempre a recordar a fragilidade da nossa permanência na Terra.
São muitas e variadas as expressões artísticas – sobretudo, na pintura – relacionadas com esta expressão. Assim, encontramos corpos jovens acompanhados de esqueletos ou pinturas de naturezas-mortas (bodegones) da autoria não só de artistas espanhóis, nas quais frutos frescos se misturam com elementos em decomposição. No mesmo quadro, não longe está uma ampulheta ou clepsidra que marca a presença do tempo escorrido e volátil, além da existência de elemento cortantes, como foices e gadanhas, tão próximas da representação antropomórfica e popular da morte.
Entre as muitas representações desta mensagem memento mori, está uma forma dramática que se popularizou no teatro medieval (tendo surgido no século XIV), a chamada Dança da Morte ou Dança Macabra, género dramático de difícil aceitação para algumas pessoas, colocando no cenário personagens que, apesar de ainda vivas, monologam sobre as suas existências passadas e se rendem fatalmente ao destino final.
Recolho também para este artigo algumas notas do espetáculo n.º 107, referente ao ano de 2010, do Teatro da Cornucópia, companhia de referência no panorama nacional português, desfortunadamente extinta. Cessou a sua actividade em Dezembro de 2016, por decisão do seu dirigente Luís Miguel Cintra.
Assim, sobre o espectáculo “Dança da Morte” (“Dança de la Muerte”), Ana Zamora escreveu: “As Danças da Morte são um tema de enorme extensão, e que atravessa vários territórios literários, participando em inúmeras manifestações artísticas que integram o teatro, a música, a dança, o folclore e outros fenómenos artísticos e sociais. Apesar de ainda hoje haver poucas certezas quanto à sua origem e desenvolvimento, pode dizer-se que chegou a invadir todo o fim da Idade Média na Europa, e foi um exemplo de transmissão cultural sem precedentes, saltando de país em país, estabelecendo relações e influências entre artistas, poetas e criadores.”
Seguindo um fragmento (ou excerto) extraído de “El baile: conjuro ante la muerte. Presencia de lo macabro en la Danza y la Fiesta Popular”, da autoria de Francesc Massip e Lenke Kovács (Ciudad Real, CIOFF España, 2004), sobre a dança, enquanto esconjuro da morte, lemos: “A Dança da Morte é uma sequência de texto e imagens presidida pela Morte como personagem central – geralmente representada por um esqueleto, um cadáver ou um corpo vivo em decomposição – e que, numa atitude de dança, dialoga e arrasta[,] um a um[,] uma série de personagens que representam habitualmente as diferentes classes sociais.
O tema da morte, inevitável, que a todos atinge, independentemente da sua condição social, poder, força, conhecimento, sexo, idade ou méritos, é uma ideia amplamente expressa a partir do século XII. No entanto, a Dança Macabra como género literário, coreográfico e dramático, nasce provavelmente em resposta à epidemia que assolou a Europa desde 1347: a peste pneumónica ou bubónica que todos levava, fosse qual fosse o seu estatuto, condição ou idade. Estende-se por toda a Europa, principalmente nas terras com porto, sendo os mares e os rios a via de contágio, morrendo em dois anos um terço da população. Neste contexto de psicose colectiva, num clímax chocante em que a vida está constantemente ameaçada, o tema da Dança Macabra destaca-se. O facto é que a partir de 1380 a iconografia macabra atinge uma dimensão até então nunca alcançada e a arte da morte se transforma profundamente: aparecem a desolação, os vermes, a nudez do cadáver, o aspecto torturado, o apodrecimento da carne, numa complacência mórbida desconhecida à tradição cristã.”
Foi a partir desta ideia e deste género dramático que realizámos uma colagem de textos de vários autores que remetem para a tradição medieval da Dança da Morte. Uma alegoria inspirada em “Diálogos dos Mortos”, de Luciano (de Samósata)1, que retrata a dança entre vivos e mortos, para mostrar como a vida e a morte estão indelevelmente ligadas, e que deu também origem a um género inconfundível do teatro medieval.
E assim também nasceu este espectáculo encenado por mim, que é um exercício teatral do Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto (ESAP), e que estará presente no âmbito do V Festival de Teatro José Guimarães, que homenageia aquele escritor, músico e encenador gaiense, na Tuna de Santa Marinha, em Vila Nova de Gaia, amanhã (sexta-feira, 24 de Novembro de 2023, às 21h30)
O referido espectáculo tem a seguinte ficha técnica e artística: Anaísa Matias, Anita Carvalho, Bruna Pyres, Cauí Ferreira, Duarte da Mota, Joana Fairchild, João Celeste, Leonor Leite, Marta Polt e Sara Dias (na qualidade de intérpretes), bem como Anaísa Matias (na notação de cenas), de Inês Neves (na sonoplastia) e de Miguel Ângelo Ferraz (na produção).
Lembro ainda que o Festival de Teatro José de Guimarães, idealizado pelo nosso amigo e antigo director de produção do Teatro Nacional São João (no Porto), Salvador Santos, já vai na sua quinta edição e que conta com os apoios da Câmara Municipal de Gaia, da União de Freguesias de Santa Marinha e de São Pedro da Afurada, assim como da Tuna Musical de Santa Marinha, no qual participam companhias profissionais, escolas, grupos de teatro amador e ainda a escola internacional espanhola a ESAD (La Escuela Superior de Arte Dramático de Extremadura), de Cáceres.
O convite está feito, apareçam!
.
Nota:
1 – Luciano de Samósata (nasceu no ano 125, em Samósata, na província romana da Síria, e morreu pouco depois de 181, talvez em Alexandria, no Egipto). Pouca coisa se sabe a respeito da sua vida, mas o apogeu da sua actividade literária transcorreu entre 161 e 180, durante o reinado de Marco Aurélio.
.
23/10/2023